Fui um adorador tardio no altar de Santa Meryl, apesar de alguns amigos de longa data me insultarem por causa disso. Fazia-me confusão que tanto da presença da Streep estivesse relacionada com a voz, com o sotaque – foi preciso eu chorar baba e ranho com as The Bridges of Madison County (Pontes de Madison County, 1995) de Eastwood para finalmente me render à evidência que a mulher era grande. Nada que chegasse, é certo, aos calcanhares da Hepburn – o The Philadelphia Story (Casamento Escandaloso, 1940) de Cukor, essa magnífica Philadelphia Story, e o The Lion in Winter (Leão no Inverno, 1968) são visitas regulares muito lá de casa. A Moore é grande, sim, mas o mais a que pode aspirar nesta altura do campeonato é a ser a próxima Streep, o que não é grande aspiração há que dizê-lo.
Mas eis senão quando… a Huppert.
Senhores, a Huppert.
Este ano vimos a Huppert quatro vezes nos écrãs portugueses – a professora de L’avenir (O Que Há de Vir, 2016) de Mia Hansen-Love, a suburbana de Asphalte (Histórias de Bairro, 2015) de Samuel Benchétrit, a fotógrafa de Louder Than Bombs (Ensurdecedor, 2015) de Joachim Trier, e, acima de tudo, a Michèle de Elle (Ela, 2016) de Paul Verhoeven. Não vi o Benchétrit, em compensação vi-a em Marivaux nas Fausses Confidences (2016) que Luc Bondy deixou filmado antes de morrer, e por estes quatro filmes perpassa uma santíssima trindade diabólica, mãe (na Hansen-Løve e no Trier), filha (no Verhoeven) e espírito muito pouco santo (em todos eles), e uma actriz que apenas merece um epíteto possível – fearless. Sem medo.
Como Thoreau, a Huppert contém multidões de um modo que nenhuma outra actriz contemporânea consegue – pense-se no que ela fez com Haneke na La pianiste (Pianista, 2001) ou com Hartley no Amateur (Amador, 1994), com Chabrol na La cérémonie (Cerimónia, 1995) e nos outros todos ou com Bozon no Tip Top (2013) ou com Honoré na sua versão da Ma mère (Minha Mãe, 2004) de Bataille, e como mesmo os pequenos papéis, em dimensão ou importância [de Copacabana (2010) a My Little Princess (Eu Não Sou a Tua Princesa, 2011), passando pelas Linhas de Wellington (2012)], se tornam enormes por ser Ela e por Ela não ter medo de nada. Ou antes talvez tenha e o esconda tão bem que nunca desconfiamos.
Pegue-se no Verhoeven. O exercício de perceber quem, se não a Huppert, poderia ter interpretado esta personagem, é elucidativo. Nenhuma actriz americana – não que a Streep, a Moore, a Bening, a Sciorra, a Tomei não o pudessem ter feito; apenas que Ela nunca poderia ter sido um filme americano, porque seria outra coisa, muito mais espartilhada pela rigidez moral que ainda persegue os americanos [é ver o clamor de escândalo à volta dos Passengers (Passageiros, 2016) de Morten Tyldum, que é uma história da carochinha ao pé do Verhoeven]. A Michèle de Ela assusta-nos e reconforta-nos em igual medida porque é tão igual a nós sendo tão diferente – no modo como trata o gato, limpa os vidros partidos, encomenda sushi para o jantar, é violada por um estranho e seduz perversamente o vizinho do lado com a esposa beata. Percebemos que todas as pessoas normais têm algo de excepcional; o truque da Huppert é trazê-lo ao de cima sem o tornar evidente, é ir lastrando a personagem com pequenos pormenores quase invisíveis que são o seu garante de gravidade, que lhes dão a humanidade suplementar que as torna em pessoas.
A verdade, pura e simples, é que mesmo quando Huppert aceita papéis em filmes que nos parecem abaixo do seu talento, nunca é um acaso, nunca é apenas porque sim. Quando a vemos no mesmo ano em Verhoeven, Hansen-Løve, Trier, Bondy, Nicloux, sei lá o quê mais, o porquê de tantos filmes diferentes e de tantas personagens nos antípodas revela uma inteligência que se diria quase felina a funcionar, onde o gozo puro da representação e a complexidade interna das personagens vêm ao de cima. Uma busca incessante de acolher e transmitir a experiência humana em todos os seus cambiantes, sem julgamentos nem preconceitos morais. Apenas com uma infinita curiosidade, empatia, compreensão. E nada, nunca, numa interpretação de Huppert, é gratuito. Lembro-me daquela resposta espantosa que ela dá no Amador de Hartley quando alguém lhe pergunta “como é que podes ser uma ninfomaníaca se nunca fizeste sexo?” : “Sou picuinhas”.
Graças a Deus que a Huppert é picuinhas.
Jorge Mourinha*
*Jorge Mourinha é crítico de cinema do jornal Público.