O género do documentário tem abandonado os moldes que o delimitam a uma abordagem mais convencional – suportado por uma narrativa linear e uma aproximação quase jornalística à verdade – deslocando-se para uma “desfronteira” entre o real e a ficção. É uma forma de representar uma realidade cada vez mais surreal (ou difícil de acreditar), e os filmes apresentados no Porto/Post/Doc em competição reflectiram esse paradigma, como uma mostra do panorama documental mais disposto a avançar e quebrar barreiras. Se em edições anteriores o festival apresentou filmes que situando-se no campo do documentário estavam dispostos a basearem-se em ficções, este ano alguns dos filmes seleccionados ultrapassam mesmo essa fronteira, para colocarem-se do lado do filme de ficção, apenas filmado como se fosse um documentário. Ainda assim, os filmes mais ressonantes acabam por ser os que através de uma boa história prendem-nos à realidade térrea.
Por todo o antagonismo à volta de The Act of Killing (O Acto de Matar, 2012), este parece pelo menos ter deixado um legado na forma como colocava os intervenientes da história envolvidos em recriações de uma realidade fantasiosa, que apenas servem para exacerbar a separação em relação à realidade e sublinhar o carácter surreal dessa interpretação. Em Tales of Two Who Dreamt (Histórias dos que sonharam, 2016) de Andrea Bussmann e Nicolás Pereda, a fronteira entre realidade e ficção joga-se precisamente no papel das personagens em tomar as rédeas de uma recriação alternativa. O filme acompanha uma família de refugiados de etnia cigana, que espera nos arredores de Toronto por uma decisão em relação ao seu visto de residência. Confinados na maior parte do tempo a um apartamento, estas personagens aparecem ao longo do filme a dirigirem uma adaptação livre do conto “A Metamorfose” de Kafka, em que o filho mais novo é o alvo da transformação, numa representação física do seu sentimento de exclusão no cenário adoptivo. Os pais interpelam directamente a câmara com indicações sobre a história, e discutem sobre o argumento e a encenação, em cenas que são alternadas com pequenos mosaicos mais triviais, como os miúdos no recreio, entre refeições, ou simplesmente à espera da passagem do tempo. Esta estratégia de colidir os dois mundos paralelos acaba por revelar-se mais estéril do que poética, por sublinhar a artificialidade da abordagem, ofuscando a realidade ao colocar uma barreira entre o espectador e essa realidade que procuramos discernir. Se as sequências da realidade “natural” são por si só interessantes pela tristeza da exclusão retratada, o filtro da recriação fantasiosa acaba por tornar o filme desequilibrado, mesmo que cativante a espaços.
Bangkok Nites (Noites de Bangkok, 2016) de Katsuya Tomita é um objecto complexo e fascinante, que utiliza o disfarce de filme documental para contar uma história de interligações entre personagens num universo de alienação. Os primeiros momentos do filme indicam estarmos perante uma abordagem documental em relação ao ambiente nocturno da cidade tailandesa e de um bordel em particular, com a câmara a seguir implacavelmente as personagens deste mundo. Porém, à medida que a trama narrativa avança, fica claro que estamos no domínio da ficção encenada, por muito que inspirado numa estética naturalista. Se a duração longa podia jogar contra o filme, aqui revela-se um dos seus trunfos, ao aumentar a imersão nesta compartimentação de uma realidade de assimilação lenta. Uma exposição reveladora do ambiente à volta do tal bordel resulta num desfile de personagens exóticas: de um lado as raparigas, na sua maior parte originárias das aldeias à volta de Bangkok, que são apresentadas numa espécie de tableau à disposição dos clientes; do outro lado os clientes, na sua maioria japoneses embriagados, que servem-se deste triste mercado. Mas o filme parece pouco interessado numa simples representação crua e já várias vezes repetida desta paisagem sórdida, e mais interessado numa aproximação às feridas emocionais que estas vidas de abandono acarretam.
Bangkok Nites detém-se no encontro por acaso entre duas personagens, que outrora partilharam um passado em comum importante, e agora situam-se em estados de espírito opostos: ela, Luck, a “number one girl”, na sua fase mais materialista, no seu apartamento tão luxuoso como solitário, presa à vida nocturna porque não conhece outra; ele, Ozawa, um dos primeiros clientes de Luck, um antigo soldado japonês exilado na Tailândia, num estado frugal, que por circunstâncias da vida é obrigado a sobreviver com pequenos trabalhos. Os dois passam uma noite juntos a conversar sobre tempos antigos, mesmo que agora Ozawa não tenha dinheiro para pagar o preço da companhia. Quando o filme acompanha o par numa viagem ao interior do país, e abandona as pretensões de diário da noite tailandesa e a miríade de personagens secundárias, ou seja, quando a ficção sobrepõe-se à realidade, o filme revela um olhar distinto sobre este casal desamorado. A herança do colonialismo no interior do país, as raparigas locais que sonham fugir para um destino igual ao de Luck, o confronto com um passado abandonado, ajudam a criar um ambiente misterioso e tenso, onde o tempo parece suspenso (não será acaso o agradecimento a Apichatpong Weerasethakul nos créditos), pelo menos até uma espantosa sequência (um flashback?) numa praia, que redefine o filme até aí.
В лучах Солнца – Under The Sun (Debaixo do Sol, 2015) de Vitaly Mansky é outro exemplo do legado de The Act of Killing, e aqui a recriação é permanente e dirigida pelo regime, um estratagema preferido de Estados pouco transparentes. Mansky informa logo no início com uma pequena nota que foi sempre acompanhado pelas autoridades norte-coreanas durante a sua estadia, e que desde o argumento, aos locais e até às pessoas filmadas, tudo foi imposto ao realizador – a única coisa fora do controlo é mesmo a câmara. E Mansky começa por desconstruir a realidade aparente quando mostra o que acontece entre os supostos planos, nas margens dos limites permitidos, ao revelar os diferentes takes da mesma cena e as indicações das figuras do regime às pessoas transformadas em actores (“age naturalmente, como se não estivesses num filme” ouvimos fora de campo). Uma idílica cena de um jantar abundante em família é orquestrada ao pormenor para enaltecer as virtudes da sociedade norte-coreana, mas é logo desmontada em “directo” pelo filme, com a criança a ser obrigada a repetir a mesma frase ou enaltecer a qualidade da comida.
Porém Mansky tenta também ultrapassar as barreiras que lhe são impostas ao filmar os rostos das pessoas, ao deter-se assim em pormenores que poderiam passar despercebidos não fosse o seu olhar atento: a expressão vazia das crianças na escola, o medo perante a autoridade da professora, as mãos juntas que procuram aquecer-se contra o frio na sala de aula. Nesta tentativa de aproximação Mansky parece perceber que há uma impossibilidade de chegar às pessoas que filma, impenetráveis no seu isolamento, tão distantes do mundo que conhecemos, soterradas por um terror psicológico. O filme acompanha de perto uma família representativa da sociedade norte-coreana, e a violência do alcance do regime e o medo de falhar são mais visíveis na pressão suportada pela filha do casal. Escolhida para representar a escola em mais uma celebração do seu líder, Manksy ultrapassa finalmente o problema da anestesia emocional das personagens e o manto de ocultação mantido pelo regime com o acompanhamento desolador dos nervos da criança numa cena dolorosa. Instada a distrair-se com uma memória boa para afastar os nervos, não consegue lembrar-se de nenhuma, e quando lhe pedem para cantar uma canção alegre, apenas consegue lembrar-se de uma ode a Kim Jong-un. Under the Sun é assim um brilhante exercício de desconstrução de um sistema de controlo, encoberto e subtil no seu método, e por isso ainda mais devastador.
Outro filme que representa uma verdadeira viagem às trevas é Eldorado XXI (2016) de Salomé Lamas. A diferença é que aqui o pesadelo é visível à superfície, ocupa toda a paisagem, e por isso é mais obsceno. O filme representa uma continuação do trabalho de Lamas no estudo de comunidades que sobrevivem nas margens da sociedade, e ao mesmo tempo de afirmação de um rigor formal – a forma como aqui filma a natureza remete para a sua anterior curta A Torre (2015), particularmente pelo uso do plano fixo – mas acima de tudo, reafirma um trabalho sobre a representação da memória, indicador da dedicação a registar um tempo que perdura enquanto não se extingue. O tema do filme é La Rinconada, uma remota aldeia mineira no Peru, situada a 5500 metros de altitude, onde uma legião de pessoas que se confundem partiu num último suspiro, à procura de uma sobrevivência condenada à partida. Após uns breves planos a mostrar a localização desta colónia mineira, a câmara fixa-se numa encosta a observar uma procissão de trabalhadores anónimos num sobe e desce, num plano que se prolonga por quase uma hora, enquanto a escuridão se apodera lentamente da imagem. É um plano duro, equivalente à aridez do local e desamparo daquelas pessoas, mas que se revela recompensador com a passagem do tempo. Após alguns minutos surge uma emissão da rádio local a acompanhar as imagens, e ouvimos relatos das condições de vida, das histórias do passado de algumas das pessoas, das dificuldades e implicações na saúde daquele trabalho.
O filme estabelece assim com aquele plano um diálogo com o espectador, que muito antes de ver as condições em que vivem e trabalham aquelas pessoas, começa a imaginar e a tentar recriar como será possível a vida naquele sítio e naquele momento, algo que será desvendado apenas nos planos seguintes. Apesar de alguns momentos notáveis que sublinham a coragem de algumas das pessoas que estão numa situação frágil, e em particular mulheres, ao organizarem-se para ultrapassar carências daquela comunidade, Eldorado XXI é um verdadeiro pesadelo anestesiante que funciona como um murro no estômago. O paralelo criado entre o sacrifício daquelas pessoas numa última esperança de subsistência, num sítio onde a esperança já não chega, e a destruição sobre a natureza, que aparece como derradeiro legado de um capitalismo predatório, funciona como uma metáfora para a humanidade. Também por isso, Eldorado XXI foi um justo vencedor da competição do festival, e não deixa de ser curiosa a ligação com o vencedor do ano passado, Beixi Moshuo (Behemoth, 2015), um filme que começa com uma série de explosões numa mina. Behemoth é o nome de uma criatura mitológica que se alimentava de montanhas e El Dorado remete para uma ideia de encontrar riquezas milagrosamente – são as lendas do passado a voltar como avisos contemporâneos.
Existem diversas formas de mostrar coragem, e uma tradição pode ainda ser uma forma de perturbar o status quo. Ama-San (2016) de Cláudia Varejão é um primoroso retrato de uma tradição milenar no Japão. Depois de Salomé Lamas no Peru, temos aqui outra realizadora portuguesa a viajar para o outro lado do mundo para resgatar do desconhecimento e eternizar uma comunidade singular. Sem contexto, vamos às escuras e assim o encanto perdura mais tempo, e cada gesto ganha maior importância pelo significado que procuramos nas imagens. O filme acompanha um grupo de mulheres do mar (as ama-san) numa península de pequenas vilas piscatórias, que se dedicam a uma forma de pesca através do mergulho em apneia, uma prática perpetuada há vários séculos, e que ainda é próxima da sua forma original. O respeito pela forma tradicional desta pesca, desde o lenço em que envolvem a cabeça como protecção, até à recusa em usar oxigénio, apenas reforça a dificuldade da tarefa a que estas mergulhadoras se dedicam de forma rotineira, porque para elas sempre foi assim, como é enaltecido pelas belíssimas imagens debaixo de água onde as amas se movimentam livremente.
Ao mesmo tempo estas mergulhadoras encarnam um papel de afirmação feminista pela sua bravura e inversão do seu papel tradicional numa sociedade muito conservadora, algo que surge naturalmente – os homens muito raramente aparecem no filme. A forma como Varejão acompanha o processo de trabalho das ama-san reafirma a naturalidade com que tudo se desenrola, mesmo que para o espectador longínquo seja exótico. Parte do mérito do filme provém da proximidade com que Varejão filma as amas, para o qual também contribuem os momentos em casa, reveladores que também nesse cenário estas mulheres não são menos incansáveis. Com a passagem do tempo, passamos também a encarar com naturalidade este modo de encarar a vida, e o filme transforma o excepcional em natural, porque assim o deve ser.
Tarrafal (2016) de Pedro Neves foi uma obra que revelou-se importante no contexto do festival. Se o festival sempre teve como missão reaproximar a população local ao cinema, este filme, sobre o bairro de S. João de Deus no Porto, conhecido como Tarrafal, trouxe o passado recente da cidade para o auditório, e com isso, as pessoas e as histórias do esquecido bairro, muitas delas presentes na sessão de apresentação, para o centro da atenção. O filme começa com imagens de arquivo da demolição de parte das casas do bairro há cerca de 13 anos, porém não procura fazer uma leitura política e muito menos um comentário sobre o contexto em que essa demolição ocorreu, ou de outras situações semelhantes na cidade – não parece ser essa a sua intenção. Mais importante para descodificar o filme será uma das cenas iniciais, em que um homem em tronco nu se passeia a cavalo por entre as ruínas actuais do bairro – será uma liberdade estilística para criar uma metáfora sobre o que aconteceu com esse local, que surge assim quase como um local mítico, cujas histórias perduram apenas na memória dos diversos antigos habitantes que Neves entrevista.
Pelo menos é assim que esses entrevistados falam muitas vezes sobre o sítio onde cresceram, como um lugar impossível e abandonado à sua sorte na periferia da cidade. São relatos de vidas destruídas e de outras resgatadas a custo, histórias de miséria, de infâncias paralelas à criminalidade vivida no bairro, de mortes e toxicodependência, mas também são relatos extraídos a custo, porque as pessoas entrevistadas parecem ter a início alguma relutância em falar da tristeza do bairro. É uma entrega notável às personagens, ao seu ponto de vista e à sua construção sobre a descrição do bairro. Se o alcance do filme é limitado ao ponto de vista de quem por lá passou e por quem ainda lá vive, é natural que a história do bairro seja reduzida à memória que ainda sobrevive através da visão dessas pessoas. Neves regista com empatia admirável os seus lamentos, mas também o seu orgulho em terem sobrevivido e por terem sido moldadas pela sua passagem difícil pelo bairro. Mesmo que ao limitar-se a essa parte da história deixe outras por contar, o filme pretende devolver a dignidade a esta história, antes que desapareça.
Ascent (2016) de Fiona Tan e Kékszakállú (2016) de Gastón Solnicki são dois exemplos curiosos sobre a tal fronteira entre o real e a ficção. O primeiro é um documentário filmado de forma ficcional, e o segundo é uma ficção filmada de forma documental. Ascent conta uma história pessoal da descoberta de um diário sobre uma subida ao Monte Fuji, paralela à história afectiva entre o autor das cartas e a narradora. O conto, que pode ser real ou não, é cativante pela forma poética como envolve a história do Monte Fuji e as suas lendas com a evolução da relação, mas o que distingue o filme é o seu dispositivo visual. Utilizando mais de 4000 fotografias em que o Monte Fuji aparece retratado, o filme utiliza essas fotos como pistas visuais para o espectador criar a sua própria visão imaginada. Mesmo quando recorre a fotos que não têm relação directa com a história (fotos de família, de arquivo militar), a forma como o filme apropria essas fotos para construir um imaginário resulta num exercício fascinante.
Por outro lado, Kékszakállú utiliza uma série de vinhetas do quotidiano numa estância de férias na sul do Uruguai para criar uma ficção sobre essas imagens. As filmagens dos não-actores num estilo documental mas fortemente estilizadas na sua concepção resultam em composições inteligentes e intrigantes, onde a atenção conflui para a arquictetura do espaço e uma patente letargia emocional. Kékszakállú transforma o quotidiano numa abstracção, onde uma série de raparigas aparecem perdidas dentro de cada composição, como fantasmas, entre a opulência burguesa e a indefinição da passagem para a vida adulta. Porém, quando o filme tenta colar uma narrativa por cima das imagens capturadas revela-se frágil e confuso, como se o encanto de cada quadro acabasse diluído na tentativa de os interligar ficticiamente.
Esta edição do festival foi um sucesso junto do público portuense, e com várias sessões esgotadas e mais de 10 mil espectadores, afirmou-se já como um evento indispensável e integral da cultura da cidade – a edição de 2017 já tem datas marcadas: 25 de Novembro a 3 de Dezembro. O Grande Prémio Porto/Post/Doc foi atribuído a Eldorado XXI de Salomé Lamas; a Menção Honrosa a Les Sauteurs (Aqueles que Saltam, 2016) de Abou Bakar Sidibé, Estephan Wagner, Moritz Siebert; O Prémio Teenage (prémio atribuído por um grupo de alunos de escolas do Grande Porto) foi atribuído a Ama-San de Cláudia Varejão e a Menção Honrosa a Under The Sun de Vitaly Mansky – o palmarés completo pode ser consultado aqui.