Introdução à Segunda Temporada dos Filmes Fetiche
Acerco-me da janela. É incrível a quantidade de gatos que vivem e se multiplicam nos arredores do pavilhão. Existe um, verdadeiro floco de espuma. Embandeirando a cauda altiva e felpuda que me cativa sempre o olhar. Tem uma imponência e uma majestade… a leveza do arminho, a fragilidade da neve. Todas as manhãs, àquela hora, desliza pelo muro estreitinho com a elegância e a graça de uma vedeta de circo ao deslizar pelo arame suspenso. (…) Os doentes do edifício central da casa de saúde que veem passar a sua convalescença para o quintal, os enfermeiros, os criados, os próprios moços de cozinha podem dirigir-se-lhe que ele é incapaz de se mostrar altivo ou de fugir à sua convivência. E contudo comigo… Sempre que o vejo à minha janela procuro tornar-me notado. Provocar uma saudação, entabular relações com sua majestade. Tamborilo nos vidros através da grades e timidamente, cautelosamente, tento chamar-lhe a atenção.
Reinaldo Ferreira in Memórias de um Ex-Morfinómano
A primeira representação de travestismo no cinema português dá-se em Rita ou Rito?… (1927) de Reinaldo Ferreira, mais conhecido como o Repórter X, que enchia as gordas dos jornais com notícias escandalosas. Ferreira, nesse final de década de 1930, dedicou-se com algum empenho ao cinema, abordando temas que antes raramente haviam sido explorados: o futebol, o misticismo, o thriller policial escabroso e, neste caso, as construções de género. Esta pequena curta-metragem muda é um filme de portas que se abrem e fecham como as identidades que se trocam entre personagens.
Baseado num caso “verídico” — como aliás toda a produção ficcional do repórter — conhecemos um homem que se faz passar por mulher para não ser expurgado pelo pai desta que o rejeita como pretendente válido à mão de sua filha. Neste sentido, as confusões que se estabelecem no interior de uma pensão rural com os interesses amorosos a desmultiplicarem-se pelas várias identidades que se vão montando ganham forma em certas ideias de montagem ou de dramaturgia: os encadeados fundidos ora convertem a menina em menino ou o inverso; o elemento da mão que não demonstra género (por oposição ao pé, que vestido com o sapato já é facilmente identificável) adquire passabilidade ora masculina ora feminina; e a figura da máscara como evidência das questões raciais (materializada na graxa que pinta uma black face — e um black foot — ou no focinho de borrego que faz as vezes de cabeçudo).
Enfim, muito há a dizer sobre os mecanismos narrativos que Reinaldo Ferreira põe em cena neste Rita ou Rito?… no entanto interessou-me apenas olhar com algum pormenor para a mão como recorrência simbólica. O toques e as festas que com elas damos são a manifestação da existência do outro e (pelo menos) a demonstração do nosso reconhecimento disso mesmo. Neste sentido o que é belo neste filme, à luz destes dias (e deste dia em particular em que se publica este vídeo, O Dia da Memória Trans), é que enquanto as mãos se apertarem com carinho os beijos dar-se-ão com vontade.
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