Há alguns traços que identificam o cinema do iraniano Asghar Farhadi. O primeiro talvez possa ser definido como uma propensão para instalar nos seus filmes uma elipse funcional que vai servir para movimentar tudo à volta, apuramento de culpas, representação dos actores, desconstrução da sociedade, etc. Por exemplo, em Jodaeiye Nader az Simin (Uma Separação, 2011), urso de ouro em Berlim e o primeiro filme daquele país a ganhar um Oscar de melhor filme estrangeiro, era uma das personagens que desaparecia momentaneamente deixando o pai do protagonista, idoso e doente, amarrado a uma cama. No filme anterior a este, Darbareye Elly (2009) era uma educadora de infância que desaparecia num momento crítico. O que têm em comum estes “mistérios” é proporem que as coisas graves acontecem nas “elipses do sistema”. E depois Farhadi vem filmar sobre a inquirição dessa falta fundamental, os problemas gerados por essa anomalia da “máquina” e o drama daquele ou daqueles que a avariaram.
Mas ao autor não interessa tanto explorar os mecanismos do thriller ou do suspense, mas mais dar a ver o procedimento que leva um grupo a tornar as suas acções mais evidentes, a explicar as suas motivações que permaneciam na sombra, aprisionadas pela sociedade. Chegamos assim ao segundo traço do cinema de Farhadi, o trabalho com os actores. Este, girando com uma câmara portátil em torno deles, procura sobretudo captar a travessia que as suas personagens atravessam na passagem do obscurantismo misterioso à revelação honesta e catártica. Por isso se torna evidente que o thriller serve sempre o drama e que Farhadi não é um cineasta hitchcokiano, talvez mais próximo de universo moral de Rhomer.
Forushande é uma espécie de súmula de tudo o que Farhadi já fez (e melhor) no passado (…) uma obra a meio do caminho, na intersecção de várias ambições
Finalmente, o último traço surge em decorrência dos anteriores. Com a ajuda de uma falha do sistema e por via da revelação dos seus actores, Farhadi chega ao tema que lhe é mais caro. A decomposição da sociedade iraniana das suas vestes de pureza, o apuramento de responsabilidades e da culpa de todos, a questão da burocracia, a falência das relações amorosas como um espelho da falência de todas as outras relações. Era esse em parte o poder do seu último Le passé (O Passado, 2013) que, ao mesmo tempo que tratava de um divórcio, falava de uma relação presente à beira de se desmoronar através de um incidente numa lavandaria que levara à tentativa de suicídio de uma das personagens.
Mas importa falar deste Forushande (O Vendedor, 2016) que, além de conter todos estes traços fundamentais, adiciona ainda um outro: a relação reflexiva entre o teatro e a realidade. Neste caso é um casal de actores – e que extraordinários actores: ele, Shahab Hosseini que tinha vencido o prémio de melhor actor em Berlim em 2011 por Jodaeiye Nader az Simin e agora volta a repetir o prémio mas em Cannes; e ela, Taraneh Alidoosti, também protagonista de Darbareye Elly – que representam A Morte de um Caixeiro Viajante (1949) de Arthur Miller. À medida que se desenrola a peça, que é, como se sabe, sobre a queda de expectativas de um pai em relação ao potencial de um filho e, inversamente, de um filho sobre a rectidão moral do seu pai, a mesma coisa sucede, obliquamente com as personagens na sua vida real. A casa onde habitam começa a desmoronar e têm de mudar, mas a nova não é mais tranquila devido ao passado da sua antiga inquilina.
Há pouco tempo denunciava aqui a excessiva rigidez do paralelismo entre a vida e a literatura conforme pensada por Tom Ford em Nocturnal Animals (Animais Nocturnos, 2016). De certa forma, Farhadi tem a tentação de tornar este seu paralelismo entre o teatro e a vida em algo que comanda o seu filme: não por acaso as paredes do antigo prédio que ruem passam a ser “palco” da resolução do conflito principal do filme (que não vale a pena aqui revelar), com esse plano no final, explícito, do apagar das luzes da casa como o fechar dos holofotes de um palco teatral.
Tudo somado parece que este Forushande é uma espécie de súmula de tudo o que Farhadi já fez (e melhor) no passado, resultando num filme que procura investir, com o mesmo empenho, na faceta de thriller sentimental, nas repercussões dramáticas da elipse que gera uma falha na relação do casal de actores e nessa teatralidade da vida. Afinal de contas esse investimento “total” acaba por resultar numa obra a meio caminho, que se fica pela intersecção de todas essas ambições. Seja como for, apesar de alguma dispersão, o argumento de Farhadi saiu premiado de Cannes este ano.