Todo o ruído da vida provém de Eros e do combate contra Eros.
Freud, O Ego e o Id, Ensaios de psicanálise
(…) C’est quelque chose de toujours vrai un corps, c’est pour cela que c’est presque toujours triste et dégoûtant à regarder.
Céline, Voyage au bout de la nuit
Em algum momento e em alguma cama desalinhada de Amor, Palavra Prostituta (1980), a amante de Parolini murmura entredentes: “Bela merda de homem que eu fui arranjar: não trabalha, não fala e não trepa”. O Eros do filme de Reichenbach é assim: inútil, afásico e estéril; um deus terminal. Amor recupera o spleen desiludido, o espaço opressor, os reenquadramentos sinuosamente desolados da trilogia de um Antonioni mas, ao contrário daqueles espécimes térmitas onde a alienação era impressa a fórceps na plástica Boulevard Haussman da Milão do milagre econômico, o filme do Carlão trabalha a tristeza e o desajuste desses corpos perdidos segundo a economia eudaimônica da pornochanchada: perturbador paradoxo, espúria síntese! Mas não é para isto que a grande arte existe? As trepadas lancinantes, as piadas de gosto duvidoso, o sorriso fácil e cínico, o corpo “à mão e à pica”, as figuras arquetípicas mas que retornam como “escadas” paródicas da mãe e do patrão: a princípio está tudo lá, como deve ser. E, no entanto, restituído perversamente, pois, por exemplo, o découpage do filme nos oferece estes corpos e estas imbricações de corpos segundo uma lógica do “give me and take”: haverá sempre uma panorâmica insidiosa, um zoom out brusco, um travelling traseiro que nos distancia irremediavelmente do close à mão, do valor de exposição do corpo desejado, que no-los sequestram: Reichenbach vive “diferindo” o Desejo – e não tocaria aí numa espécie de essência do mesmo, que é sempre fantasmagórico – ou seja: intermitente, intercalado, lacunar?
Os corpos em Amor, Palavra Prostituta primeiro se dão, em um close ou plano médios maliciosos, intrusivos, abrasivos como o gênero pede; mas em seguida se furtam, recuam e talvez desapareçam na profundidade de campo do filme para nos reencontraram na próxima sequência, e assim irresistível e fatalmente. A arte popular sempre teve o génio mediúnico de capturar a Verdade, pois vive de intuição: esta superfície cintilante e saborosa do desejo é, assim, desde sempre ulcerada pela iminência de seu próprio desvanecimento – e qual arte senão o cinema, feito de tempo e devorado pelo tempo, seria mais adequada para capturar o incapturável deste fantasma? Ao ver Amor, Palavra Prostituta, vem-me à cabeça as páginas quase insultuosas que Adorno dedicou na segunda secção da Dialética do esclarecimento ao que chamava de “mecanismo do recalque” do classicismo americano: a actriz mostrava o peitinho, mas escondia o bico; o movimento preciso, porém, que devemos reter para compreender o que está em jogo é o “dar e tirar”, “ocultar e manifestar” que é comum tanto ao recalcado cinema da “transparência” quanto à natureza fantasmagórica de toda inervação do Desejo, não? A primeira perversão dentre as duas mobilizadas pelo filme do Carlão consiste nesta irredutível Diferença introduzida no seio da plenitude masturbatória da pornochanchada: Amor, Palavra Prostituta é um filme que goza diferido, ou difere o gozo para oferecê-lo ao fantasma.
O cinema pornográfico ou qualquer de seus ersatz, mais ou menos sérios, se caracteriza por uma ausência de fora de campo: tudo deve aparecer inapelavelmente dentro do campo, e com uma evidência e contundência tão radicais e consequentes que acabem justamente por liquidar os avatares do fora de campo em cinema: a imaginação, a memória e a significação solicitadas, engendradas, sonhadas ou efabuladas pelo espectador. O fora de campo no cinema clássico é a “prova”, sempre ausente no campo mas estrutural do filme, de que o espectador existe, sim, e de que ele é parte activa na elaboração do que vê: contamos com você, Sam. Ao “dar tudo”, o cinema pornográfico retira de mim este papel de mediador imaginário e memorialístico da estrutura simbólica do filme, daquele que há de lembrar do tic-tac do carro e da grua onimosa da abertura da Touch of Evil (1958) para ao final confirmar (deduzir, implicar, inferir: cosa mentale) que o Apocalipse daquele mundo de que o decadentista xerife é a testemunha e o masoquista precipitante já estavam assinalados pelos monstruosos tropos (a explosão, a grua demiúrgica) da abertura: sou levado, pela câmara demasiado próxima que sugere ameaça ou pelo travelling na traseira do carro que anuncia o fim, a lembrar, imaginar, completar o filme real no filme virtual de meu Eros, e assim expandi-lo para além das bordas da tela, no “écran-cache” de meu fantasma talvez.
O cinema pornográfico prescinde do fora de campo porque tem a pretensão de substituir o fantasma do espectador pelo espectro alienado da massa, pelo espectador do pronome de indeterminação “on”: um filme porno não é para mim, Luiz, porque não conta com o meu fantasma; ele é para o Luiz que são todos, o Luiz on, o Luiz x ( para ficarmos na classificação corrente). Assim, necessita apresentar o menu completo para que a massa dos Luiz “se sirvam” do gozo qualquer que é de todos: “oferta, procura, valor de troca e de exposição”, já o sabemos; arte mesmo seria antes questão da fresta cintilante que Barthes descreveu: de revelar e esconder.
Num sistema que flerta com a pornografia como a pornochanchada, Carlão então insere uma perversão de base: à completa exposição no campo característica do gênero (incondicional “give me”), o director elabora um sistema, estruturado pelo découpage como pela alternância dramática entre cenas mais leves e mais densamente melo-dramáticas (uso magnífico do romântico tardio Cesar Franck) , de “give me and take”, de manifestação e retracção: aqui e agora mas já tão distante ou em breve não mais. Amor, Palavra Prostituta conjuga o presente hiper-expositivo da pornochanchada segundo outros modos espaço-temporais, e portanto é inspirado por outras ousadias, pois num mesmo movimento nos oferece e furta o objecto desejado, no-lo dá a ver e retrai.
O programa desta “brochada” formal que mimetiza a brochada espiritual do Desejo já se dá na sequência inicial, quando tentamos inutilmente apreender a pregnância erótica desses corpos junto ao carro e à frente da casa, mas somos sempre impedidos pelo zoom ou pelo insidiosamente malévolo travelling traseiro de “estar lá, presentes juntos a eles”; somos arremessados para a inacessível Distância daquele imberbe condenado ao prazer solitário, daquele que jamais habitará o “lá”( ou antes: o hic et nunc): haveria metáfora melhor para exprimir a sensação de plenitude deficitária, de presença ausente, de gozo brocha de assistir a um filme, com todos aqueles corpos ao meu redor que na mesma medida em que se dão na presciência do ouvido (passos, tosse, murmúrios) se obliteram para a evidência da visão e se furtam à incandescência do tacto?
Ao final da sequência inicial, que termina num piquenique no campo , um zoom violador e um travelling desorientador condenam este bacanal diferido a gozar sobre a cova de um morto: um homem enforcado recepciona um dos casais excitados pela perspectiva de uma retomada edência dos consórcios eróticos; Amor, Palavra Prostituta nos brocha não apenas estruturalmente (découpage “give me and take”), mas também diegética, figurativamente: um aborto mal curado, diálogos urdidos pela recriminação e pelo ressentimento, uma cena de pedofilia e lágrimas mal estancadas nos esperam ao final de cada sequência lúbrica (l’abîme, ó Beauté!) , e fissuram a reconciliação aspirada por Eros com as notas frígidas ou mortificadas das paixões tristes orquestradas por Thanatos.
Mas se Eros é este fantasma que necessariamente precisa, para sermos fiel à sua evanescência constitutiva, aparecer-nos sob a figura de uma intermitência, Amor, Palavra Prostituta cava ainda mais fundo para revelar a natureza, desta vez alienada, de relações humanas que sempre se dão em um tempo, um Logos e um Nomos históricos: o capitalismo tardio. Aqui, temos um fantasma do fantasma, talvez o ens trancenduns do Eros, menino que ainda se diverte com o jogo do “esconde-esconde”: o dinheiro.
Reparemos que o dinheiro, que aparece propriamente no título do filme, no entanto se furta e furta o furtado na sua diegese, se refrata e se oclusa, se oblitera e desvanece, sem deixar de ser a engrenagem-mor de tudo, o ”motor imóvel” do Desejo: aquele que não ousa dizer o nome. Quando da cena do homem enforcado, o personagem de Parolini se aproveita que o outro casal foi buscar socorro e rouba o morto; uma cena mais adiante vai fazer rima com esta, e mostrar que entre um morto e um vivo como no seio de uma relação de casal jazem não apenas reminiscências e afectos, mas uma mediação, digamos, de natureza mais dura e fria, mais “sócio-económica”: a amante do cara também o rouba, aproveitando-se de sua saída do quarto. O dinheiro não pode aparecer na frente do Outro, porque no filme do Carlão ele não é apenas meio de troca (com o Outro, do Outro), mas, para falar como Lacan, espécie de objecto a, de ausência que estrutura o jogo ficcional e a ciranda do simbólico: o fantasma do fantasma pois, se está e regula a tudo, nunca propriamente aparece enquanto tal.
Mais adiante no filme, o dinheiro ainda assume outras máscaras que lhe facilitam a oclusão ou recalque suplementar: na clínica de aborto, o amante ia abrir a carteira para dar à moça a nota do táxi, mas nem chega a tirá-la do bolso, pois lembrou-se de que esqueceu o dinheiro em casa, e pede para ela pagar para depois a reembolsar; na cena com Cattan em seu carro (homem mais velho, empresário, ocasional “cliente”), ele ameaça tirar uma nota da carteira para presentear outra moça, mas esta recusa, dizendo que prefere a sua gravata (valor de troca substituído pelo valor de uso); em uma cena com a mãe, que prefere que ele largue a namorada para ficar com uma mulher rica, o amigo de Parolini lhe dá uma boa-nova: “Mamãe, saí com a grã-fina!” (o dinheiro aqui é encapsulado pelo significante “dinheiro”, que sublima o mecanismo sórdido da troca em um castrado valor de uso ideal, representado pela linguagem: palavra prostituta).
O dinheiro é sempre “questão de fantasma”, porque nunca está lá enquanto tal, mas é sugerido ou invocado pela linguagem, pelo gesto impotente (“não tenho dinheiro agora”), ou ligado francamente à pulsão de morte, que por sua vez é relacionada ao consumo: a amante de Parolini (este inútil, que não trabalha, etc) o presenteia com uma gravata comprada pelo seu amante, mas o laço que lhe dá no pescoço é tão “ternamente” sensual que quase o enforca: aliás, “o enforca”. Se a perversão do Eros pornográfico da pornochanchada consistia em manifestá-lo como, não completamente exposto, mas manifesto-e-retraído, uma perversão mais profunda (profundamente infra-estrutural) se ilustra aqui. O dinheiro, que compra tudo o que aparece, não pode aparecer porque é a mola de tudo, o pequeno objecto a ou objecto perdido freudiano: assim como o para-si da auto-consciência, no movimento hegeliano, aniquila com o barato do itinerário experiencial da consciência, pois nos coloca diante do monstro ao espelho (eu sou um Outro, agora consciência), a revelação da engrenagem de toda ficção acabaria com o “barato” da ultra-ficção, tardia embora (ou seja: culpada, em débito para com a transparência) do Carlão.
Amor, Palavra Prostituta é um filme perverso no sentido enunciado por Gilles Deleuze, quando relê o Freud dos Destinos das pulsões e reformula o conceito de perversão como sendo um “desvio dos fins”. Assim, um filme perverso deve fazer o que qualquer outro filme de gênero faz (ou faire semblant de), e apenas diferir os fins: o cinema clássico contrabandista era especialista nisto, aliás, como vemos em tantos Hawks onde a tensão erótica é toda canalizada para a linguagem desenfreada das screwballs comedies (o tesão agora passou para a linguagem, mudou de “telos”: as pulsões e seus destinos), ou quando Fuller nos surpreende ao semear o seu thriller anti-comunista Pickup on South Street (1953) com contra-campos fulminantes de palmadas na cara de Jean Peters ou franco espancamento da moça através de um reenquadramento languiano: para quem agora “pode ver”, o filme era sobre sexo, e sado-masoquista, mas se fez passar por edificante thriller anti-vermelho; mudou de destinação , ou telos: uma arte do travesti, como sói acontecer com toda arte de factura mais clássica – ou seja: que deve permanecer transparente, e obliterar, pelo menos em aparência, tudo o que não está no campo: daí a prevalência da litote neste cinema.
Carlão nos dá um filme perverso, e aliás ultraperverso, porque não pode abdicar de Zurlini, de Fuller, do Fulci de Beatrice Cenci (melodrama à la Freda pervertido por exploitation lírica) – isto é: não pode abrir mão dos perversos do cinema, sendo o próprio Carlão um perverso, ou contrabandista. Mas nos inter-planos, sequências intermediárias e contra-campos sub-reptícios como travellings furtivos deste espécime perverso que talvez seja sua obra-prima, jazem, apesar e a partir das máscaras, todos os fantasmas que fazem do cinema a arte do oxímoro supremo, a saber: a mais secretamente espectacular de que se tem notícia.