Entre 6 e 16 de Outubro de 2016, a mais recente edição do Festival de Cinema do Rio de Janeiro acolheu o programa Berlinale Talent Press Rio, fórum de encontro e de formação de críticos internacionais que, pela primeira vez, reuniu autores de língua portuguesa provenientes de Portugal, Moçambique e de vários pontos do Brasil. Entre os vários textos produzidos pela walshiana Sabrina D. Marques, que integrou o programa, seguem-se notas pessoais sobre alguns dos filmes presentes em diversas secções do Festival.
The Hunger: vampirismo sexy
Integrado na Secção Midnight, The Hunger (Fome de Viver, 1983) é um desses filmes que precisam do futuro. A pretensão comercial de Tony Scott satura esta sua primeira longa-metragem e o resultado é um produto esquemático que é tão filho da sua época que, à sua estreia, lhe falha redondamente. Mas o tempo tende a ser amigo dos filmes saturados de clichés – e o que hoje estamos fartos de ver, poderá ser icónico para as audiências por vir. Constituindo-se como um case-study para o quão imprevisível pode ser o sucesso comercial, Fome de Viver é o argumento acabado de como um filme não é uma soma calculável de variáveis e vive muito para lá de fórmulas estéticas ou das stars que reúne. A dream-team combina Catherine Deneuve, David Bowie e Susan Sarandon num drama erótico entre belos vampiros que se desenrola num estilizado submundo urbano, envolto na soturnidade dos ambientes pós-apocalípticos do irmão, Ridley Scott. O goth-rock dos anos 80 surge protagonizado pelos famosos Bauhaus que tanto na sequência inicial como nos créditos, repetem o tema Bela Lugosi’s dead como que incitando à necessidade de uma renovação pós-Lugosi da figura do vampiro.
Estas vampiras são mortíferas femmes fatales: descritas num allure sexualmente ambíguo evocam-nos, entre o erotismo e o terror, a associação estreita entre vampirismo e sexualidade previamente ensaiada por filmes como Et Mourir de Plaisir (1960) de Roger Vadim, Female Vampire (1973) ou Vampyros Lesbos (1970) ambos de Jess Franco, entre tantos. Mas seria, pela dimensão hollywoodesca da adaptação, o Drácula(1992) de Francis Ford Coppola a melhor instalar no imaginário comum a figura da vampira-lésbica, hipnotizante criatura de apetites insaciáveis. Se foi afundado pela crítica à sua recepção, hoje a imprecisão narrativa previamente diagnosticada a Fome de Viver entusiasma o gosto pós-moderno e os recursos visuais, que então denunciavam os tiques publicitários da formação do realizador, já não nos parecem tão ostensivos. Objecto de culto, é obrigatório na arqueologia de cinéfilos e melómanos e adianta vários outros esboços que relacionarão a liberdade clandestina da noite à marginalidade do vampirismo, da depravação sexual e do punk/rock: Rockula (1990) de Lucas Bercovici, Only Lovers Left Alive (Só os Amantes Sobrevivem, 2014) de Jim Jarmusch, ou A Girl Walks Home Alone at Night (Uma Rapariga Regressa à Noite Sozinha a Casa, 2014) de Ana Lily Amirpour, entre outros. Ímpar e inclassificável filme, Fome de Viver parece melhorar a cada revisita.
Hermia & Helena: aumentar a vida
Em antestreia no Festival do Rio 2016, o mais recente de Matías Piñeiro é um desses raros filmes novos que realmente sabem a novo. Apesar de ser, entre cinco longas, a sua quarta incursão no mais adaptado dos clássicos – Shakespeare – a inovação do hábil dispositivo que engendra para integrar o texto é de um experimentalismo entusiasmante, e um exponencial passo em frente face aos exercícios anteriores.
Entramos nas ruas de Novas Iorque com a juventude do cinema dos irmãos Safdie: um ritmado piano aviva a câmara livre acompanhando uma mulher que apressadamente caminha. Esta jovem protagonista debate-se com uma tradução de um excerto de “A Midsummer Night’s Dream”, e a qualidade fantasiosa do texto atravessa o filme e insufla de um tom épico os dramas do quotidiano. Lembramos ouvir a Ira Sachs que ‘‘os melodramas aumentam as coisas’’ e este movimento aditivo é o destas personagens face às vidas em que se cruzam. A sobreposição de narrativas simultâneas – que acontece de formas diversas, do texto sobreposto à imagem a ecrãs reflectidos sobre janelas – espessa a quantidade de informação a ver, assim produzindo uma realidade aumentada e que assinala como Hermia & Helena é um filme que tanto é fruto da sua contemporaneidade como contribui para a definir.
Se é certo que já conhecemos este experimentalismo logorreico pelas mãos precursoras de Godard, temo-lo visto surgir cada vez mais. Recordamos os surpreendentes desenhos que, com Sud Sanaeha (Blissfully Yours, 2002), Apichatpong Weerasethakul chegou a Cannes; lembramos as SMS que recentemente vimos em Mil e Uma Noites de Miguel Gomes (2015); ou evocamos os jogos de camadas texto/imagem tão distintos como os trazidos por Eden (2014) de Mia Hansen-Løve ou Jimmy P. (Jimmy P., Realidade e Sonho, 2013) de Arnaud Desplechin.
Ao mesmo tempo que a narrativa fragmentada acontece entre os EUA e a Argentina, assistimos a outra sobreposição substancial: o espanhol e o inglês lutam nas páginas desta tradutora de Shakespeare. E na pregnância de hipóteses para cada palavra submetida ao exercício da tradução-falsificação, está inscrito o inesperado possível de cada instante. Mas estas cartas e páginas abertas geram uma espécie ilusória de proximidade: engenhosamente, dando a ver o que as personagens anotam, escrevem e trocam, são-nos ainda assim insondáveis as suas motivações. Entre narrativas dentro de narrativas, estamos no interior de um tabuleiro de jogo de Borges ou de Cortázar e, num destino cozinhado pelo acaso e pelo imprevisto, o rumo destas personagens perdidas constrói-se sem plano. Como uma página em branco, o seu futuro está aberto neste labirinto de possibilidades à entrada da vida adulta.
Incorporando a crença rivettiana na dissolução das fronteiras entre a vida e a ficção, as aventuras de Hermia & Helena rimam com as de Celine et Julie vont en bateau (Céline e Julie Vão de Barco, 1974) ou de Bulle e Pascale Ogier em Le pont du Nord (1981) e Paris s’en va (1981). Alimentando a prática situacionista da deriva enquanto processo de pesquisa, esta protagonista com contornos de Frances Ha, efabula o seu presente entre as epopeias da vida e as da literatura, subitamente convidando o namorado cineasta a construir consigo uma narrativa amorosa: o amor não é afinal uma ficção construída a dois? Matías Piñeiro não se abstém de materializar a sua reputada cinefilia e, permanentemente referenciando e prestando homenagem ao cinema, sobrepõe planos-sequência em longos dissolves, constrói cross-fades triplos, oscila entre o positivo e o negativo da imagem e insere integralmente uma curta (créditos incluídos) dentro do filme. Subvertendo o clássico, a genuína inventividade de Piñeiro fala mais alto do que os pessimistas nostálgicos, sobrepondo-se aos fatalismos que se possam atrever a vaticinar a morte do cinema.
Cinema Novo: Eryk Rocha está nas trincheiras
O Cinema Novo não é uma questão de idade, é uma questão de verdade.
Paulo Cesar Saraceni
Cinema Novo situa-nos no lugar de um levantamento de hipóteses: o que significa que surja, em 2016, um documentário homónimo ao movimento que descreve?
Na sua quinta longa-metragem, Eryk Rocha relaciona-se com a própria ascendência e constrói um mosaico afectivo que dá voz aos intervenientes do Cinema Novo Brasileiro. Estamos perante um documentário e, simultaneamente, perante um muito livre filme-ensaio que, solto de intenções explicativas, cruza testemunhos em voice-over com excertos de 130 títulos indispensáveis do movimento. A velocidade deste encadeamento rítmico dá-nos a sentir hoje a energia do próprio Cinema Novo. Sucessivamente, jovens figuras rasgam o ecrã a correr, emblemas da precursora vontade dos protagonistas do Cinema Novo de agitar as consciências de um país que, nas décadas de 50 e 60, construía, na profusão das várias expressões artísticas, um espelho para a realidade do seu contexto social e económico. A cisão inaugurada pelo Cinema Novo tem o experimentalismo de um laboratório progressivo, que tanto absorve rapidamente as influências culturais exteriores, como funda uma liberdade multiforme: algures entre o documentário e a ficção, entre o sagrado e o profano, entre o imaginário e o real. É o cinema brasileiro de hoje que aqui se examina: onde está esta energia interventiva face à urgência da realidade presente?
Apesar do referente historicamente definido, Eryk Rocha revitaliza o passado com um exercício aberto que reflecte transversalmente sobre a própria natureza da cinefilia contemporânea. Apropriando-se de imagens que não legenda, vinca a pessoalidade do seu gesto ao organizar visualmente blocos que, para si, definem pilares essenciais da identidade do Cinema Novo. O resultado é um retrato de conjunto de um grupo de cinéfilos que, tão distintos entre si, se uniram para viabilizar esforços e meios, encarando as possibilidades do cinema enquanto veículo de um compromisso ideológico com fundações convergentes.
Descentrando-se do habitual foco sobre os realizadores, Eryk Rocha desmonta o dinamismo de uma estrutura colectiva, particularmente organizada da produção à distribuição. Se o arquivo faz ressurgir a voz do seu pai, Glauber Rocha, ícone maior do movimento, mapeamo-nos entre outros nomes indispensáveis: Nelson Pereira dos Santos, Carlos ‘Cacá’ Diegues, Joaquim Pedro, Gustavo Dahl, Walter Lima, Maurício Copovilla, Paulo César Saraceni, Leon Hirszman, Roberto Farias, etc. E destes ‘‘fordianos e rosselinianos’’, destes acérrimos ‘‘de Eisenstein e da Nouvelle Vague’’ ouvimos acerca da agilidade de um cinema que, feito por amigos, despertou o panorama internacional para o cinema brasileiro. Perseguindo um princípio de verdade são, apesar do vanguardismo formal, filmes que interpelam no imediato e que, em conformidade com os mínimos meios envolvidos, se relacionam com as faltas que denunciam a um país sobre o qual desejam agir. Não podemos, em 2016, prosseguir na enérgica simplicidade do lema ‘‘uma câmara na mão e uma ideia na cabeça’’?
Com um claro sentido de risco, nesta reflexão acerca do legado do Cinema Novo na história do cinema brasileiro, Erik Rocha enfrenta o mesmo dilema político dos cineastas que retrata e coloca-se nessa fenda, problematizada pelo filme, onde as formas revolucionárias competem com a eficácia da comunicação. Contra o mero débito informativo, demonstra como, após tantos limites cruzados pela inventividade do passado, a recepção do cinema experimental é, ainda hoje, condicionada pelas linguagens dominantes. Ouve-se em Cinema Novo: ‘‘Nunca ganhámos a guerra. Não podemos deitar em cima da vitória. É uma guerra aberta.’’ E Eryk Rocha está nas trincheiras.