“No imagination. Just force. Brute force”, diz o médico da prisão ao Capitão Munsey, no fim de uma homilia sobre as diferenças entre lidar com os prisioneiros de maneira agressiva e com punho de ferro ou optar por uma alternativa mais compreensiva e subtil. Poderia também ser a tagline de Brute Force (Brutalidade, 1947), um daqueles filmes de prisão imbuídos do destino fatal característico do film noir, onde há homens que caminham alegremente para o seu triste fim. Não há futuro para estes aleijados.
O sub-género “filme de prisão” é um dos mais populares de todos os tempos, nas suas mais variadas formas e feitios, desde a comédia ao film noir, do drama ao policial. Os exemplos são mais do que muitos, uns mais conhecidos e outros menos, indo desde a sobriedade religiosa de um Bresson de Un condamné à mort s’est échappé ou Le vent souffle où il veut (Fugiu Um Condenado à Morte, 1956) até a Con Air (Fortaleza Voadora, 1997), onde há uma prisão em pleno ar com um Steve Buscemi não só embalsamado como considerado o pior criminoso da história. Até o “melhor filme de sempre”, no IMDB, é um filme de prisão. Para esta duradoura popularidade, muito contribuem os códigos do género, repetindo em loop certos procedimentos que fabricam a identificação do espectador com a acção visível no ecrã ou na tela. A saber:
a) os prisioneiros tomam a sua refeição no refeitório. O cozinheiro, invariavelmente, despeja a comida no prato como se estivesse a fazer um esforço titânico para não rebentar com tudo. A comida é sempre uma amálgama de trampa. Há, quase sempre, um prisioneiro que come não só o prato dele como o de mais alguém (normalmente o protagonista da história, que cá fora estava habituado a ostras e sapateiras).
b) rixa no pátio, no refeitório ou na casa de banho. Um clássico imprescindível. Costuma acabar com um tipo vindo de nenhures a esfaquear um outro companheiro de cela. O castigo, por vezes, pode envolver uma simples sodomização, como em American History X (América Proibida, 1998).
c) Talvez à excepção do Chaplin no Modern Times (Tempos Modernos, 1936), os prisioneiros nunca querem ficar na prisão. Mal lá entram, já estão a reflectir sobre planos de fuga. Têm, no geral, a ajuda de um colega mais velho que já está há quinhentos anos na prisão e que sabe todos os caminhos possíveis para a escapadela; esses caminhos envolvem, inevitavelmente, uma operação tipo Missão:Impossível, onde se fabricam duplos dos prisioneiros a dormir para enganar os guardas, passagens por esgotos, o rotineiro plano do prisioneiro a jogar ao gato e o rato com a luz da torre de vigia, etc.
d) Uma estratégia dramática assaz utilizada coloca-nos perante a existência dos “guardas bons” e dos “guardas maus”. Os guardas bons, às vezes, nem são assim tão bonzinhos, mas assim são apreendidos por contraste com os guardas maus, que são autênticos monstros sanguinários, capazes de porem a chorar homens barbudos de meia-idade; fazem da prisão o seu reino de terror, talvez para compensar as fracas performances, em qualquer domínio, nas actividades domésticas.
Estas práticas rituais do género encontram-se presentes, em menor ou maior número de modulações, em Brute Force, um dos grandes filmes de prisão do cinema norte-americano, realizado pelo magnífico Jules Dassin durante o seu período mais criativo. E, entre elas, destaca-se o ritual do “guarda mau”, aqui na forma do Capitão Munsey, interpretado por Hume Cronyn. Cronyn que, lembramos, era uma silenciosa e tímida personagem no Shadow of a Doubt (Mentira, 1943), e que quatro anos depois transforma-se numa força sádica e insidiosa, usando e abusando de todos os meios físicos e psicológicos para transformar a prisão no seu estado pessoal.
Richard Brooks, um dos melhores cineastas ”sociais” da Hollywood de antanho, e autor do argumento de Brute Force, exemplifica com Munsey o género de abuso de poder que se poderia encontrar numa prisão norte-americana dos anos quarenta, matéria tabu, não só para a sociedade como também para o cinema americano.
A criação do Capitão Munsey, se hoje passa por banal dispositivo dramático, era em 1947 novidade capaz de provocar uma polemicazinha mais açucarada. Uma das prerrogativas do Production Code do William Hays era a de que não se poderia representar negativamente qualquer força da autoridade, nem muito menos vangloriar e enaltecer as qualidades humanas dos “criminosos”, embora, ironicamente, para a posteridade da história do cinema tenham permanecido em primeiro plano os contornos românticos e maiores do que a vida dos “criminosos” [a morte do Edward G. Robinson no Little Caesar () deve suplantar, um bocadinho que seja, a memória dos responsáveis da justiça que andavam no seu encalço]. Richard Brooks, um dos melhores cineastas “sociais” da Hollywood de antanho, e autor do argumento de Brute Force, exemplifica com Munsey o género de abuso de poder que se poderia encontrar numa prisão norte-americana dos anos quarenta, matéria tabu, não só para a sociedade como também para o cinema americano.
Perto do fim de Brute Force, surge o momento em que a natureza fascista de Munsey aparece em grande esplendor. No seu escritório, lavando as mãos, em imaculada camisa branca, ouvindo Wagner, pronto para extrair as respostas ao repórter (judeu) das “notícias locais” da prisão. No fim do serviço, volta a lavar meticulosamente as mãos, como um Pilatos desprovido de ainda menos remorsos. Wagner como fundo sonoro, um repórter judeu…penso de que não será necessário fazer um esboço de desenho. É um catálogo sonoro de pancadas de cassetete, cultura clássica como acompanhamento musical, gritos de dor, exclamações de prazer sádico; como diz o Tarantino, o cinema foi inventado para registar cenas como esta.
E como se combate toda esta ternura? Com mais brutalidade. Os últimos minutos de Brute Force poderiam ter como título a tradução portuguesa do White Heat (Fúria Sanguinária, 1949), outro dos cumes máximos de um género que via nascer filmes prodigiosos ano após ano na segunda metade da década de quarenta. O anti-herói (Burt Lancaster) tem de se tornar tão podre como o vilão; como diz o Fred MacMurray no Double Indemnity (Pagos a Dobrar, 1946), e transformada em epígrafe do género, “We are all rotten”. E Jules Dassin assim o confirmaria nos anos seguintes, com The Naked City (Nos Bastidores de Nova Iorque, 1948) e o não-temos-suficientes-adjectivos-para-o-elogiar, The Night and the City (Foragidos da Noite, 1950). No imagination. Just Force. Brute Force.