Entre 8 e 11 de Dezembro de 2016, decorreu em Lisboa a 7ª edição da Mostra de Cinema da América Latina, que se alarga até Loulé, entre 26 e 29 de Janeiro de 2017. A Mostra convidou o À pala de Walsh para conduzir uma entrevista ao principal convidado, o mítico cineasta Alejandro Jodorowsky, que viria a Portugal apresentar o seu último filme, Poesía sin fin (Poesia Sem Fim, 2016), estreado na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes 2016. Questões de saúde impediram Alejandro Jodorowsky, com 87 anos de idade, de se deslocar ao nosso país, pelo que a entrevista acabou por não acontecer. Em alternativa, para coincidir com a distribuição comercial de Poesia Sem Fim, preparámos uma análise ao filme, cruzando-a com um percurso pela obra de Alejandro Jodorowsky que, para além de cineasta, trabalha como actor, encenador, compositor, poeta, ensaísta, autor de banda desenhada, mimo, leitor de tarot e líder espiritual.
Filho de pais judeus oriundos da Europa de Leste, Alejandro Jodorowsky nasceu numa pequena cidade na costa do Chile. Em meados do século, seduzido pelas movimentações surrealistas, viajou para Paris, onde também estudou mimica com Marcel Marceau. Conta-se que aquando da sua chegada a Paris, numa madrugada, telefonou a André Breton, um dos pais espirituais do surrealismo, para se apresentar. Quando Breton lhe perguntou quem ele era, Jodorowsky respondeu que era um jovem de vinte e quatro anos que necessitava de se encontrar com ele, colocando-se à sua disposição, para salvar o surrealismo. Breton respondeu que era muito tarde e que se poderiam encontrar no dia seguinte. A resposta não agradou a Jodorowsky que considerou Breton velho e pouco motivado, pelo que se afastou dele. Os contornos do encontro com Breton, formam um dos maiores mitos que rodeiam a vida de Jodorowsky. Certo é que Jodorowsky nunca fez parte do grupo restrito que rodeava Breton, mas pinceladas surrealistas encontram-se dispersas pela sua obra, mesmo que numa interligação com outras influências que, à primeira vista, podem parecer menos evidentes.
Depois da passagem por Paris, onde realizou a sua primeira curta-metragem La cravate (1957), explorando a linguagem mímica, Jodorowsky instalou-se no México, onde encontrou um dos seus mentores espirituais, o monge budista Ejo Takata. Neste país, dedicou-se, primeiro, à performance e ao teatro de vanguarda e, depois, ao cinema, através da realização das suas três primeiras longas metragens: Fando y Lis (1968), El topo (1970) e La montaña sagrada (1973). Tal como o processo de Die Klage der Kaiserin (O Lamento da Imperatriz, 1990) de Pina Bausch, Fando y Lis expõe a passagem para a imagem em movimento das suas experiências na performance no âmbito do Mouvement panique, colectivo formado em conjunto com Fernando Arrabal e Roland Topor, que surgira como resposta à apatia do surrealismo.
Jodorowsky começa a desenhar um cinema alucinatório reproduzindo imagens que querem equiparar-se àquelas provocadas pelo consumo de alucinogénios.
Entre o psicadelismo, o surrealismo e o existencialismo, os happenings de Tadeusz Kantor, o teatro e o cinema, ou a narrativa fragmentada de Satyricon (1969) de Frederico Fellini, El topo e La montaña sagrada estão entre os melhores exemplos da sua actividade artística. Jodorowsky começa a desenhar um cinema alucinatório, susceptível de operar mudanças no estado de consciência do espectador e reproduzindo imagens que querem equiparar-se àquelas provocadas pelo consumo de alucinogénios. O êxito destes filmes foi notável, não apenas no seio da contracultura hippie, o que lhe permitiu lançar-se na ambiciosa empreitada de adaptação livre de Dune, célebre romance de ficção científica da autoria de Frank Herbert, anos antes de David Lynch concluir a sua versão mal amada, produzida por Dino De Laurentiis e com os efeitos especiais entregues aos mestres italianos Giannetto De Rossi e Carlo Rambaldi. Os contornos do fracasso da aventura megalómana de Jodorowsky, antevendo um filme com uma duração superior a dez horas, encontram-se plasmados em Jodorowsky’s Dune (2013) de Frank Pavich, sucesso crítico e de público que contribuiu para o reencontro de Jodorowsky com o produtor Michel Seydoux e o relançamento da sua carreira, nomeadamente entre o público jovem que não acompanhou a pujança da sua obra nos anos setenta.
Para a preparação de Dune, o realizador chileno convidou artistas de referência: Salvador Dali, Mick Jagger, Orson Welles e David Carradine na interpretação; Moebius na concepção visual; Chris Foss no desenho de naves e veículos espaciais; H. R. Giger no desenho da civilização Harkonnen; e Pink Floyd e Magma na banda sonora. Por não se enquadrar no seu modelo de “guerreiro espiritual”, prescindiu de Douglas Trumbull, o mago dos efeitos especiais de 2001: A Space Odyssey (2001 – Uma Odisseia no Espaço, 1968) de Stanley Kubrick, a favor do brilhante mas mais modesto Dan O’Bannon, após conhecer o seu trabalho em Dark Star (1974) de John Carpenter. Concluída a pré-produção com um gasto de milhões, o projecto foi mostrado a vários estúdios de Hollywood, em busca de financiamento. Todos deram a mesma resposta negativa: produção fascinante, mas realizador inadequado. Por conseguinte, é comovedor assistir ao desalento de Jodorowsky quando lembra o enterro do projecto após colocar tanta energia na sua preparação.
Nunca chegaremos a conhecer as eventuais feridas que um projecto com esta envergadura e excentricidade poderiam provocar em Hollywood caso fosse executado, dentro de um sistema de produção que mantém um controlo apertado sobre o nível de risco, anos antes das space operas de George Lucas. Mas, olhando para o cinema futuro, poderemos compreender a sua enorme influência, nomeadamente, por a equipa artística se ter posteriormente envolvido em marcantes títulos de ficção científica, em que repescou ideias que eram parte da pré-produção de Dune: Moebius (Alien, TRON, The Abyss, Le cinquième élément), Chris Foss (Superman, Alien, Flash Gordon, A.I. Artificial Intelligence, Guardians of the Galaxy), Dan O’Bannon (Star Wars, Alien, Lifeforce, The Return of the Living Dead, Invaders from Mars, Total Recall) e H. R. Giger (toda a série Alien, Species, Teito Monogatari, Prometheus).
Nas décadas seguintes, até 2013, Alejandro Jodorowsky realizou apenas três longas metragens. O esquecível Tusk (1980), passado na Índia durante a colonização britânica, aborda o cruzamento das vidas de um elefante e de uma mulher, que nasceram no mesmo dia. The Rainbow Thief (1990) é uma nova tentativa de trabalhar no contexto da industria, com um elenco de celebridades, incluindo Omar Sharif, Peter O’Toole e Christopher Lee, e uma belíssima cena de tempestade, surpreendente pela exigência de meios e qualidade de execução. Produzido por Claudio Argento, irmão de Dario Argento, Santa Sangre (1989) é um regresso feliz a ambientes autobiográficos – neste caso, o mundo do circo -, propondo uma reunião inesperada entre o cinema de Fellini e o de Argento. Repentinamente, afigura-se que estamos no reino do giallo, quando umas mãos desconhecidas de mulher assassinam cruelmente uma das personagens.
“A arte que não serve um propósito de cura não é arte.”
La danza de la realidad (2013) e Poesia Sem Fim (Poesía sin fin, 2016) compõem uma nova fase na obra do cineasta. No nosso país, o primeiro foi exibido no MOTELx, em 2014, e o segundo é a sua única obra que tem distribuição comercial. Podemos vê-los como as partes de um díptico em que a sua biografia se torna na principal e única matéria narrativa. Organizados por ordem cronológica, La danza de la realidad corresponde à infância de Jodorowsky em Tocopilla e Poesia Sem Fim acompanha a sua passagem para a idade adulta em Santiago do Chile, entre os anos quarenta e cinquenta, antes da partida para Paris. Alejandrito (Jeremias Herskovits, Adan Jodorowsky) escolhe seguir a carreira de poeta contra a vontade da família, pelo que foge de casa. Acolhido no seio da vanguarda intelectual local, convive com figuras que anseiam viver livremente, sem condicionamentos sociais, e que que se tornariam em prestigiados representantes da cultura da América Latina, incluindo Enrique Lihn (Leandro Taub), Stella Díaz Varín (Pamela Flores) e Nicanor Parra (Felipe Ríos).
Para contextualizar esta fase da sua obra, é pertinente recorrer a declarações de Jodorowsky, em que explica o seu posicionamento singular em relação ao cinema e à arte em geral. Descrevendo os seus filmes como “psicomagia”, terapia baseada na crença de que a execução de certos actos simbólicos pode agir sobre o inconsciente, libertando-o de traumas, Jodorowsky nota: “Para mim, a arte que não serve um propósito de cura não é arte. Mas quem deveria curar? A audiência? Impossível, porque o público não existe. O público foi colonizado pelo cinema americano, cujo objectivo é apenas relaxar, libertar o stress, enquanto dura o visionamento do filme. E o “cinema de autor”, supostamente mais profundo, lida sistematicamente com problemas sociais, uma das principais questões que não se deve “vender” ao espectador. Esses filmes sociais são histórias sobre pessoas pobres contadas por pessoas muito ricas. Fantasia pura! Então, quem se pode curar? Principalmente, eu. Em segundo lugar, a minha família. E apenas em terceiro lugar, uma audiência hipotética.”
Por lidarem directamente com a sua biografia, Poesia Sem Fim e o seu antecessor, são os filmes em que esta noção de arte se apresenta mais radicalizada. Se já havia aspectos recorrentes na sua obra que atribuíamos à sua experiência pessoal – a ditadura, o nazismo, o comunismo, o colonialismo, o cruzamento entre o sagrado e o profano, a desmitificação das noções clássicas de beleza, a castração familiar ou o incesto -, eles surgiam de forma matizada e em mutações compostas por alucinantes pinceladas surrealistas. Aqui, tudo se torna mais claro porque subsiste segundo um exercício introspectivo e a partir de uma indulgência regida pela ordem imperiosa de clarificar e, principalmente, de purificar. De resto, apesar de não ser algo novo, Alejandro Jodorowsky e outros membros da sua família são convocados para os papéis principais, interpretando o seu próprio papel, no caso do realizador, ou o de ascendentes, no caso dos filhos Adan e Brontis.
Se levarmos à letra as palavras do realizador e nos rendermos aos encantos da preguiça, em última análise, encontrar-nos-íamos perante uma soberba sessão de “psicomagia” com vista à resolução de traumas pessoais, que apenas diriam respeito à família Jodorowsky. Em contraponto às suas virtudes, aqui residiria a maior fragilidade de Poesia Sem Fim. Segundo Antonin Artaud, o Teatro da Crueldade revoltava-se contra as estruturas sociais e a tradição, recusando a existência de uma audiência passiva e iluminando-se no surrealismo para “nos inspirar com o magnetismo ardente das imagens e agir sobre nós como uma terapêutica espiritual cuja acção não seria esquecida”. Da mesma forma, Poesia Sem Fim pede um papel interveniente do público, desde logo na bem sucedida campanha de crowdfunding que contribuiu para concluir os trabalhos de produção do filme, mas igualmente a partir de uma dimensão alegórica que obriga a uma descodificação e interpretação pessoal das imagens.
O próprio Alejandro Jodorowsky encarrega-se da introdução, conduzindo-nos ao bairro operário em que se estabelecera a família Jodorowsky na chegada a Santiago do Chile, enquadrando a dificuldade de Alejandrito em sociabilizar dentro deste meio violento. Alejandro assumirá este papel noutros pontos do filme. É um registo que reconhecemos do cinema documental mas que também remete para a função do coro no teatro grego, enquadrando e comentando a acção dramática. De igual modo, podemos considerar que Alejandro se posiciona em relação a Alejandrito como, em Santa Sangre, Fénix (Axel Jodorowsky) se coloca por detrás da mãe amputada (Blanca Guerra), movendo os braços para criar a ilusão de que são os dela que se movem. Outro elemento apropriado do universo do teatro é o conjunto de “ninjas” vestidos de preto, uma espécie de contra-regra que ao longo do filme gere a mudança de cenários e coloca/retira de cena os adereços. Logo no inicio, são eles que levantam os pósteres que operam a conversão da decadência actual do bairro para a fervilhação que ali se vivia durante os anos quarenta.
No entanto, há uma importante figura da história do teatro, já aqui convocada, e cuja influência se torna omnipresente no filme. Se a herança de Frederico Fellini parece ter ficado para trás, é o trabalho do encenador polaco Tadeusz Kantor para o colectivo Cricot 2 – formado por uma comunidade artística que incluía artistas plásticos, teóricos e críticos – que paira teimosamente sobre Poesia Sem Fim. Antes de mais, tanto Jodorowsky como Kantor reconhecem influências do surrealismo e da estética circense, manifestando interesse pela linguagem gestual, rituais, performances e happenings, que alcancem quebrar a barreira entre o palco/tela e o público. Se tomarmos como ponto de comparação Umarla klasa (The Dead Class, 1977) de Andrzej Wajda, documentação da encenação de Tadeusz Kantor para a obra com o mesmo nome, outros pontos de contacto se tornam evidentes: a presença do encenador/realizador enquanto “mestre de cerimónias”, como um observador atento que apenas pontualmente intervém; a utilização de actores/figurantes que se movem e actuam como se fossem manequins; ou o uso de mascaras para apagar os traços de individualidade.
Quando se mantém na ordem do dia a discussão sobre a falta de diversidade na oferta das salas de cinema portuguesas, não podemos deixar de saudar a estreia comercial de uma obra de Alejandro Jodorowsky em Portugal, cinquenta e nove anos após a realização do seu primeiro filme, e desejar que ela encontre o seu público. Acrescente-se que a distribuidora Films4You faz este lançamento no momento certo, coincidindo com a distribuição em sala no resto da Europa, antes da sua disponibilização em formato de disco ou VOD no mercado internacional.