I, Daniel Blake (Eu, Daniel Blake, 2016) venceu a Palma de Ouro na última edição do festival de Cannes, era a consciência social do júri que o impunha, como o fora também o Urso de Ouro para Fuocoammare (Fogo no Mar, 2016). É certo que a estes filmes o cinema não está alheio e tanto Rosi como Loach são realizadores que pensam o seu meio, tanto como pensam a mensagem. Para Rosi tudo se construía em torno dos simbolismos que rodeiam a vista: o olho preguiçoso que não quer ver, o outro que está cansado, os dois que vêem turvo, um que se tapa, outro que se esforça e o mundo que se simplifica na planificação que a lente de uma câmara impõe à tridimensionalidade do real. Para Loach eu diria que tudo se resume àquele cão de três pernas que surge ainda o filme vai no início. Um cão vadio e tinhoso que ronda, coxeando, os sacos do lixo. Mas antes, um interlúdio cómico.
Lançado na semana passada, A Doença, o Sofrimento e a Morte Entram num Bar, é o “primeiro” livro de Ricardo Araújo Pereira (depois dos livros de crónicas e dos guiões dos programas de rádio – aliás, é mais um ensaio bem paginado que um livro propriamente dito) e nele o humorista escreve, a certa altura, o seguinte: “Muitas vezes, perante uma caricatura, fazemos comentários do género: ‘O nariz dele é mesmo assim’. Ora, se a caricatura estiver bem feita, o que estamos a ver é uma distorção grotesca desse nariz, e é interessante, portanto, que a realidade se nos apresente mais clara quando olhamos para uma deformação do objecto do que o objecto real. Aumentar uma coisa, colocá-la sob uma lupa, torna-a monstruosa. Como o que se procura aumentar é, em geral, o defeito, a monstruosidade agrava-se. Esse procedimento tem uma face cruel, claro, mas talvez tenha também um reverso compassivo: num certo sentido, uma imperfeição exagerada deixa de ser real.”
Parece-me que é neste efeito paradoxal da caricatura que o cinema de Loach muitas vezes se insere, e em particular I, Daniel Blake. O desejo de tornar evidentes as maleitas da sociedade, a sagacidade da sua descrição, a frieza dos procedimentos burocráticos que apresenta e a crueza do retrato social convertem-se, a partir de certo ponto, numa torrente imparável que ganha força própria e foge aos intentos ideológicos de Loach. Quando o defeito social é tão grande, e tão monstruoso como Loach o mostra, este surge já tintado por uma crueldade com laivos de irrealidade. Ou posto de outro modo, o efeito choque torna-se contraproducente ao exibir-se como mecanismo de manipulação narrativa, sublinhando os desejos panfletários de toda a empresa. [Se dúvidas restam sobre estes momentos de desequilíbrio (melo-)dramático vejam-se as cenas do banco alimentar ou o final do filme – o desnecessário murro no estômago dramatúrgico serve apenas o propósito de expor as articulações da maquinaria ideológico-lacrimejante de Loach].
Certo é, no entanto, que Loach tem a habilidade (e a elegância, pode dizer-se) de evitar a planura do panfleto quando traça o retrato das classes mais pobres em Inglaterra. Outros realizadores só encontrariam negrume num ambiente social que Loach filmou: todos aqueles com os quais os protagonistas se cruzassem seriam, aos seus olhos, sádicos e perversos à espera da primeira chance para atacarem aqueles que estão mais frágeis. À degradação económica promovida pelos mecanismos do estado juntar-se-ia uma degradação moral dos vizinhos, dos falsos amigos, dos empregadores. Loach contraria isso de forma sistemática. São na verdade esses os momentos que lançam luz na pintura, aqueles em que o gerente de loja desculpa o furto, o guarda oferece ajuda, o vizinho auxilia o outro, ou o utilizador da biblioteca pública gasta alguns minutos do seu tempo a ajudar um info-excluído a utilizar o rato. Aí Loach mostra um mundo a cores fora das portas do centro de emprego, e talvez pelo cinzentismo da burocracia kafkiana essas cores pareçam ainda mais vivas.
Mas falava de cães, um com três pernas apenas. Quando se vêem muitos filmes é normal que os imaginários de uns se cruzem com os dos outros e certas aproximações se tornem evidentes (apenas promovidas pela proximidade temporal e menos por uma conexão de facto – lógica ou programática). Pois bem, estão em sala três filmes nos quais surgem imagens de cães que funcionam como súmulas das respectivas obras: um cão vestido de super-homem que mija em cima da capa em American Honey (2016) de Andrea Arnold – a decadência do heroísmo americano ou a consciência do embuste dessa construção heróica -, o cartoon da New Yorker em que dois cães conversam em frente de um monitor de computador e a legenda afirma “na Internet ninguém sabe que és um cão” em Lo and Behold, Reveries of the Connected World (Eis o Admirável Mundo em Rede, 2016) de Werner Herzog – a construção da alteridade no mundo das redes sociais e o efeito esquizofrénico dessas diferentes máscaras digitais – e, por fim, o cão de três pernas de I, Daniel Blake – manifestação maniqueísta da máxima perseverança (contra todas as adversidades), o cão que coxeia entre o lixo, que continua, sempre. Faria chorar as pedras da calçada se não as fizesse rir antes.
E regressando a Araújo Pereira, “A comédia costuma dedicar-se a examinar gente aflita, e é possível que ninguém esteja tão aflito como uma pessoa que tem de lidar com uma ideia ampliada até às ultimas consequências. (…) É como se o trabalho do humorista fosse ir acrescentando peso, aos poucos, com o propósito de testar os limites da capacidade do objecto para o suportar. Curiosamente, essa sobrecarga atinge um ponto em que deixa de afligir. O momento em que o excesso de peso se torna absurdo, e por isso impossível, parece trazer consigo aquele alívio que está presente na expressão ‘perdido por cem, perdido por mil'”. E onde se lê comédia leia-se drama. E onde se lê humorista leia-se cineasta político.