I don’t think I’ve ever really experienced a moment of ecstasy, no.
Paciente durante sessão de psicoterapia em The Other Side of the Underneath, 24’ 21’’
Se há cineasta que se preocupou com o problema do êxtase na vida e das forças sociais, políticas e culturais que contribuem para a refrear, foi Jane Arden, um dos grandes nomes da criação feminista britânica entre os anos 50 e 70 do século XX e autora da polémica longa-metragem The Other Side of the Underneath (1972) . A história do legado de Arden é marcada pelo esquecimento e pela virulência crítica, responsáveis por uma dificilmente compreensível ausência de referências nos grandes compêndios sobre o cinema britânico, como, por exemplo, nas quatrocentas páginas, supostamente definitivas, do livro British Cinema de Amy Sargeant (2005). Apenas no seguimento da publicação em DVD e Blu-ray do filme, pelas mãos do BFI em 2009, vários ensaios sobre a obra da artista galesa foram produzidos, e ainda, este ano, reeditada uma das suas mais célebres peças de teatro, The Party, pela Samuel French.
Jane Arden em Separation (1968) de Jack Bond
Foi precisamente este texto que a lançou na escrita dramática, tendo sido encenado e protagonizado por Charles Laughton no New Theatre (actual Noël Coward Theatre), naquele que seria o último espectáculo do actor inglês no seu país natal. Apesar de algumas comparações com a frescura e juventude de Françoise Sagan, que o próprio Laughton, contudo, irá procurar atenuar, as críticas ao texto foram particularmente desinteressadas, merecendo o protagonista todas as laudas no seguimento da estreia. Depois de breves trabalhos enquanto actriz de cinema (nomeadamente nos policiais Black Memory (1947) de Oswald Mitchell e A Gunman Has Escaped (1948) de Richard M. Grey, e chegando a contracenar com Harold Pinter numa versão da peça Huis Clos de Sartre encenada para a televisão por Philip Saville), Arden envolve-se politicamente com movimentos feministas radicais e apaixona-se pelas teorias da antipsiquiatria. E é nesta etapa que o seu percurso começa a divergir do de tantas jovens autoras e actrizes que tinham tentado vingar no mundo do teatro e do cinema britânicos nos anos 50 e 60. O primeiro passo na nova direcção artística de Arden será a escrita e encenação da peça Vagina Rex and the Gas Oven, texto profundamente revolucionário, tanto do ponto de vista social como enquanto proposta conceptual, que será registado enquanto marco do teatro de vanguarda na Londres dos anos 60. No virar da década, Arden investirá na mesma linha, criando a companhia Holocaust, a primeira em Inglaterra só constituída por mulheres, que porá em cena A New Communion for Freaks, Prophets and Witches. E é neste contexto que decide, tomando o exemplo de outros casos não infrequentes na Grã-Bretanha deste período [como o do sublime Bronco Bullfrog (1969) de Barney Platts-Mills, também ele originalmente uma experiência de teatro social], transpor a aventura dramática para o cinema.
O que Arden faz em The Other Side of the Underneath, filmado de forma praticamente integral no sul do País de Gales com os oito membros do Holocaust, vivendo em comunidade durante a rodagem, e com populações locais, é um exercício que poucas metodologias de criação artística feminista prescreveriam, na medida em que não aparenta colocar nenhuma questão directa sobre as formas de luta social contra o patriarcado ou sobre a conquista de direitos políticos e legais pelas mulheres. O que está em jogo não é, porém, menos desafiador dos postulados institucionais e comunitários que regiam o Reino Unido naquela época tumultuosa, e constitui até, porventura, uma modalidade de comentário mais sofisticada e interessante. A premissa é a seguinte: na senda dos grandes filmes até então realizados sobre hospícios, de Das Cabinet des Dr. Caligari (1920) de Wiene e Kurutta Ippêji (1926) de Kinugasa a Lilith (1964) de Rossen ou Titicut Follies (1967) de Wiseman, Arden constrói no teatro e no cinema um manicómio fictício exclusivamente dedicado a esquizofrénicas, onde, através de uma sequência de sessões de terapia individual e colectiva, as mulheres tentam libertar-se de traumas passados. Falando sobre o Holocaust, Arden admite que a primeira agonia de que quer livrar-se é a da sua própria infância: “Holocaust Theatre is the ghost of my screaming mother. I sometimes am dreaming of nothing but the phantoms of my own paranoia. Just voices in my head. I confess I am mad.”. No entanto, quando se projecta através de uma personagem que interpreta no filme, a de uma psicóloga do hospício, assume uma postura violenta para com as pacientes, confessando assim, com rara lucidez, que, por um lado, uma pessoa frustrada ou desesperada dificilmente poderá ajudar outra e, por outro, que o sistema de tratamento institucional é não só profundamente ineficaz como terrivelmente degradante.
The Other Side of the Underneath (1972) de Jane Arden
The Other Side of the Underneath é um daqueles filmes em que a experiência de rodagem é, programaticamente, tão reveladora para os actores quanto a de visionamento o é para os espectadores. Como em La Pyramide humaine de Rouch (1961) ou Appunti per un’Orestiade africana de Pasolini (1970), as actrizes de Arden utilizam o envolvimento na criação cinemática para enfrentarem os seus preconceitos e os abolirem. Neste caso, a experiência passou pelo consumo de drogas, psicotrópicas e alucinogéneas, em grandes quantidades durante a preparação das sessões de terapia colectiva, tomadas não só pela equipa artística como pela técnica. Por outro lado, relatos de produção apontam para inúmeras situações de grande perigo, em que todas as indicações de segurança eram negligenciadas: cenas filmadas em celeiros cheios de palha e iluminadas com velas espalhadas pelo chão, ou sequências rodadas em telhados arruinados de fábricas abandonadas. Desta forma, se o problema de que as personagens mais se queixam ao longo da narrativa é o da falta de intensidade vivencial (provocada pela pressão da sociedade patriarcal e, acrescentaria eu, da mundividência vitoriana, ainda tão presente no Reino Unido de hoje), ele é resolvido, ou pelo menos contrabalançado, não só pela proposta narrativa do filme mas também, e sobretudo, pelas próprias características do modo de fabricação. São múltiplas as histórias de extremismo (como causa e consequência) associadas à produção do filme, entre as quais a imolação do marido da violoncelista e pai da criança que surge em vários pontos da longa-metragem.
O resultado desta singular abordagem à realização e desta invulgar disposição para o insólito é, naturalmente, um objecto muito fragmentário, cru, granuloso e livre, em que o êxtase da libertação se concretiza nas mais variadas cenas onde os limites do comportamento humano – e os da criação cinemática – são furiosamente testados. A embriaguez da filmagem dá origem, por outro lado, a ritmos excêntricos e tonalidades esdrúxulas, verificáveis sobretudo nas sequências em que Arden procura dar a oportunidade às suas actrizes para, numa tentativa de despojamento da sua humanização condicionada, regressarem ao seu estado primário e animal – e para, a partir desta situação, construírem, com clarividência e empoderamento, novas identidades. Neste capítulo, três sequências selvagens merecem particular destaque, todas elas fazendo pensar em cineastas que, precisamente na mesma altura, estavam a realizar energéticas exortações à animalidade do ser humano:
- Federico Fellini: uma mulher de vestido de noite deitada numa cama com uma cabra, num quadro reminiscente de um palheiro crístico truncado, é visitada por uma palhaça que, numa aterradora e aguda rima cantada, a censura pelo seu desejo sexual e a faz sentir-se culpada. Aqui, o registo do terror é introduzido por uma claustrofóbica filmagem de um quarto exíguo, mas sobretudo pelo Mickey Mousing da banda sonora, que reforça o carácter surreal e profundamente perturbador das imagens.
- Stephen Dwoskin: uma mulher está nua, ajoelhada no chão, a tentar impetuosamente limpar o seu corpo de uma sujidade imaginária e a gritar ininterruptamente a palavra “dirty”. A ferocidade dos gestos e a cadência ritmada da cena lembram o loop das bandas sonoras das curtas-metragens experimentais do cineasta americano, especialmente da repetição ad nauseam do nome da protagonista de Trixi (1969) e do ruído áudio (acompanhado pelo visual) de Dirty (1971), filme igualmente preocupado com a imundície atribuída pela cultura patriarcal à figura da mulher sexualizada.
- Pier Paolo Pasolini: a mesma mulher, sem a peruca da cena anterior, está num altar improvisado dentro de uma construção de aparência medieval, e ingere compulsivamente alimentos que depois vomita. Neste retrato de uma bulimia nervosa, doença cujos critérios de diagnóstico só cinco anos mais tarde seriam cientificamente estabelecidos, Arden investe no contraste entre a nudez e singeleza dos corpos e dos espaços e a violência do comportamento humano, ditado por imposições estéticas da sociedade.
Anti-Clock (1979) de Jane Arden e Jack Bond
Depois destes e de outros momentos operáticos onde diagnostica o sofrimento feminino, provocado, segundo a sua perspectiva expressa, pelos sistemas das sociedades androcêntricas, Arden avança para uma segunda parte do filme, onde oferece soluções a estas vicissitudes existenciais. Mais uma vez, a dramaturga será criticada por não sugerir propostas concretas de luta, preferindo avançar linhas de comportamento individual e colectivo ligadas ao misticismo e à interacção afectiva com o mundo. Duas perspectivas são particularmente fortes em The Other Side of the Underneath. A primeira é a do amor livre, ecoando a brilhante filosofia da ensaísta anarquista americana Emma Goldman (“[L]ove is free; it can dwell in no other atmosphere. In freedom it gives itself unreservedly, abundantly, completely.”) e concretizando-se numa das cenas pioneiras (eventualmente até a primeira, segundo o testemunho de artistas envolvidos no processo) em que sexo explícito é visto no cinema britânico: a personagem interpretada por Jack Bond, companheiro de Arden e produtor do filme, faz amor com uma das mulheres do Holocaust junto a um rio, no meio da natureza. A segunda é a do “circo”, quando a trupe da encenadora interage com uma festa hippie realizada numa aldeia galesa e onde o olhar horrorizado perante o grotesco espectáculo humano é conjugado com uma infindável ternura para com os outros representantes de grupos sociais vítimas de discriminação e opressão: os jovens, os loucos, os deficientes físicos e os artistas populares, cuja condição, segundo Arden, rima com a das mulheres nos anos 70 no Reino Unido e no planeta.
Anti-Clock (1979) de Jane Arden e Jack Bond
The Other Side of the Underneath foi o único projecto cinematográfico realizado a solo por Jane Arden, sendo que os seus filmes posteriores seriam feitos em parceria com Jack Bond. Vibration (1975) e Anti-Clock (1979) são peças igualmente interessantes, caracterizadas por uma vontade de experimentação com o suporte vídeo e por uma obsessão visionária com o poder das câmaras de vigilância. O seu feminismo heterodoxo e o seu inconformismo perante as regras sociais e as da concepção cultural levarão, contudo, a uma brutal rejeição da obra de Arden pela crítica e por grande parte dos colaboradores. A 20 de Dezembro de 1982, aos 55 anos e depois de uma crise seguida de perto pelos antigos companheiros Philip Saville e Jack Bond, Arden porá termo à vida e deixará a obra na obscuridade. Só a recente preocupação com a preservação do seu legado tem, tímida e lentamente, levado a cabo a justa empresa de devolver Jane Arden à história do cinema e do teatro britânicos, bem como à do activismo feminista através da arte.