E sorria, misteriosa e secretamente. E havia muito de triste e algo de perverso nesse leve sorriso e nesses imensos, insondáveis olhos. Se eu estava certo que a ela se referia o verbo amar, já não sabia se esse amor existira para a perder a ela ou para perdição dos outros.
João Bénard da Costa, “Gene Tierney e a minha perdição”, in Muito Lá de Casa, 2.ª edição, Assírio & Alvim, p. 42
1. Não-estar no mundo
Quem é Marine Vacht? Não é pergunta retórica. Normalmente, em artigos jornalísticos ou mesmo académicos, este tipo de pergunta é utilizado como forma de insinuar que, nas linhas subsequentes, o autor disponibilizará uma quantidade de informações que revelará a biografia, o perfil, a carreira e uma série de curiosidades mais ou menos interessantes, mais ou menos fúteis, sobre a vida de alguém que, por uma razão ou por outra, permanece na sombra. E é neste ponto, caro leitor, que quero já deixar-lhe um alerta: este texto não estará à altura desse tipo de manancial informativo, desde logo porque aquilo a que me proponho a escrever é sobre cinema, e, depois, porque, mesmo que quisesse, tal redundaria numa penosa demanda. Acima de tudo, uma demanda inglória.
Acharam mesmo que eu ia escancarar, logo à primeira, o rosto de Marine em todo o seu esplendor? Aguentem, que é serviço.
Marine Vacht é uma “espécie em extinção”, não apenas no modo como combina a sua extraordinária beleza com o seu extraordinário mistério e este, por sua vez, com um extraordinário talento como actriz (a repetição de adjectivos não é falta de imaginação, se é que preciso de o sublinhar), mas, sobretudo, no modo silente como está – ou, precisamente, como não está – no mundo. Facebook (desenganem-se, esta página não é oficial), Instagram, Twiter, Tumblr. Tudo isso são coisas desconhecidas para Marine. “Redes sociais? É bom? Nunca provei” – dirá a francesa nascida em 1991 em Maisons-Alfort, um subúrbio a 8 km de Paris. O que de mais parecido com “redes sociais” se encontrará são alguns tumblr, como este (irónico como os tumblr e os blogs morreram com o Facebook e hoje sobrevivem por causa do Facebook), feito por obcecados e para obcecados, autênticos templos de culto onde os discípulos se reúnem para fazer, sem censuras, perguntas inocentes como esta ou insistentes interrogações sobre como encontrar um filme obscuro em que Marine entra.
É um lugar-comum a ideia de que os homens se deixam fascinar sempre pelas mulheres mais “misteriosas” ou “difíceis” de aceder. Não creio. Porquê? Por uma essencial e cristalina razão: não há assim tantas mulheres realmente misteriosas, insondáveis, impenetráveis (e com isto não quero dizer, obviamente, que todas as que não o são não sejam interessantes). Simplesmente, não há, ponto, e não é por isso que os homens não se apaixonam. Mas – mas existe Marine. E existem as palavras de Bénard da Costa que citei no início do texto, das mais exactas que alguém já escreveu sobre Marine, apesar de terem sido pensadas para… Gene Tierney.
2. Belle de Jour, toujours
Em 21 de Janeiro de 2014, eu escrevi uma carta aberta a Marine que ela nunca leu (não digo “que ela nunca vai ler” porque eu amo o cinema e ele permite-me a fantasia infinita), dizendo-lhe, em alto e bom som, a ela e ao mundo, que era a mulher mais bonita do mundo. Sim, Marine, e olha, digo-to também aqui na tua língua, para que compreendas cada palavrinha: vous êtes la plus belle femme du monde. Sam Parker, numa outra carta de amor encapotada de artigo jornalístico, não foi menos descarado que eu: “The 22-year-old spends much of the film [Jeune & Jolie] naked, but it’s her face you can’t stop staring at. In person, Vacth is no less astonishing. Perfect symmetrical features. Large, sad, grey-green eyes. Lips you could leap off. If she were described in fiction, you’d dismiss her character as idealised fantasy, if she were painted during the Renaissance, you’d assume the artist was flattering a patron’s daughter under the threat of death”.
Cama, lençóis brancos, quarto de hotel, o vulto de um homem, duas extraordinárias e lindíssimas actrizes. Descubra as diferenças (posso dar uma ajuda apontando para o soutien)
O meu absoluto fascínio contig… erm, com ela vem do primeiro filme em que a vi, de título que alguns classificariam como “intra-diegético” mas que eu prefiro classificar apenas como redundante: Jeune & Jolie (2013, de François Ozon). Jovem e Bela. Daí até escolhê-la para este dossier e colocar propositadamente o The Divine Feminine a tocar – 10 canções, 10 declarações de amor pleno e incondicional do Mac Miller à namorada – enquanto escrevo estas linhas foi um pequeníssimo passo, apesar dos 3 anos já decorridos desde que a vi no filme do Ozon – quando estamos apaixonados, o tempo passa a correr, não é o que se costuma dizer?
Depois de ter sido descoberta por um scouter numa loja da H&M enquanto fazia compras e iniciar uma fulgurante carreira como modelo (“só” arrumou Kate Moss como cara do histórico perfume Parisienne, de Yves Saint Laurent), Cédric Klapisch foi buscá-la para Ma part du gâteau (A Minha Fatia do Bolo, 2011), filme que não vi mas onde, à semelhança do seu filme seguinte (que também não vi, mas que, pelo aspecto da coisa, não parece famoso), Ce que le jour doit à la nuit (2012, de Alexandre Arcady), assumiu papéis menores. Há, ainda, a curta L’homme à la cervelle d’or (2012, Joan Chemla), objecto aparentemente impossível de encontrar mesmo na mais dark internet e cujo cartaz me deixa muito curioso (o trailer também é bem interessante). Ozon, realizador inveteradamente cinéfilo, não fez a coisa por menos: se o argumento de Jeune & Jolie já remetia, pelos temas que levanta (embora descontando toda a dimensão surrealista de Buñuel), para a personagem de Catherine Deneuve em Belle de Jour (A Bela de Dia, 1967), o cineasta francês pediu a Marine para se deitar na cama de costas nuas e… e mais nada. Para fazer apenas isso mesmo, porque a sua expressividade, a sua beleza, o seu, lá está, mistério fariam o resto. O “resto” é “só”, precisamente, Catherine Deneuve. Citando o próprio Ozon, “I could only make the film if I had an actress who was fascinating to look at (…). It had to be an actress that the viewer, and myself, wanted to look at – almost as you’d look at an insect”.
Gesto tão arriscado quanto conseguido – e que, correndo mal, bem poderia ter “queimado” a jovem Marine em tão precoce momento da carreira –, essa citação cinéfila acabou por tornar explícito o que o resto do filme já indiciava: a aproximação de Marine a uma das maiores actrizes da história do cinema e, consequentemente, a sua elevação, por mérito próprio, a actriz de enormíssimo talento, carisma, beleza, sensualidade. De resto, das actrizes franceses que lhe são geracionalmente próximas, não encontro nenhuma com tamanho potencial (e beleza, já agora). Adèle Exarchopoulos, Léa Seydoux, Stacy Martin (anglo-francesa), Lola Créton, Adèle Haenel. Todas actrizes talentosas, todas mulheres bonitas, ninguém duvida, mas, ainda assim, actrizes a quem falta – para utilizar um clichê que lhes é idiomaticamente próximo – o je ne sais quoi que Marine, desprendidamente, possui.
Se a afinidade de Marine com Deneuve se compreende e, acima, de tudo, chancela o talento dramático da primeira, a verdade é que nem será tanto com a protagonista de Belle de Jour que Marine, no seu trabalho de representação, mais se aparentará, mas sim com outra das musas do cinema de autor europeu dos anos 60 (Jeanne Moreau, Anna Karina, Claudia Cardinale, Brigitte Bardot, Anouk Aimée, a própria Deneuve, entre outras). E por falar em musas, existe essa extraordinária e feliz circunstância de Marine acabar deitada, nas últimas cenas de Jeune & Jolie, ao lado de nada mais nada menos do que Charlotte Rampling…
3. Monica Vacth? Marine Vitti? O Mistério, a (In)Comunicabilidade, a Alienação
Senão com Deneuve, com quem, então? Monica Vitti. Desde logo, uma daquelas coincidências milagrosas: o “M” do primeiro nome e o “V” do apelido da italiana são os mesmos de “M”arine “V”acth… É com a musa da “trilogia da incomunicabilidade” de Antonioni que Vacth talvez partilhe os traços mais marcantes das suas personagens e, mais do que isso, a sua forma de estar dramática, pelo menos em Jeune & Jolie e Belles Familles (Que Famílias!, 2015, de Jean-Paul Rappeneau), os dois mais importantes filmes – e em que beneficiou de maior “tempo de antena” – em que até agora participou (se bem que seja quase uma heresia comparar o segundo, de tão fraco, com o primeiro). No primeiro, é a actriz principal e centro gravítico de todo o filme, quase que o “realiza” (como tantos disseram de Isabelle Huppert no Elle de Paul Verhoeven); no segundo, é uma das muitas personagens do enredo de um mau filme mas em que, não obstante, o seu talento se conserva intacto mesmo entre a mediocridade.
Em Jeune & Jolie, Marine é Isabelle, uma jovem de classe média inserida numa família afectuosa e sem dificuldades, mas que, a dada altura, se decide prostituir (no que o filme acaba também por remeter, além de Belle de Jour, para Deux ou Trois choses que je sais d’elle). As relações que mantém com os seus clientes são, elas mesmo, misteriosas, mudas, não se percebendo exactamente que tipo de emoção ou prazer (porque o dinheiro não é, no seu caso, uma dificuldade) delas retira, embora algo de genuinamente afectuoso (paternal? “Iniciático”?) floresça com um dos clientes (Georges). Nunca, em momento algum, são oferecidas explicações – sociológicas, psicológicas, psicanalíticas – para esse facto (nem mesmo quando Isabelle consulta um psiquiatra), antes se pressentindo, sobretudo, que Isabelle se prostitui “porque sim”: porque quer experimentá-lo, porque tem curiosidade pelo sexo e suas dinâmicas (como muitas miúdas que, nos EUA, têm curiosidade pela indústria pornográfica e nela fazem carreira, caso de Sasha Grey), porque quer utilizar o seu corpo como instintivamente mais lhe apraz, porque quer sentir desejo e atracção (e outras pulsões mais subversivas: submissão, sadismo). Mas também porque parece estar insatisfeita, entediada (o ennui antonionio, então…), como as férias de Verão em família com que o filme se inicia sugerem (e onde Ozon filma uma das melhores cenas de masturbação feminina que me lembro de me ver no cinema, aquilo a que eu chamaria de um subversivo pillow shot, mas um capaz de fazer corar de vergonha o seu mestre, o Senhor Yasujirō Ozu). Enfim, Isabelle prostitui-se porque simplesmente o quer. Quer fazer o que lhe apetece e sem dar explicações a ninguém – e fá-lo. Dito assim, parece simples, mas obviamente que o “porque sim” ou o “porque quer” são as forma mais fáceis de passarmos à frente todo o mistério que permanece sobre Isabelle. O mesmo “porquê?” – impenetrável e nunca esclarecido – que paira sobre as personagens ensimesmadas e existencialmente atormentadas que Vitti assume em La Notte (1961, A Noite, embora aqui seja Jeanne Moreau a maior angustiada), L’avventura (A Aventura, 1960), L’eclisse (O Eclipse, 1962) e, abismo dos abismos, Il deserto rosso (O Deserto Vermelho, 1964).
É também no trabalho de representação propriamente dito que Vitti e Vacth se tocam: o mistério das suas personagens é também o mistério dos seus rostos, do modo esquivo como se movimentam e interagem com os outros, dos seus corpos e respectiva expressão física (a fugacidade das suas silhuetas, a discrição dos seus gestos, a sua quase “invisibilidade”). Fazendo eco das palavras de Manuel S. Fonseca, Vitti é “(…) incomparável na dissonância de expressões que é capaz de agarrar – nem sequer falo da voz ou do riso, mas tão só da máscara facial –, espantosa no modo como esquiva o corpo ou o deixa colar-se a uma parede, ou se protege numa porta” (1). Um mistério duplo, então: físico e psicológico, corporal e mental. Nunca ninguém sabe exactamente “o que vai na cabeça” de Vitti (e se até Il deserto rosso, o pouco que verbaliza ainda dá algumas luzes ao espectador, nesse filme, o silêncio é praticamente total e intrespassável) ou de Marine, nem que pulsões animam os seus corpos (em L’avventura e L’eclisse, por exemplo, Vitti, mesmo em momentos mais calorosos ou proto-sexuais, parece sempre apagada, alienada). Não as compreendemos, não as conseguimos interpretar, descortinar as suas motivações e angústias (e serão realmente angústias no caso de Isabelle? Tudo indica que sim, mas há sempre o risco de ver tristeza ou melancolia em personagens misteriosas e silenciosas quando pode nem ser o caso). Se é certo que Isabelle é uma mulher ainda mais fria nas suas emoções do que as personagens antonionianas de Vitti, no sentido em que as verbaliza (as emoções) ainda menos do que a italiana – nos momentos mais emocionalmente “vazios” ou “nulos”, Isabelle assemelha-se quase a um modèle bressoniano –, as duas comungam do mesmo indesvendável sentido no rosto, do mesmo indecifrável sopro nas (escassas) palavras que pronunciam.
Todo um mistério que, por efeito vérité, é sensivelmente o mesmo que Marine carrega nas (poucas) entrevistas que dá (unicamente de promoção de filmes, ponto), tendo sido na sequência de uma delas, aliás, que me atirei à descarada carta de amor. Vérité, por outro lado, que a própria Marine, a propósito da personagem de Isabelle em Jeune & Jolie, acaba de alguma forma por reforçar ao dizer, em entrevista, que “I can’t say I identified with her, but she touched me, I wanted to spend time with her. And naturally, as I played her, I brought part of myself to her”. Ou: “Her silence moves me, I can relate. She keeps her distance from people. She’s there, and yet she’s not there”. E o mesmo Sam Parker que citei lá atrás sentiu isso na pele: “Her answers are courteous, but pensive and short – sometimes, if I’m honest, uninterested – whether it’s about her career, her life, her tastes in art or the world outside. (…) you sense she is this way anyway: insular in a way that makes interacting with the outside world (…) an uncomfortable change in pace”. Por sua vez, escreveu Manuel S. Fonseca a propósito de Vitti em Il deserto rosso, “(…) Antonioni dava como líquido que a proximidade entre a actriz e a personagem tinha um relevo que em L’elicsse não se sentia” (2).
E aqui damos o salto natural para o segundo grande eixo – prolongamento do anterior (o Mistério) – por onde passa a aproximação de Vacth a Vitti: a (in)comunicação, melhor dizendo, a (falta de) capacidade para comunicar com os outros, nomeadamente, com a pessoas que se ama. Mas… mas será que o amor existe, de facto, quando não somos capazes de o comunicar à pessoa (supostamente) amada? E alguém crê que, nos seus filmes antonionianos, Vitti chega a estar, por uma vez, verdadeiramente apaixonada? Estará Marine nos filmes de Ozon e de Rappeneau?
Se Vitti protagonizou a badalada “trilogia da incomunicabilidade” de Antonioni, levando tal incapacidade ao extremo em Il deserto rosso, Vacth é uma incomunicadora por excelência tanto em Jeune & Jolie como em Belles Familles (um pouco menos no segundo). No primeiro, quando é confrontado pelos pais e pela polícia – autênticos símbolos da Normalidade, em oposição à Subversão que ela personifica – com a sua actividade, Isabelle nunca dá muitos ou claros motivos para o que faz, nunca se mostrando, porém – e esta é a pedra de toque –, arrependida. Acima de tudo, Isabelle não se consegue explicar, daí que – insista-se – poucas ou nenhumas conclusões se consigam retirar sobre o que a move. Não sabemos também o que a interessa no rapaz com quem começa a namorar (inclusivamente durante o período em que se prostitui) mas relativamente ao qual está sempre meia alheada, indiferente, para absoluta incompreensão dele (e nossa, pois claro). Aliás, todas as relações sociais – a começar pelas familiares – de Isabelle são um enigma, desde logo na forma fria e discreta como se comporta com a mãe e o irmão. Algo que faz de Isabelle alguém com uma personalidade profundamente “insular”, alguém que vive num mundo muito próprio, só seu, outra forma de sinalizar mais uma ponte entre ela e as personagens antonionianas de Vitti: a Alienação, i.e., a ideia de uma existência afectiva vivida numa “bolha” da qual, só muito pontualmente e com grande dificuldade, ambas saem e se abrem – sempre temporariamente, sempre em fuga, desde o primeiro minuto a pensar no regresso à bolha – aos outros. E se a “questão patológica”, i.e., a Depressão, parece algo razoavelmente óbvio em Vitti (definitivamente óbvio em Il deserto rosso), já não o é tanto em Isabelle, o que torna tudo mais nebuloso. Veja-se, a título de exemplo, esta cena em que Isabelle, depois de “aterrar” no planeta adolescente, o percorre, qual alien(ada), às apalpadelas observando os seres que o habitam e tentando entrosar-se com os seus hábitos…
Estranhamente, Isabelle já adoptará uma posição relacionalmente activa e inclusivamente sedutora junto do namorado da mãe, uma vez mais não dando quaisquer pistas sobre o porquê de o fazer: será apenas uma brincadeira de miúda ou haverá ali malícia, mesmo maldade? Terá gosto em fazer mal à mãe (e se sim, porquê? Absolutamente nada no filme aponta para uma conduta anterior da mãe que justificasse uma vendetta por parte de Isabelle)? Repare-se que não é só o realizador que, dirigindo a actriz a partir do argumento, faz dela uma personagem misteriosa; o que pretendo aqui avançar é a possibilidade de a actriz Marine Vacth ir mais além do que o argumento, inclusivamente passar “por cima” do realizador – a possibilidade de a esfíngica Marine colocar, por sua própria iniciativa, (ainda mais) sombra na luz, dúvida na certeza, mistério na evidência. No fundo, e tal como aludi lá em cima, a hipótese de Marine levar Ozon a fazer o que Huppert levou Verhoeven fazer: “Vi-a acontecer e filmei”.
Em Belles Familles (alguém mais obcecado do que eu perdeu tempo a montar um “filme” com grande parte das cenas em que Marine entra), Louise (Marine) vive numa cidade de província à qual chega, de passagem, Jérôme (Mathieu Amalric) para resolver uns problemas relacionados com a herança da família, no caso, a mansão que, até à morte do pai, era habitada por Forence. Ora, Forence era a namorada do pai de Jérôme (por quem deixou a mãe deste) e é, também, a mãe de Louise. Como já escrevi a outro propósito, “para quem acompanha o cinema francês, conhece-lhe uma certa tendência (…) para narrativas focadas em personagens que, a certa altura, normalmente por força das circunstâncias, chegam a pequenas localidades na província e aí se redescobrem/regeneram, frequentemente apaixonando-se e reencontrando a joie de vivre”. É o que acontecerá a Jérôme, um homem de negócios comprometido que vive em Xangai e que se apaixonará perdidamente por Louise, a qual vive, por sua vez, com um homem (amigo de infância de Jérôme) que não ama mas que mantém obediente aos seus caprichos.
O boy meets girl acontecerá, sim (aqui se insinuando uma relação proto-incestuosa), mas, ainda assim, Marine, mesmo interpretando uma personagem aparentemente mais “legível”, consegue investi-la – o que, novamente, me parece algo não inscrito no argumento nem sequer pensado pelo realizador – de mistério, singularidade, estranheza: Marine é, a um só tempo, mimada e inconsequente, fria e caprichosa, bruta e meiga, sisuda e idealista. O que lhe vai realmente na cabeça? Porque é que vive com aquele homem e por que razão se entrega tão rapidamente a Amalric (que, não sendo nenhum “príncipe encantado”, nem sequer é alguém muito diferente do seu namorado)? Uma vez mais, o saldo final é o de uma enorme insatisfação, de um tédio com a vida “de sempre” do dia-a-dia, daí que, no meio de um filme “limpinho” com personagens de espessura reduzida, Marine seja o grande elefante na sala, o ser dissonante que traz cinzento ao preto e branco.
O melhor que ainda se retira de Belles Familles, além do trabalho de representação propriamente dito de Marine, é mesmo isto
Especialmente visível em Belles Familles, pela sua montagem acelerada (a que já não existe em Jeune & Jolie), é o facto de Vacth de ser uma clássica actriz dos anos 60 também pelo modo como o seu trabalho de representação e a personalidade psicológica que empresta às suas personagens “desaceleram” os filmes em que entra, como que colocando um pau na engrenagem da linearidade. Vacth reclama tempo para que a olhemos, para que a perscrutemos, para que nos apercebamos de que, mesmo num filme sem história nem glória como o de Rappeneau, ela sobressai e fica na nossa cabeça muito para lá do filme.
4. L’avenir
Quanto a mim a maior actriz da sua geração, e com potencial para no futuro vir a ser falada como hoje falamos de Deneuve, Huppert ou Binoche, Marine tem o futuro nas suas mãos, sobretudo no modo como saberá – ou não – fazer escolhas (de filmes e, sobretudo, de realizadores com quem trabalhar). Se é certo que, como sustentámos acima, até num filme medíocre como Belles Familles (por esta altura, o leitor já sabe do único motivo que me levou a vê-lo), ela deixa a sua inconfundível marca e consegue fazer ressoar as palavras de Bénard da Costa que no início citámos, obviamente que terá de ser em filmes de outra envergadura, com outros realizadores-autores ao leme (gostaria, por exemplo, de a ver num filme de Hansen-Løve, Petzold, Philip Garrel, Assayas, Verhoeven, Brizé ou Céline Sciamma), que Marine poderá exprimir – e desenvolver – todo o seu talento. Esperemos que isso venha a acontecer já em La Confession, de Nicolas Boukhrief (o seu nome não é propriamente animador, mas concedamos o benefício da dúvida…), previsto para 2017, e no qual contracena com Romain Duris. Bonne chance, mon cher.
Caro leitor: chegada a hora de me ir embora, vou como se estivesse nos sapatos do Sam Parker naquela tarde em Londres depois da entrevista: “(…) I walk away from the most beautiful woman I’ve never met”. Vou, também, com a esperança de que, após este texto, passe a conseguir escrever, finalmente, o apelido de Marine à primeira. Troco sempre o “c” com o “t” ou este com o “h” – como num primeiro encontro com uma mulher por quem estamos caidinhos e os azares mais desajeitados nos acontecem, sabem?
* A segunda parte do título do presente texto é uma referência (e homenagem) a L’homme qui aimait les femmes (O Homem que Gostava das Mulheres, 1977), de François Truffaut.
(1) Manuel S. Fonseca, texto sobre Il deserto rosso in As Folhas da Cinemateca – Michelangelo Antonioni, Cinemateca – Museu do Cinema, 2008, p. 50.
(2) Ibidem, p. 55.