Chega. Não vejo mais. Quero escrever, mas não, na realidade, não é bem isso: desisto. Não nasci, de facto, para estes tempos. Que tempos? Os das séries de televisão. Destas séries de televisão que se equivalem a intermináveis filmes medíocres, ancoradas em estrategemas narrativos que, em cinema, rapidamente seriam repudiados pela sua natureza flagrantemente rasteira. Já falei sobre esta minha incompatibilidade noutra crónica. Procurei, contudo, fazer o meu trabalho de casa. Queria ver como uma série recicla um filme algo datado, mas com uma premissa inventiva e muitíssimo actual. Queria lutar contra os meus supostos “preconceitos” e tentar fazer as pazes com a cultura popular que dita um estado geral de maravilhamento pela última moda televisiva. A moda é tal que saltou para as redes sociais sob a forma de desafio viral: o “mannequin challenge”. O mundo congelou, “crashou”. O trauma chama-se Donald Trump? Não, até porque a coisa é anterior à noite horribilis da sua eleição – para Trump o desafio é outro e implica o movimento rápido da fuga. Aliás, Hillary Clinton alinhou no desafio do manequim poucos dias antes do, como lhe chamou Slavoj Žižek, “big awakening”. Estase e êxtase? Dizem que o mundo parou (ou começou a parar) porque Westworld está aí. É o último grito das séries de televisão, mas também é um filme de culto ressurgido.
Já conhecia o fenómeno em casos como Fargo (2014-) ou Scream (2015-) – o João Lameira escreveu sobre ele aqui. Um filme a servir de material de adaptação para uma série de televisão. A história do cinema tem ditado o contrário; que é na Sétima Arte que se privilegiam adaptações, de romances, contos, peças de teatro e, mais recentemente, mas sem grande sucesso, de videojogos. Quando a situação se inverte, vira imediatamente caso de estudo. Por exemplo, há o caso do livro As Férias do Sr. Hulot de Jean-Claude Carrière, que saiu depois do filme homónimo de Jacques Tati. Mais recentemente, o feitiço vira-se contra o feiticeiro com todo o tipo de adaptações de filmes a outros suportes. Veja-se as imagens bem recentes de um jogo de consola baseado em Friday the 13th (Sexta-feira 13, 1980).
O irmão Nolan e Lisa Joy não se interessam muito em explorar narrativamente o seu open-world confinado ao faroeste. Investem, ao invés, numa lógica de concentração e repetição.
No caso que trago a esta Civic TV, um filme de culto de 1973, realizado e escrito por Michael Crichton, cineasta menor que ficou conhecido por ter escrito a história de Jurassic Park (1993), é levado do grande ao pequeno ecrã pela mão do irmão de Christopher Nolan, Jonathan Nolan, e a argumentista e produtora televisiva Lisa Joy. Os Canais TVCine têm passado o filme e os episódios da série. Fica a pergunta: como se relacionam entre si? Tendo eu visto os primeiros cinco episódios, diria que o filme, visto antes, amaina a sensação de desnorte – desnorte filosófico, com certeza – induzido episódio a episódio pela série. O filme é muito mais rápido e eficaz a dar o contexto desta espécie de parábola sci-fi que explora, com inteligência, um mundo de role playing que verdadeiramente só agora se pode cumprir. De facto, este mundo cruza duas tendêncis muito actuais: uma virtualização crescente da realidade – através sobretudo dos videojogos e das redes sociais – com, em contra-corrente, uma tentativa de revalorização da experiência – mediante a recuperação de hábitos sociais de convívio, como os encontros ou manifestações iniciadas pelas redes sociais, ou as idas a “atracções” que actualizam as mais antigas feiras populares.
Crichton abre o jogo da narrativa logo nos primeiros minutos, com um dispositivo de falsa reportagem que apresenta ao espectador “o parque de diversões do futuro”. Aí os participantes humanos acedem a um cinema da vida real, assistido por um vasto elenco de humanóides, que garante a realização in situ de um conjunto de fantasias históricas. O cliente escolhe o mundo onde quer participar: a Roma Antiga, a Idade Medieval ou o típico faroeste americano. A vida mistura-se com uma ficção cuidadosamente preparada por cientistas e argumentistas. Crichton parece antever as experiências computacionais, das realidades virtuais, e televisivas, dos reality shows. Como boa distopia social que é, Westworld (O Mundo do Oeste, 1973), o filme, encerra um olhar crítico sobre o modelo de entretenimento que desenha. Uma avaria de origem incerta põe humanóides contra humanos, transformando o parque de diversões num parque de punição.
O filme é algo canhestro no desenvolvimento dos mundos e do seu backstage demiúrgico, mas tem, desde logo, uma grande vantagem em relação à série: uma espécie de crueza cómica que nos faz tanto desconfiar dos intentos dos humanos como acreditar na “avaria” – que, na realidade, é uma revolta – dos robôs. Esta crueza cómica, diria que orwelliana, está praticamente ausente na série, que – ou não teria ela o carimbo “Nolan” – quer muito mais concentrar-se nas “grandes questões” sobre a verdade, a aparência e Deus. A série dispara alto e apresenta-se como um exercício de especulação filosófica sobre o nosso lugar no mundo. Se Deus criou o mundo quem criou Deus? O que é real, o que é aparência? A metafísica inspira a sisudez geral e o tom grave que cada episódio encerra. Há, como em muitas séries, mais enigmas do que mistério. A inquietude não está no mundo que aqui se vai muito, mas mesmo muito lentamente desvelando, porque ela é do mundo da própria história, isto é, da sua própria mecânica: quanto mais vemos, parece que menos sabemos onde estamos, para onde vamos, quem é quem. De verdade.
No filme o espectador experiencia – o verbo é este, de facto – a sensação de divertissement provocada por essa (eticamente irresponsável?) diversão. Crichton decide não mostrar apenas o cenário do faoreste com o objectivo de precisamente dar profundidade ao estado geral de brincadeira (playfulness). Uma brincadeira, claro, que começa e acaba com o próprio cinema, digo, com esta ideia de que, verdadeiramente, Westworld é uma grande paródia à Sétima Arte, literalmente, a todos os seus lugares-comuns. Perto do fim, quando a revolta robótica se expande, imparável, entre mundos, Crichton encena uma espécie de remake do desfecho de Blazzing Saddles (Balbúrdia no Oeste, 1974): uma perseguição entre um frio desperado com alguns parafusos a menos e um desajeitado cowboy de carne e osso entra, de rompante, num cenário da Roma Antiga e termina, com estrondo, entre os destroços de uma orgia medieval.
Na série, o tom é soturno, sério e, no limite, enfadonho. O irmão Nolan e Lisa Joy não se interessam muito em explorar narrativamente o seu open-world confinado ao faroeste. Investem, ao invés, numa lógica de concentração e repetição. Nada tenho contra esta opção, a não ser o resultado final. Porque, aqui e de novo, estamos em pleno tomados pelo “salsichamento de narrativas” em que se tornou a maior parte das séries americanas. Não interessa para onde cada episódio nos leva, interessa sim como cada episódio adia o seu próprio fim. As grandes questões são levantadas, mas não se querem verdadeiramente encaradas ou, melhor dizendo, não se querem verdadeiramente encarnadas. Não há, de facto, personagens aqui, mas somente manequins.
As cenas, todas elas pejadas de grandes planos e diálogos, suportam até ao enjoo uma especulação vazia. As personagens diluem-se tanto no intricado mundo da narrativa – e seus enigmas – que os seus destinos deixam de interessar. Pergunta-se tanto e dá-se tão pouco – do ponto de vista dramático, entenda-se – que, a certa altura, começamos nós, espectadores, a desligarmo-nos das tais “grandes questões”. Os travellings metafísicos à Nolan – será Jonathan o replicant de feira do querido irmão? Não é? Mas parece – combinam-se com campos/contra-campos onde interessa pouco – e cada vez menos com o passar dos episódios – a confrontação da carne nua da máquina humana contra a carne velada do homem maquinado. Maquinado porquê? Por quem? A série não sabe – ainda, ainda, ainda, ainda… ainda está aí? … digo, ainda não sabe – quem comanda quem. Quem é o Deus dos deuses humanos que fazem robôs à sua imagem? De vez em quando, por entre a congestão soap mais ou menos cara, lá surge, entrelinhas, a grande questão. Mas aí é como se um agnóstico nos quisesse vender bíblias. A série não sabe ou não quer saber, porque verdadeiramente só procura uma coisa: um adiamento. Adiamento das grandes e pequenas respostas, enquanto disfarça e negoceia um produto exaurido. Vai uma bíblia?