Como dissimular que tudo acaba num rectângulo de tela branca suspenso numa parede?
(Vê o teu filme como uma superfície a cobrir.)
Robert Bresson em Notes sur le cinématographe
Apesar de Susan Sontag ter ficado conhecida pelo seu espírito aberto, em estado de insaciável curiosidade por tudo o que mexe, leio os seus ensaios, diários e entrevistas que foi concedendo – e não foram poucas – ao longo da vida e fico com a certeza de que a sua maior paixão era a literatura. E que a sua maior frustração foi nunca se ter afirmado como uma grande escritora de ficção. Isto apesar de alguns dos seus romances, sobretudo The Volcano Lover (1992), lhe terem granjeado boa receptividade junto da crítica e do público. Posto isto, o universo de Sontag é vasto e dos mais férteis que o século XX produziu. E não exclui, bem pelo contrário, o cinema.
O legado que Sontag deixa inspira um respeito imenso, destacando-se, acima de tudo, o trabalho que desenvolveu enquanto ensaísta, procurando, num depurado trabalho sobre as ideias e a linguagem, subir aos ombros dos gigantes que admirava: Nietzsche, Benjamin, Lichtenberg, Sartre, Barthes, Borges, Brecht, Beckett, entre outros. Against Interpretation (1966) e On Photography (1977) são dos livros de Sontag que mais influenciaram a maneira como pensamos o papel das imagens, a sua função estética, social e política. Maior notoriedade ainda ganharam as suas posições políticas: contra a guerra no Vietname e, já no século XXI, de enorme cepticismo quanto ao muito simplificador discurso dominante saído do contexto do 11 de Setembro. Como confessou uma vez, sempre se interessou mais pelos dissensos que pelos consensos. Para si, pensar era um modo de estar na adversativa.
Sontag foi colunista política, reflectiu sobre o papel das mulheres, assinou tratados sobre filosofia, pintura, dança e literatura, escreveu teatro, viveu entre os Estados Unidos e a Europa, visitou o mundo, pondo, nalguns momentos, a vida em risco (exemplo maior é a sua estada em 1993 na Sarajevo em guerra, dando aulas de teatro e pondo em palco À espera de Godot com disparos e explosões em ruído de fundo). Será surpreendente para alguns descobrir que o cinema fez sempre parte da sua vida, e, nalguns momentos, intensamente. Distam 30 anos entre Against Interpretation, onde disserta sobre Bresson, Bergman, Godard, Resnais, King Kong (1933) e filmes camp e de ficção científica, e o famoso artigo publicado no The New York Times «The Decay of Cinema» (texto com o primeiro título «A Century of Cinema», reunido depois no livro Where the Stress Falls), que serviu de anúncio para uma morte há muito anunciada – a da cinefilia.
Against Interpretation, o livro que a leva à ribalta, é escrito no contexto fulgurante da cinefilia parisiense. Sontag será testemunha da explosão crítica e criativa do cinema moderno. Conviveu de perto com alguns dos seus intervenientes. Para ganhar a vida em Paris, Noel Burch, teórico do cinema e assistente de Pierre Kast, convida-a a figurar num filme desse ex-crítico dos Cahiers du cinéma, Le bel âge (1960). Sontag vai perceber, desde muito cedo, que estes eram os anos dourados do cinema, a arte do século XX.
A forma como exalta a dimensão erótica da arte em Against Interpretation resulta de um contexto eufórico de criação que convida a que os filmes sejam, de facto, intensamente experienciados. Havia razões para que a “alta cultura” baixasse a guarda e as suas defensivas “grandes teorias”, inspiradas em Marx ou Freud. O cinema estava aí, em ponto rebuçado, pronto a ser usufruído em toda a sua vitalidade. 30 anos depois, face à crescente influência do dinheiro e à sua ditadura do “lucro instantâneo”, o cinema perdeu referenciais e tornou-se numa arte decadente, que vive e pensa menos. Se Against Interpretation é um elogio ao fulgor de uma arte nos píncaros da sua forma, «The Decay of Cinema» é um eulogio a uma maneira de ver e viver que já não volta mais. Essa “maneira” chama-se cinefilia. E Sontag, como se pode comprovar nas listas infindas de filmes que foi alinhavando nos seus diários, era parte dessa família de maluquinhos pelas imagens tremeluzentes.
Faceta ainda menos conhecida da sua obra: Sontag não era só uma curiosa. O seu lado aventureiro levou-a a experimentar fazer cinema. Um convite vindo de Estocolmo vai-se revelar num cheque em branco para se estrear no papel de realizadora. Sontag parte no final dos anos 60 para a terra de Ingmar Bergman, um dos heróis desses anos cinéfilos, para filmar Duett för kannibaler (1969).
Como aconteceu com a sua carreira de romancista, esta faceta de realizadora foi olhada com desconfiança pela crítica. Até críticos inteligentes como Stanley Kauffmann (em 1969 para a New Republic) cederam ao ataque fácil. Oh, ironia desgraçada! Um filme cenicamente reduzido a meia dúzia de elementos assinado por alguém que tanto escreveu sobre o que é o estilo em arte. Mas leia-se Sontag, mais de perto e atentamente, em Against Interpretation : “O estilo de um artista, de um ponto de vista técnico, não é mais do que o idioma particular no qual ele expressa as formas da sua arte” (p. 57 da tradução portuguesa, editado pela Gótica). A crítica tende a confundir estilo com um excesso de coisas. Ó Stanley, Sontag conhecia – e admirava – Bresson, Antonioni, Bergman, Straub e Ozu. E sempre fez neles o que elogiou, em 1996 (in When the Stress Falls), numa carta que tornou pública dirigida a um dos mais influentes escritores do seu tempo, Jorge Luis Borges, isto é, soube cultivar o gosto de encontrar as suas ideias nas ideias de quem admirava.
A economia estilística de Sontag pauta-se pela escassez, não pelo excesso. O estilo é preciso, descarnado, abrupto. Aponta, por vezes friamente, para a totalidade vazia do branco (da página, do quadro). A sua escrita é como uma superfície nítida com poucos elementos, onde se sente um imenso trabalho de subtracção. Como o seu crítico favorito, Manny Farber, Sontag reescrevia mais do que escrevia. Logo, não era de espantar que também fosse assim na cadeira de realizadora, enquanto metteuse en scène. Com a câmara ou com a caneta, Sontag procura uma escrita “de grau zero”, como esta chegou a avançar nos seus diários: “Escrita ‘grau zero’: ver através da matéria, (…) nenhuma elaboração formal; ao invés, a violência do tema / O medium é transparente” (citado de edição Kindle de As Consciousness Is Harnessed to Flesh: Journals and Notebooks, 1964-1980). A expressão “grau zero” vem de Roland Barthes e do seu primeiro livro Le Degré zero de L’Écriture, em que este, a certa altura, fala de uma escrita branca, neutra ou amodal fundada em – outro escritor muito lido por Sontag – Albert Camus: “(…) é a maneira de existir de um silêncio; perder voluntariamente qualquer recurso à elegância ou à ornamentação” (p. 70 da tradução portuguesa, editado pelas Edições 70). O primeiro filme de Sontag será assim, isto é, existirá desta maneira. Então, e no fim de contas, porquê tanta decepção?
Há um precioso diálogo publicado na Film Culture em Outubro de 1969 entre Jonas Mekas e Susan Sontag em que o primeiro procura expor a esta a incapacidade em agarrar esse seu filme de estreia. A peça é deliciosa porque o diálogo entre estes dois amigos é totalmente cândido. Sabemos quanto Sontag apreciava o trabalho de Mekas enquanto curador e divulgador do cinema avant-garde e quanto Mekas respeitava o trabalho de Sontag enquanto escritora. Não é por estarem juntos que este refreia a sua impressão após ter visto pela terceira vez Duett för kannibaler: “eu vejo o teu filme, segundo a segundo, passo a passo – vejo como tudo está bem feito, calculado, estruturado – mas sinto que alguma coisa está em falta, alguma coisa se perdeu na tradução – é demasiado plano, demasiado despido”. A crítica parece implacável, mas é inteiramente justa. Sim, Duett för kannibaler é um filme despido, plano, calculado, estruturado. É difícil de agarrar. Contudo, não creio que em nada disto Sontag traia a sua proposta, isto é, o seu idioma. Não é, portanto, demasiado despido, demasiado calculado, etc. É, na realidade, um filme muito ciente, surpreendentemente seguro e à justa medida da sua “baixa economia”.
A economia dramática de Duett för kannibaler faz-se por dois casais: Tomas e Ingrid, de um lado, e o exilado político Dr. Arthur Bauer e a sua mulher, Francesca [esta interpretada pela mesma actriz que encarna a “tia louca” em Prima della rivoluzione (Antes da Revolução, 1964), Adriana Asti]. Bauer pede a Tomas para lhe organizar os diários, documentos que guardam delicadas informações de cariz político. Além disso, Tomas deverá entreter a mulher de Bauer sempre que esta lhe pedir. Agnès Varda tem razão quando, numa conversa acesa no programa Camera Three, identifica como principal tema do filme “o vício”. A personagem de Bauer é catalisadora de todo o tipo de comportamentos desviantes, desde os convulsos jogos de papéis mais ou menos inconsequentes, que lançam o jovem Tomas para o meio de uma intriga política desenrolada numa espécie de vácuo ou num cenário dreyeriano em que os mortos ganham vida, até às verdadeiras performances à mesa e no quarto, que vão transformando o ritual da comida e do sexo num swing indiferenciado entre os dois casais. Uma dança cruel que vai diluindo o espaço privado, da casa de Bauer, num inferno psicológico. Inferno de gelo, não de fogo.
Como tal, a mise en scène de Sontag é – tinha de ser – austera. Percebe-se que procurou transpor aqui a aspereza formal e a brusquidão de acções de um Bresson – “Tudo o que não é necessário, tudo o que é meramente acidental ou decorativo, deve ser posto de parte” (p. 225), escreveu a seu propósito em Against Interpretation. Ou buscou inspiração num filme que muito a assombrava: Chronik der Anna Magdalena Bach (Crónica de Ana Madalena Bach, 1968). Ao mesmo tempo, temos os jogos de massacres nórdicos, típicos em Bergman. Dentro de uma fórmula cinéfila algo excêntrica, diria que este filme resulta de um cruzamento entre dois filmes: Who’s Afraid of Virginia Woolf? (Quem Tem Medo de Virginia Woolf?, 1966) e, então ainda por sair, Scener ur ett äktenskap (Cenas da Vida Conjugal, 1973).
A loucura e paranóia do casal mais velho a canibalizar a ingenuidade e inocência do casal mais jovem. As cenas que juntam os dois casais à mesa produzem um desconforto perto de buñueliano; uma confusão entre etiqueta diplomática, paranóia, vómitos e promiscuidade sexual. Sontag é fria e calcula bem o momento em que corta, como que com um bisturi, o cordão que une os peões deste jogo. É plana, despida na forma e vai contando o filme em espasmos. As elipses aumentam de frequência até ao ponto em que o filme termina sem avisar. A intriga de amor e espionagem é completamente godardiana no ritmo.
Em Against Interpretation Sontag apelava para que se instituísse não uma crítica mas uma erótica da arte. Agora na pele de realizadora, Sontag vai esfriar essa possibilidade, realizando um filme sobre devoração de mentes e de corpos tão frio quanto a sua paisagem nórdica: “É preciso compreender a estética – ou seja, descobrir a beleza – de tal frieza” (p. 205), escrevia ainda a propósito do realizador de Un condamné à mort s’est échappé (Fugiu Um Condenado à Morte, 1956). Uma impecável construção moderna de estilo, que em nada denuncia o facto de este ser um primeiro filme. Como podia se na sua economia espartana quase lembra Gertrud (Gertrudes, 1964), hoje consensualmente tido como o epítome da magistralidade de Dreyer? Duett för kannibaler é, portanto, um filme a redescobrir rapidamente.
A frustração da sua carreira como romancista vai ser acompanhada pela frustração da sua carreira como realizadora. Duett för kannibaler teve uma recepção muito fria e uma distribuição perto de nula – ainda que tenha sido mostrado no Festival de Cannes. O filme que se seguiu, Bröder Carl (1971), também rodado na Suécia – ainda que, desta feita, falado integralmente em inglês por um elenco sueco e francês -, teve um destino ainda mais cruel. Aliás, pode-se ler nos seus diários, os que se publicaram no livro As Consciousness is Harnessed to Flesh, que este seu segundo filme “[é] sobre sofrimento, santidade, corrupção moral, neurose, saúde, amor, masoquismo – em resumo, tudo. (…) BC [Bröder Carl] é sobre fazer um milagre. É um testamento dessa fé que eu ainda tinha: a minha oração, a minha confiança… Eu fiz o filme. Carl foi bem sucedido. Eu falhei”.
Jonathan Rosenbaum, que muito tem apelado para que se editem em DVD os filmes de Sontag, apesar de no seu tempo não ter sido um entusiasta de nenhum deles, descreve Bröder Carl como “um plot complexo que envolve dois casais que se auto-torturam e uma criança e um ex-bailarino que são ambos autistas, uma série de ‘duetos’ tornam as personagens em espelhos duplicadores e distorcivos umas das outras, constituindo uma cadeia circular de angústia que é quebrada no final, primeiro por um suicídio e depois por um milagre, quando o louco bailarino convence a criança a falar” (excerto traduzido daqui). Percebe-se, pela descrição, que Sontag não sai do mesmo território. Infelizmente, não posso comprovar se é assim: se Duett för kannibaler é uma raridade difícil de arranjar, Bröder Carl consegue permanecer ainda mais invisível.
Sontag aventurava-se no cinema, mas o resultado foi o pior possível. Não que os filmes sejam motivo de embaraço – Duett för kannibaler é uma primeira obra, para usar uma palavra problematizada pela própria em texto sobre o ocaso da categoria do “belo”, bastante “interessante” -, mas eles provocaram à maioria das pessoas que os viu ou desdém ou pura indiferença. Sontag, a realizadora, estava, assim, com os dias contados. Apesar disso, realizou ainda Promised Lands (1974), um documentário de registo observacional sobre a situação política em Israel. Este filme revela um certo “gosto wisemaniano” na longa e impressionante sequência em que a câmara de Sontag se limita a registar, num sanatório que trata traumatizados da guerra, o “espectáculo” de uma crise de um soldado e o tratamento de choque que os médicos lhe administram, produzindo ali mesmo uma infantil re-encenação da guerra (com as mãos, batem na cama do paciente, puxam o colchão quando este se espreneia em cima dele, do gravador saem sons de armas, raides aéreos, gritos de homens e rajadas de matralhadora: “ratatata”). Olhar seco, de “grau zero”, lançado por Sontag a um conflito que já aqui se anuncia perto de interminável – o filme parece não ter nem começo nem fim, só meio.
Quase dez anos depois, Sontag acede a uma encomenda da Raitre e filma uma espécie de travelogue anti-sentimental e anti-turístico sobre Veneza: Unguided Tour (1983). É o seu Viaggio in Italia (Viagem a Itália, 1954). E é o seu L’eclisse (O Eclipse, 1962). História de um casal à beira da ruptura que se move por entre a cidade líquida misteriosa. Um belo poema a um amor perecido, como a cidade que o acolhe. Numa sequência vemos a mulher, interpretada pela bailarina e coreógrafa Lucinda Childs, a dançar no meio da rua. Por trás dela, vários pequenos moinhos coloridos dispostos nas fachadas carcomidas de edifícios são agitados pelo vento. O plano geral quase imóvel é solene a respeitar os movimentos graciosos da mulher. A cidade ressoa intimamente nestes gestos. Neste amor em modo de (e)terna despedida. Sontag dedicou a Childs um ensaio, «A Lexicon for Available Light» (publicado em Where the Stress Falls), em que escreveu: “O movimento ideal de Childs: claro, limpo, deliberado, intenso. E direccional” (p. 170). Adjectivos que facilmente poderíamos reencaminhar para este ensaio sobre Sontag, a cineasta.
Depois da viagem ao amor fátuo coreografado numa clareza de movimentos, Sontag morreu para o cinema enquanto realizadora. E o texto mais sonante que produz sobre a arte do século XX é uma amarga carta de despedida, «The Decay of Cinema» (as citações que se seguem foram traduzidas daqui). O cinema morreu? Não, ainda há filmes para se ver e para se gostar. Mas pior que isso: a cinefilia morreu. Nos anos em que escreveu Against Interpretation, anos da sua brilhante, destemida e – palavra sua – “insolente” juventude, Sontag testemunhou como “os filmes encapsulavam tudo. O cinema era tanto o livro da arte como o livro da vida”. Uma personagem dizia a outra em Prima della rivoluzione: “Não se pode viver sem Rossellini!”. E o que acontecia? O espectador sorria e acenava com a cabeça: “sim, é verdade, não se pode viver sem Rossellini”. Mas, agora, anos 90, fim das “autorias”, morte das salas de cinema a favor das salas de estar (o VHS e o blockbuster “hiperindustrial” a matarem o sentido de risco e de aventura com filmes só sobre riscos e aventuras), agora, o que resta do cinema e do que o cinema determina nas nossas vidas? Já podemos viver sem Rossellini. Rossellinis há muitos, seu palerma! Demasiadas imagens a poluírem o ambiente – também por isso Sontag falava da necessidade de uma “ecologia das imagens”.
As imagens estão em todo o lado e o cinema perdeu valor. A religião perdeu os seus apóstolos, o que é o mesmo que dizer que perdeu a sua fé. Esta religião sem fé é a condenação do cinema tal como o conhecíamos. “Se a cinefilia está morta, então os filmes também estão mortos… não interessa quantos filmes, mesmo os bons, continuarão a ser feitos. Se o cinema puder ser ressuscitado, sê-lo-á apenas através do nascimento de um novo cine-amor”. É com este gosto amargo que Sontag fecha «The Decay of Cinema». Todavia, o cine-amor ganha hoje novas formas. Uma delas chama-se Internet, ou uma cultura global de partilha e de fervente culto aos filmes. Todos os filmes. Mas, em primeiro lugar, aos novos cinéfilos interessa escavar à procura de relíquias. Um Duett för kannibaler, por exemplo. Talvez agora, depois de morta, Sontag, a realizadora, ganhe vida mais intensamente no seio desse cine-amor que, céptica, prescreveu.
Além dos textos aqui citados, usei como fonte o documentário da HBO Regarding Susan Sontag (2014).