Carmen Miranda, que nasceu em Marco de Canavezes em 1909 e morreu em Hollywood em 1955, com um intervalo de trinta anos no Rio de Janeiro, onde se tornou uma glória nacional, é uma das figuras femininas mais curiosas do cinema clássico e do entertainment de modo geral, no período que vai de 1930 a meados dos anos 50. Foi talvez a primeira grande celebridade feminina a se assemelhar, em palco, mais a um travesti do que a uma mulher e, numa justa recompensa, tornou-se o modelo de milhares de travestis pelo mundo fora, numa glória póstuma que sobrevive até hoje. No que parece uma ideia de John Waters ou do jovem Pedro Almodôvar, mas é a pura verdade, o primeiro destes travestis foi, em plena Segunda Guerra Mundial, um sargento da Força Aérea americana chamado Sasha Brastoff, que mais tarde veio a ser figurinista da vedeta…
A carreira cinematográfica americana de Carmen Miranda tem outra particularidade: ela nunca fez o papel principal em nenhum filme, mas durante a Segunda Guerra Mundial foi das mulheres mais célebres dos Estados Unidos, devido ao seu exotismo, muito mais violento do que o de qualquer outra latino-americana a ter alcançado a celebridade em Hollywood (ninguém nunca se lembra que era portuguesa de nascimento). Devido ao facto de ser célebre, mas não ocupar o papel principal, os seus personagens parecem por vezes passear-se a meio da narrativa, dando a impressão de que nem sempre estão a perceber muito bem o que se passa, sem perder com isso a energia e a boa-disposição, numa situação análoga à que ela própria ocupava em Hollywood. Todo o seu ser parecia vir de outro planeta, com a sua gesticulação contínua, pouco comedida para aos hábitos das terras wasp, o seu sotaque exótico, a sua música e sobretudo as suas indumentárias. A própria raça a que ela pertencia parecia incerta aos americanos (ainda não tinham inventado a expressão white latino), pois consta que era obrigada por contrato a escurecer a sua nívea pele com maquilhagem, para melhor corresponder à ideia dos norte-americanos sobre o que era uma latino-americana.
Como se pode observar facilmente ao examinar as imagens dos espetáculos e filmes que ela fez no Brasil nos anos 30 (veja-se na rede Alô, Alô Carnaval, de 1936, em que ela canta com a sua irmã Aurora o belíssimo Cantores do rádio: “Nossas canções cruzando o espaço azul / Vão reunindo num grande abraço / Corações de norte a sul”), os seus trajes de cena em Hollywood são uma estilização e sobretudo uma ampliação do já estilizado traje folclórico da Bahia que ela usava em palco nos primeiros dez anos da sua carreira. Mais estilizados e mais magnificados ainda em Hollywood foram os seus característicos turbantes (que ela própria, que começara a ganhar a vida trabalhando numa chapelaria, confecionava para os espectáculos de palco), que se transformaram em autênticas torres nas mãos dos serviços de fatos e adereços dos estúdios. Mas mal acabou a Segunda Guerra Mundial e com ela a política de boa vizinhança destinada a aliciar as opiniões públicas latino-americanas à causa dos Aliados, política que a levou a Hollywood como levou Orson Welles ao Brasil, a sua presença no cinema tornou-se menos importante (mantendo-se nos circuitos de palco e na rádio), inclusive com filmes a preto e branco, o que além de ser um sinal de pouco prestígio e baixo orçamento num filme musical, era uma absoluta contradição com as cores berrantes, tropicais, que a caracterizavam.
Mas se Carmen Miranda tinha algo de travesti, era um travesti de teatro, de palco, não (salvo seja) de cama, o seu ar de travesti é o de um homem fantasiado de mulher e não que quer passar por mulher – neste sentido, ela é uma brincadeira, não uma impostura – cheia de formas hipertrofiadas como tantos sex symbols de série B ou A dos anos 50, que, à maneira das dançarinas do teatro de revista, mais parecem travestis do que representantes do sexo feminino: Ninón Sevilla [que faz, por sinal, um número à Carmen Miranda num bordel mexicano, no delirante Aventurera (1950)], Sylvia Koscina, Rosana Pampanini, e, com o perdão da palavra, Sophia Loren, com a sua bocarra e o seu busto em forma de sofá de três lugares. Estas mulheres, de corpos explosivos e caras absolutamente inexpressivas, eram usadas no cinema como autênticas fantasias onanistas para os espectadores masculinos e como os costumes cinematográficos da época só permitiam uma representação muito discreta do sexo, era preciso sugerir com veemência o que não seria visto, criando ao mesmo tempo desejo e frustração. Nos anos 30 e 40, atrizes latino-americanas da geração de Carmen Miranda a terem feito carreira em Hollywood, como Dolores del Rio, Lupe Vélez ou Maria Montez (a primeira com uma imagem de fina, as duas outras umas autênticas oferecidas) tinham uma carga nitidamente erótica, à flor da pele.
Nada disso se passa com o “travesti” oriundo de Marco de Canavezes, cujo corpo é inteiramente coberto pelas suas vestes, à exceção do pescoço, do rosto e das mãos. Paradoxalmente, ela nem sempre usava cuecas, como ficou provado numa célebre foto em que um homem a gira nos braços a dançar e, segundo a fórmula imortal de Manuel Cintra Ferreira, “um fotógrafo indiscreto mostrou «o que é que a baiana tem»”. Nos filmes, os personagens de Carmen Miranda apenas sugerem uma pulsão sexual, ela é sempre uma espécie de maluca de passagem, uma mulher do Trópico caída de paraquedas num país do Hemisfério Norte, frenética, alegre, bem-humorada e espalhafatosa, mas assexuada. É verdade que no seu melhor e mais célebre filme, The Gang’s All Here (Sinfonia de Estrelas, 1943) — que em França teve o genial título comercial de Banana Split — o ultra-wasp Edward Everett Horton tem uma súbita e óbvia ereção diante dela e prepara-se para agarrá-la com um ar autoritário. Mas trata-se de uma cena cómica entre ela e um dos maiores secundários do período clássico de Hollywood, que parodia o ar conquistador de um galã, coisa que ele nunca foi. Ou seja, a própria ideia de considerar Carmen Miranda como um objeto de desejo sexual é tratada como um elemento cómico, assim como é cómica a ideia de fazer com que Mickey Rooney a parodie em Babes on Broadway (Calouros na Broadway, 1941) — o que lhe valeu a alcunha de Carmen Mirrooney no estúdio — ou que Jerry Lewis a substitua numa cena de palco em Scared Stiff (devidamente ataviado, com turbante, sapatos com sola de dez centímetros e tudo o mais), porque ela se atrasou e the show must go on.
Entre os nomes célebres do cinema, Carmen Miranda tem, por conseguinte, a curiosa posição de ser uma mulher que não é bem uma mulher, um animal exótico sem aura sexual. Como tantos outros, acabou por ser um pouco prisioneira da sua própria imagem pública, facto de que tinha perfeita consciência. A prova bem-humorada e patente disto está num show de 1953, de que resta um documento gravado. Como ela, que já era famosa nos Estados Unidos há cerca de quinze anos, só se apresentava de turbante, começou a circular o boato de que seria careca. Para desmentir esta maldade, nesta digressão de 1953, a certa altura ela interrompe o show e diz que está com muito calor e por isto vai tirar o turbante: “Como uso turbante, há quem diga que sou careca, mas vocês vão ver que não é verdade. Look, it’s my hair, but it is not my natural colour”. Depois afirma, a cantar, que sempre sonhou em fazer um filme “with Clarky Gable, with candle lights upon the table / But my producer tells me I’m not able: I must make my money with my bananas!”. Como se vê, apesar das aparências, ela nunca foi kitsch, foi uma precursora daquela forma consciente do kitsch que se chama camp.
Carmen Miranda é um interessante fenómeno do cinema americano, em parte porque o cinema fixou o seu mito, não o criou verdadeiramente. Como Mae West, escapa à monstruosidade pela ironia e pelo humor: e ela sabe muito bem quem é e aquilo que a sua pessoa denota. Já chegou a Hollywood habituada a ser famosa, com a sua personalidade e o seu mito formados. Hollywood magnificou a sua imagem e levou-a ao extremo de si mesma. Felizmente, morreu antes da velhice e quando o declínio começava apenas a delinear-se. O seu mito continuou vivo, embora no seu visitado túmulo não haja bananas nem abacaxis e sim uma estátua de Santo Antoninho. No seu velório, na então Assembleia Nacional no Rio de Janeiro, houve uma profanação: chocado pelo facto dela estar vestida com um tailleur vermelho (escolhido pela família por ter sido a roupa ela que usara ao desembarcar na sua última viagem ao Brasil, um ano antes) e escandalizado pelo facto do rosto estar maquilhado, como era costume nas funerárias americanas, para dar a impressão de vida, o padre teria exigido que se retirasse a maquilhagem, do contrário recusar-se-ia a encomendar a defunta. Mas a seguir a esta profanação causada pelo obscurantismo religioso, no funeral, que foi acompanhado por uma gigantesca multidão, houve um pequeno milagre, como convém ao enterro de uma portuguesa sinceramente católica: uma mulher grávida sentiu as primeiras contracções no cemitério, a criança nasceu bem e foi batizada com o nome de Carmen (pena que não tenha sido um rapaz para se chamar Carmencildo, Mirandilzo ou Carmolino, ilustrando a tradição brasileira dos nomes cacofónicos e pavorosamente estapafúrdios). O nome, a imagem e as canções de Carmen Miranda continuam vivos e os seus filmes, muitas vezes divertidos mas inegavelmente menores (com a óbvia exceção de The Gang’s all Here, em que reunião da sua personalidade extravagante e a imaginação de Busby Berkeley causaram faíscas) perpetuam uma das imagens da Lady with the Tutti-frutti hat: a de uma mulher que se parece a uma bem-humorada paródia de uma mulher, uma mulher-travesti.
Antonio Rodrigues*
* Antonio Rodrigues é membro do serviço de Programação da Cinemateca Portuguesa