Costuma dizer-se que o charme do cinema está na experiência colectiva e anónima da sala escura. Em restaurantes, todos nós já almoçámos ou jantámos perto de perfeitos desconhecidos. Quem sabe se a ausência de luz não nos permitiria sentir mais e melhor a panóplia de sabores e aromas. A comida tem o seu próprio cinema: da montagem dos ingredientes – no prato – resultam imagens. O bom cinéfilo gosta de as degustar.
Um homem chega a casa. Tira as compras do carro. Entra e achamos estranho que a porta que dá acesso à moradia seja insonorizada. Deixá-lo. Prepara o jantar. Talvez seja comida demais para uma só pessoa. Põe a mesa. Afinal não está sozinho. São dois os pratos. Desce à cave. Abre uma porta. Do escuro sai uma criança lentamente. Timidamente. Jantam. Vêem televisão até às nove. A criança deita-se. Ele fica mais tempo, vendo o que vai dando numa televisão sempre fora de campo. Veste o pijama, lava os dentes. Serão um pai e um filho? Não parecem, mas também não parecem outra coisa. A sinopse já havia informado que na verdade se trata de um enclausuramento de uma criança por um pedófilo. Ele cospe a pasta branca no lavatório, agarra um recipiente de lubrificante. Desce à cave, entra e fecha à porta. Este é o aspecto que Markus Schleinzer desenvolve em Michael (2011): a rotina. Tudo parece o mesmo naquele homem. Sai. Trabalha. Volta. Janta. Viola. Dorme. Sai. Trabalha. Volta… Só interrompe essa rotina quando vai de férias para a neve e veja-se o desespero deste, por não estar sobre controlo (cai dos esquis). Mais tarde, já em casa, surge-lhe uma colega sem aviso; de novo o desespero, ele não tem as rédeas da situação. Talvez por isto ele abusa da criança, porque com ela está em controlo (lembre-se a cena de impotência com a empregada do bar). É assim que se encontra a dureza ácida da realização anti-emocional de Schleinzer, na forma como nos introduz o estupro infantil pelo segundo prato na mesa. Tudo é rotina, mesmo o abominável. E já são horas do comer…
Ricardo Vieira Lisboa
Tampopo (1985) de Jûzô Itami pode ser descrito como um exercício sensacionista que apela definitivamente mais às papilas gustativas do que aos olhos que a terra (também) há de comer. Aqui, sob o signo da dispersão diegética, não há espaço estomacal apenas para manjares de “trágicos gregos” (composta, mutatis mutandis, por entrada – prato principal – sobremesa), mas, ao invés, inaugura-se uma espécie de cinema da degustação onde a narrativa, fortemente episódica, jamais prevarica na arte desordenada e gulosa de tudo petiscar. Sem discriminações, à boa maneira democrática: a alta cozinha francesa tem tanto de sublime como uma taça de ramen a fumegar. E quão bela, justa e boa pode ser a experiência palatina dessa maravilha escondida da gastronomia japonesa? Ouça-se o mestre à direita, estudioso por mais de quarenta anos dos segredos de tal iguaria, despercebida porque tão vulgar. Ele acode o jovem rapaz à esquerda que ainda não conseguiu saborear a dimensão sagrada, transcendente, do mais profano e imanente dos actos. E porque “da mão à boca vai-se a sopa” é necessário colar os lábios à louça, sorver directamente e com dedicação da taça, entrar nos jogos de sedução que vão da visão ao palato, agradecer a dádiva de se ser caçador e não presa, enfim, deixar a mais apetecível carninha de porco para o fim (o tonkotsu: a prova de que a carne foi feita para ser comida), renegada para um canto, boiando ansiosamente entre o caldo e a massa, como se a auto-contenção temporária concedesse a maior libertação de prazer, assim que transgredida. Talvez haja algo mais numa refeição do que dar ao dente…
Miguel Patrício
O que fazer quando estás na casa dos 20 e te dão 10.000 dólares para dar corpo à imagem da cabeça de um homem a cair ao chão e a ser apanhada por um menino que a leva a uma fábrica de lápis? Fácil. Realizas Eraserhead (No Céu Tudo É Perfeito, 1977), um delírio que puxa Gogol e Kafka da literatura, Cocteau e Bunuel do próprio cinema, e deixas toda a gente a pensar até que ponto não passarão a ver a tua imagem de marca (raccord de cabelo incluído entre o metteur en scène e o protagonista Jack Nance) como uma cabeça-borracha, que lentamente apaga o real para lhe reescrever o surreal. Mas o franguinho… foi o que me trouxe. Não há como esquecer esta cena. Bill vai jantar a casa da mãe do seu futuro filho (um ser viscoso e chorão meio ET sem perninhas, meio ténia solitária) e os frangos, “little damn things, smaller than fists”, é o há para papar. O chefe de família que tinha pincelado os ditos bichos na cozinha, enquanto a avó catatónica mexia a salada, tem um problema no braço e não pode cortar a carne. Cabe então ao nosso herói trinchar os bichinhos. Mal espeta o garfo a um, as patinhas começam a dar a dar, do seu interior sai um fio de sangue. A mãe tem um ataque que mais parece um orgasmo (o movimento das patas do frango tem algo sexual, como terá mais tarde o retirar de uma mala debaixo da cama no quarto de Bill) e Lynch filma o interior do frango, como um buraco de uma fechadura, esvaindo-se em líquido. Se não há como não perder o apetite depois disto, a cena antecipa o trinchar que aqui não chega a acontecer e só virá perto do final quando o pai “abre” o próprio filho. De olho aberto ficamos nós com a chegada de Lynch ao cinema, num momento tão poderoso como o famoso rasgar da retina bunueliano.
Carlos Natálio
Como comprovar a importância da comida no universo da Hayao Miyazaki? Primeiro que tudo, ver os filmes. Meter os olhos nas cores de cada ingrediente e, não menos importante, o nariz no vapor perfumado que sai de cada prato e que faz arregalar os olhos e crescer água na boca das personagens – e em nós. Segundo, basta ir à Internet e o cinéfilo encontrará Tumblrs dedicados ao assunto (por exemplo, este) ou até mesmo receitas baseadas nos filmes. No YouTube podemos aprender a fazer “Ponyo Noodles”, exactamente como no filme! Pois bem, no delicioso filme de Miyazaki a menina metamórfica, vinda dos mares, descobre o amor e a amizade num encontro acidental com um rapaz. A mesa é um momento de confraternização em Miyazaki. E várias vezes o prato, ao invés de ser um adorno ou adereço da cena, torna-se num verdadeiro objecto de fascinação – e daí os olhos arregalados e a água na boca. A comida cheira e sabe intensamente nos desenhos de Miyazaki. Por eles passa o prazer e a alegria mais terrenas. A fantasia não resiste aos pequenos grandes prazeres. A refeição eleva os sentidos. Anima a vida. Anima a própria animação. Os melhores filmes de Miyazaki costumam ser como os seus mais esbeltos manjares: deliciosos.
Dedico este ingrediente à walshiana Inês Lourenço, uma fã de Miyazaki que tem excelente palato, é amante de gatos e domina a arte da cozinha. Por isso tudo e mais, também é conhecida pelos nomes “Ponyo” ou “Kinês”.
Luís Mendonça