Quando já pouco falta para fechar o ano ainda estreiam em Portugal dois novos westerns, este com Jeff Bridges, e Bone Tomahawk (A Desaparecida, o Aleijado e os Trogloditas, 2015) com Kurt Russell. Ainda vimos em Setembro um remake do filme de 60 de John Sturges, The Magnificent Seven (Os Sete Magníficos, 2016) pela mão de Antoine Fuqua e claro, The Hateful Eight (Os Oito Odiados, 2015), um dos filmes do ano, onde Tarantino raspou as raízes da culpabilidade e da violência latentes na história do seu país, pela lente de um magnífico western whodunit revisionista. Basta acrescentar, um tanto ao acaso, alguns nomes como Kelly Reichardt [Meek’s Cutoff (O Atalho, 2010)], os irmãos Cohen [True Grit (Indomável, 2010)], Alejandro G. Iñárritu [The Revenant (O Renascido, 2015)], ou o mais recente Ti West (In a Valley of Violence, 2016) para perceber que o género continua a ser uma espécie de “parque de diversões”, ao mesmo tempo que é encarado como uma herança, uma espinha dorsal do cinema americano que, pelo menos desde The Great Train Robbery (O Grande Assalto ao Comboio, 1903) de Edwin S. Porter, vem sendo sucessivamente declinado. No fundo, fazer um western ainda é tido como a possibilidade de filmar qualquer coisa da essência da cultura americana, mesmo que essa essência vá tendo cada vez menos de essencial.
Nesta relação entre a recriação dos códigos de género e a actualização do seu universo, os exercícios mais interessantes são normalmente aqueles que melhor compreendem e gerem os processos de decadência do próprio western. Em parte, isso até acontece com este Hell or High Water (Custe o que Custar, 2016) que conta a história de dois irmãos, Tony (Chris Pine) e Tanner (Ben Forster), que resolvem assaltar várias sucursais de um banco no Texas até que tenham o dinheiro necessário para pagar a esse mesmo banco a hipoteca da casa de família que a recém falecida mãe lhes deixou. Mas aqui Mackenzie, ao adaptar a história de Taylor Sheridan [também argumentista de Sicario (Infiltrado, 2015) de Denis Villeneuve] percebeu que se ficasse pelo amor masculino e fraternal entre estes irmãos, no seio da manutenção dos códigos da família, ou mesmo que se agarrasse ao heist movie no oeste, pouco teria de novo a acrescentar.
Desta forma, a adicionar a um lado mais sério do filme – ligados aos actos fora da lei que os irmãos têm de levar a cabo “custe o que custar” (a expressão que dá título ao filme, “hell or high water”, designa a cláusula de certos contratos bancários que obrigam ao pagamento por parte dos clientes, quaisquer que sejam as circunstâncias) – há uma dimensão toda ela mais irónica que olha o western com o filtro da contemporaneidade. Esse outro lado é veiculado sobretudo pela figura de Bridges que aqui encarna um ranger texano em fim de carreira que investiga os roubos dos dois irmãos. Se em 2010, no já referido True Grit, Bridges “actualizava” John Wayne, numa personagem rezinga e idiossincrática que fazia o filme dos Cohen gravitar à sua volta, num todo mais desequilibrado que o original de 69 realizado por Henry Hathaway, agora o mesmo propósito surge ainda mais marcado.
É daqui que provém a mais interessante ideia do filme: já não se trata propriamente de um anti-herói com o qual o género abandonou a sua fase clássica, mas sim um homem que sublinha a ironia do seu próprio ocaso.
Bridges passa o tempo fazendo piadas de mau gosto, racistas, sobre as origens do seu colega de trabalho (com o qual forma o segundo par do filme e uma bela dupla burlesca) e quando se trata de antever o próximo passo dos assaltantes o melhor é esperar sentado em frente a uma das sucursais. É daqui que provém a mais interessante ideia do filme: já não se trata propriamente de um anti-herói com o qual o género abandonou a sua fase clássica, mas sim um homem que sublinha a ironia do seu próprio ocaso, como se o western pudesse ainda funcionar com os seus valores tradicionais apenas se numa versão já digerida e massacrada pela sua auto-crítica e renovação. Mackenzie coloca todas as suas fichas neste movimento dizendo-nos que aqueles polícias são gente a morrer ou presa numa qualquer máquina do tempo, que os bandidos nem sequer já sabem assaltar bancos modernos ou que os “cowboys” matam os índios apenas de riso, com as suas inconvenientes graçolas.
Além dos dois pares do filme que separam estes dois tons (e também duas gravidades diferentes que historicamente o género teve), o filme só raramente consegue sair da sua geometria. A excepção vem sobretudo por via da atmosférica banda sonora que Nick Cave e Warren Wellis compuseram para o filme, mas também das personagens secundárias: por exemplo, a senhora de um bar de uma terreola que durante antes serviu sempre o mesmo prato ou a testemunha de um dos roubos que nos diz que viu roubar o banco que o roubou a ele durante 30 anos. A circularidade do capital, do dinheiro roubado ao dinheiro lavado em casinos, e depois usado como devolução à entidade lesada, ilustra bem a ambiguidade moral das personagens. Pena é que essa circularidade também sirva para explicar que a vida destas personagens seja o trilho tantas vezes percorrido neste tipo de filmes e que mesmo os trejeitos de boca de Bridges a pedir novo Óscar (ou já agora de Chris Pine a procurar um lugar de leading man em filmes um pouco mais sérios) seja demasiado evidente, dada a evidência ainda maior de tudo o resto à volta.