Spielberg, Lucas, Cameron, McTiernan, Zemeckis. São estes, por ordem aleatória, os cinco responsáveis por em determinado momento da história do cinema norte-americano dos últimos quarenta anos, o blockbuster ter imposto novas regras (comerciais, tecnológicas, dramáticas, nenhuma delas narrativas) que logo seriam assimiladas e copiadas ad eternum até aos dias de hoje. Estão, felizmente, todos vivos. Um esteve preso e já não filma há treze anos. Outro nunca fez um filme que se visse na vida, mas é o homem mais rico em Hollywood. Aquele outro anda a falar de disfunções familiares empacotadas em filmes de “grande espectáculo” desde 1972. Outro ainda anda em modo “kubrickiano”, fazendo filmes de dez em dez anos, sendo que nos entretantos vai pescando robalos a três mil metros de profundidade. E o outro, por último, é dos últimos realizadores norte-americanos a saber fazer um travelling. Estreia esta semana um filme seu e chama-se Allied (Aliados, 2016).
Se há forma de estudar o gosto das massas em determinado momento na “história do cinema”, então o melhor que temos a fazer é colocar os olhos nos (malvados) resultados de bilheteira. E em 2016 tais resultados dizem-nos que uma coisa chamada Deadpool (2016) é um dos campeões do açambarcamento de dinheiros e filmes como The BFG (O Amigo Gigante, 2016) ou Allied são, senão rotundos, pelo menos relevantes fracassos comerciais. Mais curioso ainda é que tais falhanços tenham como realizadores dois dos três cineastas mais lucrativos da História do Filme, e o Deadpool tem um realizador que nem os próprios executivos da Marvel deverão saber quem é. Mas nada que nos espante: Deadpool é uma (insuportável) locomotiva auto-referencial, um conjunto de one liners em que cada uma tenta ser mais chocante do que a anterior, o “pensamento” e o ritmo dos twitters transposto para o cinema, enquanto The BFG e Allied cometem a ousadia de serem filmes que há pouco mais de dez anos seriam considerados “normais” e hoje passam por curiosas bizarrias “nostálgicas”, “anacrónicas” ou “reaccionárias”; é escolher a definição que melhor servir para a ocasião.
Allied e The BFG não são grandes filmes, e na filmografia do Zemeckis e do Spielberg ocuparão um lugar entre a (grande) nota de rodapé e uma apreciação média dos seus méritos, mas cuja importância no enquadramento do cinema mainstream (da televisão não sabemos, mas dizem que nascem “obras-primas” todos os dias…) da Hollywood actual não poderá ser negada assim às três pancadas. Eis duas obras fora de moda, que reivindicam para si o paraíso perdido da “magia do cinema”, de noções “básicas”como manipulação de determinada luz, variações de planos ou a introdução da música no momento certo, essas cousas de que toda a gente gosta e que parecem estar em vias de entregar a alma ao criador. Chame-se-lhe “classicismo”, “convencionalismo”, “academismo” ou outra coisa qualquer, mas se a escolha tiver de ser entre isto tudo (por mais banal que seja) e as epilpesias à Zack Snyder (pior realizador do mundo?) estamos conversados. Agora uma boutade à JLG: qualquer filme do Dolph Lundgren de finais de oitenta e inícios de noventa é um festival de rigor se o termo de comparação forem os Deadpools, os Man os Steels e os Blomkamps desta e da outra vida. Agora traduzir a boutade para francês, para emprestar mais prestígio.
“Casablanca”. Foi preciso chegar ao quarto parágrafo para escrever esta palavra, que tem tanto de terra como de filme, e estão ambas presentes em Allied, uma em estado “digital” (grande Zemeckis, sempre a dar cabo da paciência aos realistas de pacotilha) e outra como evidente memória cinematográfica, pelo menos para quem já viu esse filme obscuro do Michael Curtiz. Sem se rir, o Bob Zemeckis, nas entrevistas que deu antes do filme estrear, disse que não foi sua intenção recriar o “espírito” de Casablanca (1942), mas antes o de criar uma realidade a partir das páginas do argumento de Steven Knight, sem ter em consideração a mítica sombra do filme de 1942 a pairar sobre a sua cabeça. Zemeckis, atentai: por mais que não tenhas pensado, as garras do Casablanca estiveram sempre à tua volta. Se te colocassem num sofá na sessão de psicanálise, tu dirias que tinhas estado em rodagem com o Bogart e a Ingrid, e não com o Pitt e a Marion. Felizmente, as tais garras não foram suficientes para transformar o teu filme numa simples e insípida homenagem fetichista ao clássico (embora há quem vá escrever que sim e que tudo isto não passa de um mausoléu “dos anos dourados da Hollywood” com o recurso a tecnologias de ponta).
E quando o filme se torna uma espécie de inversão do Suspicion (Suspeita, 1941) hitchockiano, existe, por entre o savoir-faire e a elegância formal da realização, a sensação de frustração de sabermos que falta um nadinha assim para transformar Allied em algo mais do que um exercício sobre a aparência das imagens
Não que não existam resquícios de um museu de cera em movimento. Podíamos pegar por uma cena de sexo numa tempestade de areia, episódio a bater no ceguinho daqueles “pedaços maiores do que a vida” e que deve ser o mais desconchavado momento na carreira do Zemeckis. E quando o filme se torna uma espécie de inversão do Suspicion (Suspeita, 1941) hitchockiano, existe, por entre o savoir-faire e a elegância formal da realização, a sensação de frustração de sabermos que falta um nadinha assim para transformar Allied em algo mais do que um exercício sobre a aparência das imagens; seria preciso mais fogo, mais perversão, mais alusões, mais carne para levar isto às alturas de um grande thriller moderno. A culpa, se se pode assim escrever, estará, talvez, na rigidez da relação entre os dois actores, com um Brad Pitt em modo frete e uma Marion Cottilard que está num outro filme. A dissonância poderia resultar em proveitos narrativos, mas se os há, não os vimos. Até porque estávamos quase na ultima fila e os óculos estavam ligeiramente embaciados.
Nas contas finais, voltamos a realçar Allied por aquilo que é e por aquilo que representa. É um thriller dramático de 1943 concebido em 2016, com valores de produção luxuosos, actores lista A, um realizador clássico em todos os sentidos (será republicano?), e o programa revisionista partilha a sua quota-parte de momentos visualmente brilhantes e uma ausência de faísca entre as duas estrelas. O que representa é ainda melhor: um potencial blockbuster que nos alivia os olhos e a alma da- como diz o Peter Watkins- “monoforma” reinante nas imbecilidades dos recentes êxitos de bilheteiras. Ou então não é nada disto e estamos a ficar velhos e pouco adaptáveis aos novos tempos.