Não se deixe enganar pelo título do nono capítulo do livro de Ruth Barton Hedy Lamarr: The Most Beautiful Woman in Film (The University Press of Kentucky, 2010), que aqui traduzo com autorização da autora e editor. Não se trata de um elogio condescendente ao génio inventivo daquela que ficou conhecida como “a mulher mais bonita do mundo”, a diva do cinema clássico americano, de origem austríaca, Hedy Lamarr. O que queremos produzir com a publicação desta tradução, de um livro inédito em Portugal, é a afirmação das qualidades de uma mulher que era bela e era inteligente. Não há espanto aqui. Há curiosidade em saber mais sobre esta história de contornos admiráveis. Atenção: não há nada de necessariamente invulgar no génio intrínseco à diva, muito menos no génio intrínseco a uma mulher bela. Contudo, imagine só a conjugação perfeita: aqui o cérebro cintilante, e incansável, é acompanhado de uma beleza natural absolutamente estonteante – que, como se descreve, tinha fama de lançar “o pânico” entre os homens.
Esta tradução, como outros textos que publicámos neste dossier, não embarca na ideia de que a mulher é bela, apesar de inteligente, ou inteligente, apesar de bela. Espante-se: ela é – tem tudo para ser – as duas coisas ao mesmo tempo. Muitos saberão como Hedy, ainda na Áustria, (re)inventou o orgasmo feminino na grande tela em Ekstase (Êxtase, 1933). Poucos saberão que a sua capacidade inventiva não acabou aqui. Fique, então, a saber como é que uma conversa em torno de um aumento das mamas pode ter levado à invenção das comunicações à distância, privadas e sem fios, que hoje tornam possível a tecnologia dos telemóveis. Por trás de uma grande invenção está uma grande mulher? Sim, pode dizer-se isso a propósito de Hedy Lamarr. (Luís Mendonça)
Hedy estava condenada a assistir à guerra na Europa à distância, na América. Tal como vários outros emigrados, ela atirou-se para o esforço de guerra; no seu caso, servindo na Cantina de Hollywood e vendendo obrigações de guerra. Também isso significou usar a propriedade intelectual que ela levou consigo do castelo de Mandl, mas já voltaremos a isso.
A Cantina de Hollywood foi criada em Outono de 1942 no Cahuenga Boulevard, por Bette Davis e John Garfield, depois do último ter sido recusado para servir na guerra. Inspirado pela cantina Stage Door de Nova Iorque, foi decorado ao estilo de um celeiro de Nova Inglaterra, e entreteve mais de três mil soldados todas as noites. Alguns ficavam ali vindos de campos situados a cinquenta milhas dali, outros estavam de partida para a guerra, outros a regressar. Os seus anfitriões, sendo eles Bing Crosby, Basil Rathbone, Eddie Cantor ou Fred McMurray, garantiam que o espectáculo seguisse sobre rodas: “Amigos, detestamos ter de fazer isto, mas milhares dos vossos camaradas estão lá fora, à espera para ver o espectáculo. Vamos pedir a todos os que estão aqui há uma hora ou perto disso para saírem, por forma a que os outros possam entrar.”
Uma vez lá dentro, uma legião de celebridades, de Abbot e Costello a Rita Hayworth e Joan Crawford, servia comida, dançava com os militares e limpava o chão. Um soldado que estava de passagem podia perguntar a Betty Grable para dançar, ao mesmo tempo que o seu marido, Harry James, tocava na orquestra. As actualidades mostram uma Hedy sorridente a dar autógrafos e oferecer um beijo a um soldado tímido. Com efeito, para ela e outras alemãs e austríacas de alto perfil, como Marlene Dietrich, esta era uma oportunidade para lembrar às tropas onde se situavam as suas alianças. “Eu trabalhava constantemente na Cantina e trabalhava no duro”, recordava Hedy. “Algumas noites dava tantos autógrafos que eu pensava que o meu braço ia cair, mas eu não conseguia resistir aos rapazes e, no fim, era capaz de dançar com prazer.” [1]
Hedy participou também activamente na campanha pela aquisição de obrigações de guerra (war bonds). Juntamente com a sua amiga Greer Garson e outros colegas tais como Irene Dunne e Ronald Colman, ela era uma das cabeças de cartaz na tour de estrelas pela América. Hedy visitou dezasseis cidades em dez dias e são-lhe atribuídos 25 milhões em obrigações. Num só dia, de acordo com a maior parte das contas, ela vendeu 7 milhões em obrigações. Titus Haffa, um homem de negócios de Chicago, chegou às primeiras páginas dos jornais por sugerir que ele compraria 25 mil obrigações de guerra se Hedy o beijasse; mais tarde, faltou à palavra, dizendo que ele tê-la-ia beijado se ela tivesse comprado uma obrigação a essa cantiga.[2] Hedy foi recebida no City Hall de Nova Iorque pelo Mayor Fiorello La Guardia e percorreu o país de lés a lés. Depois ela liderou um movimento para persuadir toda a gente na MGM a escrever para amigos que estivessem a servir. A imprensa reportou que 2 155 cartas terão sido enviadas desde que Hedy começou essa campanha.
Hedy também atribuiu involuntariamente o seu nome a uma geringonça desenhada para criar confusão em espaços públicos e, com isso, facilitar a fuga do espião. O “Hedy” era um petardo, que, quando aceso, produzia o som de uma bomba em queda, lançando o caos entre a multidão. O seu inventor deu esse nome porque, disse ele, Hedy Lamarr lançava o pânico entre os homens sempre que ia a um sítio.[3]
Numa igualmente bizarra utilização do seu nome, Hedy tornou-se no tema de um conto no qual ela e um G.I. capturavam Adolf Hitler. Escrito por Ben Hecht para a revista Collier’s e publicado em 1943, The Doughboy’s Dream foi distribuído mais tarde como um panfleto para as tropas americanas. Hecht ficou descontente com o resultado final, que ele considerava com razão estar pobremente redigido; o que é de maior interesse agora é menos o sonho narrativo banal do que aquilo que revela sobre a posição de Hedy enquanto um ícone dos tempos de guerra. A história é escrita como se fosse um argumento para o palco ou para o grande ecrã e tem lugar num acampamento de regimento. Um dos detectives, Cookie Johnson, caiu num sonho exausto do qual ele é acordado por um sargento, que o envia com a missão de viajar de avião nessa noite para a Alemanha e trazer Adolf Hitler; a viajar com ele como sua companheira está Hedy Lamarr.
No avião, a bela Hedy confidencia a Cookie que gosta dele desde a segunda bobina de Torilla Flat, quando ela o viu sentado na quarta fila a comer nougats. Beijar Spencer Tracy foi, depois disso, apenas trabalho, era ele que ela amava.
A dupla é capturada, e depois de tirar proveito da engraçada pronúncia inglesa dos alemães, Cookie tem um tira-teimas com Hitler num ringue de boxe. Hitler veste uns calções com uma bordadura de suásticas. Cookie atira o Führer e a dupla leva o Hitler para o avião. Uma vez a bordo, Cookie pilota o avião, deixando Hedy sentada ao lado do cativo. Mal ganha consciência, Hitler começa a dizer palavras doces a Hedy, impulsivamente agarra na sua mão e cobre-a de beijos. Por um instante, Hedy parece apaixonar-se por ele, acariciando a sua bochecha. Cookie está aterrorizado: “Se tivesse trazido Lana Turner comigo ela teria permanecido fiel. Ou Betty Grable ou quem quer que seja.”[4] É sugerido que Hitler hipnotizou Hedy tocando “O Danúbio Azul” e mal o tema se transforma em “I’m a Yankee Doodle Dandy”, ela volta a si e conclui os seus deveres patrióticos. Eles regressam a casa para gáudio geral, que muda para uma trompeta militar quando Cookie desperta do seu sonho.
Por muito que a peça reconheça Hedy como a fantasia de guerra para as tropas, também toca na preocupação subliminar que nem ela nem os outros imigrantes podiam espantar – onde é que se situavam as suas alianças? Se falavam alemão, poderiam ser levados a simpatizar com o inimigo? Aqui, Hedy é redimida por uma dose dupla de “Americana”, o amor (que ela tinha de pleitear) pelo honesto soldado e um pouco de música patriótica. Por muito que ela tentasse, o papel de forasteira exótica e ameaçadora, dependendo no tempo e circunstância, sempre a ensombrou.
Num gesto mais avisado, Hedy tornou-se membro do grupo austríaco de Los Angeles, cujos membros propuseram que esta e o escritor Franz Werfel aparecessem juntos numa curta falada em alemão que promovesse a causa dos mais recentes imigrantes austríacos na América. Mas foi quando Hedy aplicou um dos seus pouco valorizados talentos para ajudar o esforço de guerra americano que a actriz criou um legado que acabou por a definir de um modo particularmente diferente.
Durante a guerra, Lamarr convenceu o compositor e pianista George Antheil a trabalhar com ela na invenção de um sistema de direcção de torpedos controlados por rádio, comummente referido como “Sistema Secreto de Comunicação”. Este facto espantoso só foi globalmente conhecido em anos recentes; na altura foi noticiado nos jornais como um assunto de pouco interesse. Em saltos de frequência, o sistema que se ficou associado à actriz e ao compositor é um processo relativamente simples, ainda que, nos anos que precederam, e durante, a Segunda Guerra Mundial, os seus pontos mais delicados escapavam aos cientistas da época. O procedimento envolve o envio de uma série de sinais de uma transmissor para um receptor de uma maneira que estes não conseguem ser interceptados, permitindo, assim, que o torpedo (por exemplo) seja lançado remotamente. Não só é essencial que a informação passe de um transmissor para um receptor, é crucial da mesma maneira que a mensagem não seja bloqueada por terceiros.
Desde meados dos anos 30, a marinha alemã andava a trabalhar num dispositivo que lhe permitisse lançar mísseis no mar. A ideia mais óbvia – agarrando uma corda ou um arame ao aparelho – era pouco prática. A corda ou o arame podia quebrar ou envolver-se em objectos intermédios. O controlo por rádio oferecia outra solução, e os engenheiros alemães desenvolveram uma antena com 300 metros que iria agarrar-se ao torpedo. O próximo desafio seria controlar isto.
De acordo com o Professor Hans-Joachim Braun, um contrato substancial foi firmado com a empresa alemã Siemens & Halske para o desenvolvimento de tecnologia de controlo de mísseis. Foi só quando a guerra estava prestes a estalar que a ideia o salto de frequência foi abordado:
“foi, sem dúvida, discutido num encontro em Julho de 1939, e é provável que a noção tenha surgido numa conversa de Fritz Mandl alguns anos antes. Siemens & Halske deveria ter um sistema de controlo por rádio preparado para o final de 1939, mas o estalar da guerra redireccionou as prioridades militares, e o projecto acabou num beco sem saída entre continuadas incertezas sobre encravamento, transmissores pesados e penetração subaquática.”[5]
Se os técnicos do exército alemão desistiram da ideia, Hedy viu uma oportunidade para demonstrar, de uma vez por todas, a sua lealdade ao seu novo país, ao mesmo tempo que, desse modo, satisfazia a sua própria curiosidade intelectual e inquietude. Ela também pode ter procurado esta oportunidade com o objectivo pessoal de ganhar algum dinheiro, o que ela conseguiu, meia década depois. Nos primeiros anos da guerra, contudo, ela encontrava dificuldades em refinar os detalhes dos saltos de frequência. Precisava da ajuda de George Antheil.
Hoje, George Antheil é mais conhecido pela sua composição de Ballet Mécanique (1924), mas anos antes da Segunda Guerra Mundial, Antheil, que nasceu em 1900 em Trenton, Nova Jérsia, actuou enquanto pianista pela Europa fora. Durante os anos 20, este prodígio de palmo e meio com o seu cabelo loiro e olhos azuis de criança adquiriu a reputação de ser não só o mais inortodoxo mas também o mais talentoso compositor americano do seu tempo. Nada na sua música se conformava com as expectativas do auditório clássico, muito menos o seu uso do piano como instrumento de percussão. Tumultos entre a multidão surrealista normalmente acompanhavam uma noite num concerto de Antheil, e o seu grupo de amigos incluía Gertrude Stein, Ernest Hemingway, James Joyce, Ford Madox Ford, Ezra Pound, F. Scott Fitzgerald e Sylvia Beach. Vivendo num apartamento acima da livraria de Sylvia Beach, Shakespeare & Company, Antheil estava particularmente próximo de Ezra Pound, que escreveu vários tratados que colocavam o trabalho de Antheil no centro da composição musical modernista. Antheil também compôs para Joyce e W.B. Yeats.
A estreia de Antheil em Paris foi no famoso teatro dos Champs Elysées, onde ele interpretou três das suas sonatas. O evento foi filmado para e incluído no filme surrealista L’Inhumaine (A Desumana, 1924), de Marcel L’Herbier. Atraídos pela sugestão de que o concerto iria ser incluído num filme, a elite burguesa de Paris chegou e acabou a esfregar ombros com surrealistas e dadaístas. Outros acorreram porque ouviram falar da fama do compositor americano, que atraía tumultos sempre que tocava. Ezra Pound estava lá, tal como o surrealista Ferdinand Léger, os compositores Erik Satie e Darius Milhaud e James Joyce. A agitação era tal que ao fim da abertura do primeiro movimento da sonata, ninguém presente conseguia ouvir a música. Enquanto alguns membros da plateia gritavam, assobiavam, e berravam indignados, os defensores de Antheil clamavam de volta. Deleitado com o efeito, Marcel L’Herbier pediu que a actuação se repetisse para o filme; eles concordaram, com o efeito hoje imortalizado, mesmo que apenas para amantes do cinema surrealista francês. Sempre pronto a capitalizar a notoriedade, Antheil fechava todas as portas da sala de concertos antes de actuar e colocava um revólver em cima do piano enquanto o preparava para tocar. Foi em Paris que ele compôs a primeira versão de Ballet Mécanique como a banda sonora de um filme surrealista com o mesmo nome. A peça exigia um pianista, dois pianos, três xilofones, sinos eléctricos, uma pequena hélice de madeira, uma hélice de madeira grande, uma hélice de metal, um gongo, quatro tambores de latão, e uma sirene.[6]
A reputação de Antheil não durou muito para lá das suas primeiras actuações (com os inevitáveis tumultos) de Ballet Mecánique. Ele regressou à América falido. Em 1934, Antheil tentou a sua chance a compor bandas sonoras para filmes, começando pela música para dois filmes de Ben Hecht e Charles McArthur, Once in a Blue Moon (1935) e The Scoundrel (1935). Ele começou a co-escrever a coluna de conselhos “Boy Advises Girl” para o Chicago Sun. A sua mulher, Boski, sobrinha de Arthur Schnitzler, também co-escreveu nessa coluna. Foi Boski, lembrou Ben Hecht, que tomava conta de Antheil: “Era uma mulher culta, de elegância bem modelada e capaz de se desdobrar como cozinheira ou mestre de cerimónias sem deixar cair o sorriso. Boski cozinha e cozinha, gerou e alimentou o seu filho; idolatrava, acarinhava, aplaudia e desculpava o seu Georgie durante trinta e cinco anos de vida, grande parte dos quais foi como cair nas Cataratas do Niagara num barril para dois.”[7] Quando um endocrinologista deixou uma pilha de livros em sua casa, Antheil começou a familiarizar-se com a então popular disciplina da endocrinologia, focando-se especialmente no seu aspecto criminal. Uma boa porção do futuro rendimento de Antheil veio de artigos que este escreveu sobre o assunto no Esquire. Nesses artigos, ele limitou o seu conselho em como usar o entendimento das hormonas para engatar mulheres. Em 1939, contudo, ele publicou Every Man His Own Detective: A Study of Glandular Criminology. A sua premissa foi a de que um criminologista glandular podia resolver crimes ao analisar provas forenses para determinar qual o tipo hormonal daquele que cometeu o acto criminoso. Em 1940 ele fez seguir o seu primeiro livro com The Shape of War to Come, sobre estratégia internacional.
Foi através do seu trabalho sobre endocrinologia que ele conheceu Hedy. Segundo o seu habilmente intitulado, se não pouco fiável, livro de memórias, Bad Boy of Music, o amigo de Antheil Adrian, o designer de roupa, e a sua mulher, Jane Gaynor, abordaram-no no verão de 1940 com um pedido de Hedy Lamarr para falar com ele sobre as suas glândulas. Um jantar foi combinado:
“Sentei-me e virei os meus olhos para Hedy Lamarr. Os meus globos oculares queimaram, mas eu não os conseguia desviar dela. Ali estava, sem dúvida, a mais bonita mulher à face da terra. Muitas estrelas do cinema não parecem tão bonitas quando vistas em carne e osso, mas esta parecia infinitamente melhor do que no ecrã. As suas mamas também eram boas, verdadeira hipófise.”[8]
“Hipófise” na análise de Antheil é um dos tipos hormonais tidos por serem excessivamente disponíveis sexualmente com uma tendência para a ninfomania. Hedy ficou aparentemente impressionada; ela terá acredito também nele quando ele disse que lhe iria recomendar um creme que iria aumentar o tamanho das mamas. Rabiscando o seu número de telefone com batom no seu carro, Antheil conta, ela pediu que ele lhe ligasse. E assim o fez e na noite seguinte viu-se a jantar com a estrela na sua casa em Benedict Canyon. Nervosamente, ele recomendou-lhe algumas substâncias activas que iriam resultar para o efeito.
Havendo ou não alguma verdade nesta versão de como eles se encontraram, ela dá uma boa estória; noutro lado Antheil escreveu que “parece que Hedy descobriu que algures no meu, não tão nefasto quanto isso, mas variado, passado eu fui inspector governamental da U.S. Munitions. Contudo… o meu conhecimento disso naquele momento em particular estava… algo empoeirado, mas eu era sem dúvida o único ‘cérebro das munições’ disponível nesta altura, e Hedy decidiu que teria de ser eu.” Nesta versão, parece que Hedy convidou Antheil para o visitar. Para a surpresa deste, ele encontrou a sua sala de estar repleta de livros ilegíveis e quadros de desenho muito usados que pareciam ter estado em constante uso. Hedy, ele descobriu, não estava, de facto, a sair à noite; ela ficava sentada em casa a trabalhar nas suas invenções.[9]
Se Antheil se revelou uma decepção no que diz respeito ao aumento das mamas, ele foi infinitamente mais útil no que diz respeito ao desenvolvimento da tecnologia dos saltos de frequência. Hedy explicou-lhe que se sentia desconfortável em permanecer sentada em Hollywood quando a Europa se encontrava num tal estado de necessidade. Ela sabia muita coisa, disse, sobre munições e armamento secreto e estava a ponderar sair da MGM e ir para Washington, D.C., para oferecer os seus serviços para o recém criado Inventors Council. Antheil sugeriu que ela poderia fazer mais pela guerra se ficasse em Hollywood. Hedy discordou; ainda assim, ela insistiu que Antheil fosse responsável pelo contacto com Washington.
Ainda que a maior parte dos relatos imputa às motivações de Hedy em inventar um “Sistema Secreto de Comunicação” um desejo geral de esta se vingar dos nazis, e particularmente do seu ex-marido, Fritz Mandl, Antheil acreditava que havia outra razão por trás dos seus esforços: “Hedy, apesar de toda a sua doçura, não se esqueceu que os alemães a despediram, deturparam a sua imagem e enganaram-na para figurar, para seu prejuízo, num filme chamado Ekstase!”[10] A Hedy que decidiu que os alemães deviam ser bombardeados por causa de Ekstase é provavelmente mais parte da fantasia do que da realidade.
Qualquer que fosse a motivação, Antheil foi tomado pelas ideias de Hedy. Os dois tinham muitas coisas em comum, o amor à música e pela Europa, e uma ligeiramente diferente perspectiva sobre o mundo. Os dois gostavam também de explorar os seus talentos para ganhar dinheiro. Antheil apreciava a inteligência de Hedy e a sua correspondência com ela está salpicada de menções calorosas à sua personalidade, mesmo que por vezes tivessem as suas zangas. Extraordinariamente, nunca houve qualquer indicação que os dois tiveram um caso. Ainda assim, esta nova amizade foi difícil para a mulher de Antheil. Como ele lembra nas suas memórias, Boski chegava a casa à noite para saber que o seu marido não ia jantar com ela; ele era esperado na casa de Hedy Lamarr e ela não tinha sido convidada. Eles estavam demasiado ocupados a trabalhar em algo.
“‘Oh, então vais ficar ocupado!’, exclamava Boski. ‘Fazendo o quê, posso perguntar?’ Ela era ligeiramente sarcástica.
‘Estamos a inventar um torpedo dirigido por rádio’, dizia ele.
‘Claro’, respondia Boski friamente.
‘Sim’, dizia ele. (Qualquer pessoa que me conhecesse sabia que eu nunca mentiria a Boski.)”[11]
Como acabou por se saber, Antheil estava apenas a dizer a verdade. O que ele contribuiu para a invenção dos saltos de frequência foi a noção que mudanças rápidas nas frequência de rádio podiam ser coordenadas tal como ele coordenou pianos e outros instrumentos para Ballet Mécanique. Uma mudança rápida de frequência, os dois concordaram, não podia ser bloqueada. Os dois passaram várias horas na vivenda de Hedy que usava fósforos e uma caixa de fósforos de prata colocada em cima do seu tapete, reflectindo sobre como desenvolver o seu conceito inicial. A proposta de Antheil passava por colocar-se um rolo de papel no transmissor e outro no receptor. Cada rolo seria perfurado com um padrão que parecia arbitrário. A transmissão mudaria de canal para canal numa sequência secreta que era demasiado complexa para ser interceptada. Claramente, o transmissor e o receptor tinham de estar perfeitamente sincronizados usando um mecanismo preciso que lembrava a sequência de canais. Se os dois rolos começassem ao mesmo tempo, um começando no ponto de lançamento e o outro lançado com o torpedo, eles permaneceriam em sintonia, tal como os rolos do piano mecânico em Ballet Mécanique. O sistema usava oitenta e oito frequências, o número de teclas de um piano.
Encorajados pelo muito divulgado lançamento do National Inventors Council no início desse ano, os dois enviaram a descrição das suas ideias para Washington em Dezembro de 1940. O presidente do conselho era Charles F. Kettering, director de pesquisa da General Motors. Inicialmente, Kettering ficou entusiasmado, encorajando Hedy e Antheil a trabalharem no sentido da patente. Pese embora muito da proposta inicial ser patenteável, uma ou duas das suas cláusulas eram demasiado semelhantes a outras ideias patenteadas e tinham de ser alteradas. Trabalharam em conjunto até 1941, com Hedy a frequentar a mais recente casa de Antheil (ele gostava de mudar de morada) para refinar o seu design. Em Junho, Hedy apelou Antheil para ir a Washington fazer pressão a favor da sua patente, mas Antheil preferiu confiar em William C. Bullitt, assistente especial do secretário da marinha, para exercer a sua influência. Bullitt era um velho amigo dos dias de Paris de Antheil e serviu aí como embaixador dos Estados Unidos; Antheil inundou-o com correspondência sobre a sua invenção.
Surpreendentemente, o coronel Lent do National Inventor Council desviou a história da invenção para a imprensa em Outubro de 1941, antes de esta estar concluída. A ideia foi recebida com entusiasmo, muito por causa do nome de Hedy: “a sua descoberta é tão vital para a defesa nacional que os oficiais do governo não permitirão a publicação dos seus detalhes”, noticiava o New York Times.[12] “A sua invenção, mantida secreta pelo governo, é considerada de grande potencial dentro do programa nacional de defesa”, concordava o Los Angeles Times.[13] Em circunstâncias normais, o Patente Office deveria emitir uma ordem de sigilo. Pode-se especular que o Inventor Council terá vazado a informação, não porque eles planeavam usar a invenção, mas para um propósito de relações públicas. Quão bizarro e excitante era ter-se Hedy Lamarr a conceber uma invenção bélica!
O Dr. MacKeown, professor de engenharia elétrica do California Institute of Technology, ajudou-os a limpar os erros e a patente (número 2,292,387) foi concedida no dia 11 de Agosto de 1942. Os nomes identificados no documento, intitulado “Sistema Secreto de Comunicação”, são Hedwig Kiesler Markey [nome de nascença de Hedy Lamarr] e George Antheil. Especifica que um plano de observação de alta altitude poderia dirigir um torpedo por cima.
Esperançoso que medidas fossem tomadas para ajudarem no desenvolvimento da sua invenção, Antheil fez pressão para obter fundos para futuras pesquisas junto de, entre outros, o seu amigo Bullitt. Numa série de cartas solidamente fundamentadas, Antheil sustentou que a América precisava de responder à superioridade da tecnologia naval alemã. Mas o esforço de guerra não iria ainda beneficiar das ideias de Hedy e George Antheil e os dois deram por si a serem bloqueados por mais altas hierarquias.
Sem dúvida, o National Inventors Council em Washington não podia imaginar que a proposta feita por uma estrela de cinema austríaca e um esquecido pianista poderia ter mérito. Antheil tentou, mas em vão, argumentar a favor do seu caso: “Da mesma forma, uma curiosidade desta invenção é que a sua co-inventora é a senhora Hedy Lamarr, a estrela de cinema (que é uma grande amiga minha), que, curiosamente, tem tido uma experiência considerável, que não é nova, a propósito deste assunto. O seu primeiro marido, Fritz Mendel [sic], foi em tempos um dos maiores produtores de munições na Áustria, pelo que a senhora Lamarr tem uma aptidão natural para esta nada feminina ocupação de inventora.”[14]
A marinha respondeu que a proposta não podia ser trabalhada e era demasiado volumosa para ser usada dentro de um torpedo de dimensão média. Antheil ficou enfurecido com tal insensatez:
“Ora, se havia uma única crítica que não podia, ou devia, ter sido feita era AQUELA.
Os nossos dois mecanismos fundamentais – os dois sendo completa ou parcialmente eléctricos – podem ser construídos tão pequenos que ELES PODEM SER COLOCADOS DENTRO DE UM RELÓGIO BARATUCHO!
Eu sei (ou penso que sei) porque é que eles disseram isso. Na nossa patente, Hedy e eu tentámos elucidar melhor sobre o nosso mecanismo ao explicarmos que uma certa parte trabalhava um pouco como o mecanismo do piano mecânico. Aqui, certamente eles cometeram o seu erro. Os reverendos e detestáveis cavalheiros de Washington que avaliaram a nossa invenção não leram mais nada senão ‘piano mecânico’.
‘Meu Deus!’, imagino-os a dizer, ‘nós não conseguimos pôr um piano mecânico dentro de um torpedo!'”[15]
O Sistema Secreto de Comunicação não foi a única invenção que Hedy e George Antheil conceberam durante o início dos anos 40. Outro projecto consistia num projéctil antiaéreo que deveria explodir automaticamente não apenas quando atingia o avião (normalmente eles falhavam), mas quando estava próximo do avião. Um aparelho magnético agarrado ao míssil provocava a sua explosão quando atingia a mesma altitude que o avião inimigo; se o aparelho não fosse accionado, o míssil auto-destruir-se-ia por forma a não cair ao chão e destruir alvos amigos. Um aparelho garantia que o míssil permanecia inactivo antes de ser disparado.
Hedy e Antheil estavam entusiasmados com a sua proposta e após Antheil ter submetido, Hedy importunava-o à noite por telefone a perguntar se ele tinha recebido alguma resposta do Inventors Council. Os dois acordaram dividir irmamente qualquer benefício monetário que eles pudessem obter. O conselho, contudo, mostrou menos interesse no projéctil anti-aéreo do que no Sistema Secreto de Comunicação e Hedy começou a suspeitar que o seu amigo George estaria a tentar secretamente chamar a si os créditos pela invenção. Em Janeiro de 1941, num jantar em sua casa, a disputa atingiu um pico. Antheil fez acusações que rapidamente se arrependeu de ter feito e a sua amizade arrefeceu um pouco.
Apesar de Hedy permanecer como uma difícil parceira de invenções, os Antheils e os Loders [John Loder era o marido de Lamarr na época] continuaram a passar tempo juntos. Encontravam-se com regularidade para jantar e Hedy começou a ter um interesse maior nas composições de Antheil. Nalgumas ocasiões, a eles se juntava o extravagante o maestro Leopold Stokowski, que mais tarde iria dirigir a estreia da Quarta Sinfonia de Antheil. Hedy não se continha com sugestões para a composição, tanto que Antheil anunciou que ele lhe iria dedicar a então perto de concluída Quinta Sinfonia. De facto, ele poderá ter a intenção de dedicar “Heroes of Today” (1945) a Hedy pela sua entrega no patenteamento do aparelho de anti-encravamento, que fez dela uma heroína de guerra aos seus olhos. Essa abertura tornou-se no primeiro movimento da Sexta Sinfonia; contudo, no fim, ela não recebeu qualquer dedicatória.[16] Nesta altura Antheil já havia perdido o seu amor pelo Dadaísmo musical e abraçado um estilo mais populista e acessível, uma mudança que correspondeu ao momento político mas que pode também ter ido buscar inspiração à amizade com Stokowski.[17]
Antheil apresentou Hedy ao seu círculo; entre os seus amigos estavam Ethyl e Saul Chaplin. Quando eles visitaram a residência boémia dos Chaplins pela primeira vez, Hedy recuou timidamente, tal como era seu costume. Saul tinha estado a tocar no piano; Ethyl tomou o seu lugar no segundo piano e o casal lançou-se num dueto de Threepenny Opera de Kurt Weill. Um dos outros convidados, Farley Granger, ficou maravilhado ao testemunhar a transformação da estrela austríaca: “Ela juntou-se em completa animação. Se ela tivesse conseguido levar tanta alegria para os seus papéis, nada tê-la-ia parado.”[18]
Depois da publicação do livro de memórias de Antheil em Novembro de 1945, houve uma breve renovação do interesse no trabalho desenvolvido entre eles e Hedy telefonou a Boski para investigar. De novo, Hedy suspeitava que Antheil poderia estar, secretamente, a tirar proveito financeiro da sua invenção. Ele escreveu-lhe a explicar que estava longe de ser assim.[19] De facto, as suas memórias lembram Hedy com grande simpatia:
“A Hedy que conhecemos não é a Hedy que vocês conhecem. Vocês conhecem uma coisa que o departamento de publicidade da MGM tem, com toda a sua astúcia, feito sonhar. Essa Hedy não existe. Há muito que eles decidiram que, por forma a conferir suficiente sex appeal, têm de a tornar frontalmente estúpida. Mas Hedy é muito, mesmo muito inteligente. Comparada com muitas actrizes de Hollywood que conheço, Hedy é um génio intelectual.”[20]
Antheil também subscreveu a opinião, partilhada por muita gente e muitas vezes expressada pela estrela ela mesma, de que Hedy não estava imensamente interessada em ser actriz.
Parecia que a proposta do Sistema Secreto de Comunicação havia morrido. Mas nos anos 50, antes da patente ter expirado, ela foi usada, sem os nomes dos inventores, num equipamento concebido para comunicar entre o avião e sonobuoys – aparelhos cilíndricos atirados de aviões no oceano para a procura de submarinos inimigos. Os engenheiros da Hoffman Radio Corporation, que ganharam o contrato para a produção desses aparelhos, não tinham consciência de quem inventou esse sistema de comunicação. [21] Em 1957 o conceito foi de novo adoptado por engenheiros na Sylvania Electronic Systems Division em Buffalo, Nova Iorque. Nesta altura o primeiro chip computacional estava a ser testado e a invenção, usando electrónica ao invés de pianola, acabou por se tornar numa ferramenta básica usada para a segurança das comunicações militares. Apesar do sistema ser conhecido como salto de frequências (frequency-hopping), o seu nome oficial era CDMA (Code Division Multiple Access). Foi instalado em navios enviados para bloquear Cuba em 1962, cerca de três anos depois da patente de Antheil e Lamarr ter expirado.
Patentes subsequentes no domínio da mudança de frequências, geralmente não relacionadas com o controlo de torpedos, referem-se à patente Lamarr-Antheil como a fundação do campo. Em 1985, o sistema foi desclassificado para uso militar, logo quando a emergente indústria dos telemóveis discutia que sistema usar. Depois de um longo processo, CDMA foi adoptado como o standard e a invenção de Hedy Lamarr e George Antheil tornou-se a base de toda a moderna tecnologia telefónica (ou tecnologia de espectro expandido). A tecnologia de frequency-hopping é crucial para os telefones do Global System for Mobile (GSM) porque permite a privacidade entre os utilizadores. O seu conceito está na base também do principal dispositivo de bloqueio usado hoje, por exemplo, no sistema de satélites da Milstar usado pelos Estados Unidos.
Os cientistas não estão de acordo quanto ao impacto que a invenção de Lamarr-Antheil teve nas tecnologias mais recentes, incluindo a tecnologia de hoje dos telemóveis. Certamente, a actriz e o compositor foram apenas dois dos vários inventores que ajudaram a desenvolver o frequency-hopping durante a guerra e os anos entre as guerras. Certamente também, Hedy Lamarr foi o nome mais glamoroso associado a este trabalho, e o seu legado está contido na prova muito concreta do número de patente 2,292,387.
É muito provável que o glamour de Hedy tenha liquidado os competidores para o legado; nem o campo da invenção amadora nem a indústria da tecnologia têm sido associadas ao glamour de Hollywood, ainda menos à beleza e estrelato femininos. Adequava-se bem a estas indústrias elevar Hedy Lamarr (com o devido acompanhamento de George Antheil) à posição de figura emblemática. Como o último capítulo deste livro detalha, Hedy insistiu que fosse paga por isso. Curiosamente, Hedy não menciona o seu trabalho com Antheil na sua autobiografia e durante muitos anos ela nunca se referiu publicamente ao Sistema Secreto de Comunicação.
Ruth Barton
[1] Lamarr, H., Ecstasy and Me, Greenwich, Fawcett, 1967, p. 93.
[2] Clipping de jornal não creditado, Constance McCormick Collection
[3] Breuer, W.B., Deceptions of World War II, New York, Wiley, 2001, p. 184.
[4] Hecht, B., “The Doughboy’s Dream”, Collier’s (27 Fevereiro), pp. 11–23, 37–39. “Hedi [sic] Kiesler will nicht nackt austreten.” 1933, Wiener Allgemeine Zeitung (14 Fevereiro), p. 6.
[5] Braun, H.-J, “Advanced Weaponry of the Stars”, Invention and Technology (Spring), 10–16, 1997, p. 10-16.
[6] Whitesitt, L., The Life and Music of George Antheil: 1900–1959, Ann Arbor, Mich., UMI Research Press, 1983.
[7] Hecht, B., Letters from Bohemia, Londres, Hammond, p. 155.
[8] Antheil, G., Bad Boy of Music, Londres, Nova Iorque, Hurst and Blackett, 1945, p. 255.
[9] Antheil, G., s.d.
[10] Antheil, G., idem, 1945, 255.
[11] Ibid, 257.
[12] New York Times, 1 Outubro 1941.
[13] Los Angeles Times, 11 Outubro 1941.
[14] Antheil, G., Rough jottings, uncatalogued correspondence, H-N, Box 5, George Antheil Collection, Columbia University Libraries, s.d.
[15] Antheil, G., Letter to William C. Bullitt, Box 1, George Antheil Collection, Columbia University Libraries, 1942.
[16] Elyse Singer e Mauro Piccintini, correspondência com o autor, 18-17 Outubro 2008.
[17] A Time descreveu a Quarta Sinfonia como sendo “vulgar, estridente e descaradamente sentimental, tão apreciável como um jogo de baseball ou um dia em Coney Island. (28 Fevereiro 1944).
[18] Granger, 2007, 72. Outra das amigas de Antheil era a bailarina de Viena Tilly Losch. Ele apresentou-a a Hedy e elas parecem ter-se dado bem, ambas apreciando a atmosfera ligeira dos jantares na última casa dos Antheils.
[19] Antheil, G., idem, 1945.
[20] Antheil, G., idem, 1945, 258.
[21] Mock, D., The Qualcomm Equation, Nova Iorque, AMACOM, 2005, 16.