Lembro-me de ler algures – e bem que procurei onde, mas não consigo encontrar – um texto em que a influente crítica norte-americana Pauline Kael descrevia a comunidade cinéfila dos seus dias como um mundo de homens pálidos e misantropos, onde as mulheres não eram especialmente bem-vindas. As comunidades cinéfilas abriram-se, diversificaram-se, mas não nos podemos iludir sobre este facto: o universo cinéfilo permanece predominantemente masculino. Olhamos, contudo, para algumas notáveis críticas de cinema e percebemos que as referências – as boas referências – existem. Kael é uma delas. Podemos citar ainda os nomes de Susan Sontag, Annette Michelson, Laura Mulvey, Kristin Thompson, Marie-Claire Ropars-Wuilleumier, Marie-José Mondzain, Nicole Brenez, Catherine Grant, Cristina Álvarez López, Maria João Madeira… Na crítica como na academia a presença das mulheres é cada vez mais significativa. Mas há uma história que, para nós, sobressai. E era ela que queríamos trazer para o nosso dossier, na primeira pessoa. Falamos de Sylvie Pierre, actual editora-chefe da revista Trafic, fundada em 1991 por Serge Daney, mas, acima de tudo, a primeira mulher a entrar na “falocrática” redacção dos Cahiers du cinéma, onde se torna colaboradora regular entre 1967 e 1973.
Pierre escreve, muito, sobre alguns dos cineastas do mundo que põem mãos à obra sob influência da Nouvelle Vague. De entre eles, destaca-se uma cinematografia: a brasileira. A ligação de Pierre ao cinema brasileiro ganha outra cor quando esta se muda para o Rio de Janeiro e aí vive entre 1971 e 1976. O amor pelo cinema de Glauber Rocha fez dela uma das grandes divulgadoras do Cinema Novo brasileiro no meio da crítica europeia, chegando a publicar em 1987 uma monografia sobre o realizador de Terra em Transe (1967). Por causa desse seu amor ao Brasil, mas também a Portugal, Sylvie Pierre fez questão de responder à nossa entrevista realizada por email na língua de Camões. O Ricardo Vieira Lisboa e eu editámos a entrevista, procurando produzir o menor número possível de correcções, por uma razão simples: não quisemos, de maneira alguma, desvirtuar o seu português (às vezes, “franguês” de sotaque carioca) tão autêntico quanto mignonne. Agradecemos imensamente esta dádiva belíssima da Sylvie Pierre, uma das entrevistas do À pala de Walsh cujo resultado mais nos comove. Por isso, desculpando a lamechice, gostava de dedicar esta entrevista a todas as meninas walshianas, sem as quais esta comunidade cinéfila faria pouco ou mesmo nenhum sentido.

Como aconteceu ter sido a primeira mulher a integrar em permanência a equipa de críticos dos Cahiers du cinéma?
Pois é… a primeira mulher nos Cahiers, admitida na equipa permanente dos redactores. Aconteceu assim, que eu me lembre: primeiro conheci, por acaso – que eu vejo agora como uma pequena fatalidade do meu destino pessoal -, uns rapazes que trabalhavam nos Cahiers. Encontrei um primeiro, numa loja de discos “d’occasion” do Quartier Latin quando ele procurava ópera de Wagner e eu procurava Mozart. Deu para iniciar conversa. Tinha 19 anos, era bonitinha, mas já bem metida a intelectualzinha de esquerda por causa dos meus estudos de letras, filosofia e história depois de meu baccalauréat. Por causa também da militância na UNEF, sindicato dos estudantes franceses, muito a favor, no início dos anos 60, da independência da Argélia. Eu já tinha gritado nas passeatas “Algérie, algérienne!”, e já tinha alguma ideia das injustiças que alguns países mais ricos impõem aos outros… impor tudo, pela força armada, pela economia, e pela cultura.
Os rapazes (“les garçons”) escreviam nos Cahiers du cinéma, e eu, nem conhecia o nome da revista, nem de nenhuma outra revista de cinema. Não costumava ler nada de sério sobre o assunto. Assunto que era, na época, território reservado dos jovens machos, que não gostavam apenas de ver filmes (a oferta de cinema em Paris era enorme, salas comerciais, cinemateca, cineclubes), eles combinavam o respeito do cinema “en soi” com um estranho fervor religioso, uma verdadeira paixão, que os fazia ver milhares de filmes, conhecer e reconhecer o nome e o estilo dos criadores de cinema, a história dessa sétima arte, suas práticas de realização, produção, etc. Eu gostava de cinema, e muito, mas ficava contente (ou descontente) com os filmes sem precisar da ajuda de outro pensamento, além daquele que me suscitavam imediatamente após a projecção.
Essa rara amizade com a comunidade cinéfila dos Cahiers [“amizade entre homens e mulheres = uma lua ao meio-dia”, dizia a linda empregada doméstica no maravilhoso filme de Jean Renoir La règle du jeu (A Regra do Jogo, 1939)] durou alguns anos antes que me passasse pela cabeça a ideia de escrever lá. Mas comecei a ler a revista e a ver mais filmes e de maneira mais sistemática, mais orientada pela compreensão do como e do por quem era feito o cinema. Adorava discutir cinema com alguns dos Cahiers, por exemplo, depois das sessões da Cinemateca com o Jacques Rivette (que foi redactor-chefe dos Cahiers e acabou por deixar o cargo para dirigir os próprios filmes) que passava lá muito tempo a ver filmes ou nas salas comerciais – nós chamávamos-lhe “homocinematograficus”.
Então foi aceite e publicado o meu primeiro texto na Cahiers du cinéma, sobre o filme húngaro de Miklós Jancsó, Les Sans Espoir, em Fevereiro de 1967.
Enfim, as amizades e as conversas foram, para mim, uma escola de cinema, uma faculdade de alto nível. Os estudos universitários de cinema só tiveram início a partir de 1969 em França, aliás como resultado institucional imediato do Maio de 68, que tinha agitado bastante as esferas do cinema, inclusive com a reunião de todos os profissionais de cinema nos “Etats Généraux du Cinema” para discutir a reforma ou transformação da estrutura geral da profissão. Acabei convidada, meio na brincadeira, para escrever nos Cahiers. Achei o convite muito intimidante, trabalhei no primeiro artigo como se fosse prova de concurso ou exame: orgulho feminino, ter o artigo recusado ter-me-ia morto de vergonha. Então foi aceite e publicado o meu primeiro texto, sobre o filme húngaro de Miklós Jancsó Szegénylegények (Os Oprimidos, 1966), em Fevereiro de 1967.

Alguma vez se sentiu como representante de uma certa “sensibilidade feminina” nas páginas da revista?
Comecei a trabalhar nos Cahiers a tempo completo (como redactora e responsável da Fototeca) enquanto “representante da sensibilidade feminina”? Ai que pergunta chata! Mas afinal faz bem em perguntar. Bom, talvez, já que eu tinha sido, de certa maneira, eleita por co-optação pelos rapazes, depois de três anos (entre 1963 e 1966) de verdadeiros altos estudos de cinefilia onde eu tive a sorte de ter como professores, como “maestros”, gente como Jean-Louis Comolli, Jean Narboni, Jacques Bontemps, Jacques Rivette, Jean André Fieschi, André Téchiné, e outros que eram finas inteligências de cinema… Antes de conhecer “la bande des Cahiers”, gostava de cinema, gostava muito desde criança, mas não era cinéfila. Não existia aquilo, “mulher cinéfila”. Era coisa de homens. Eles pareciam ter uma libido suplementar que os lançava em paixões sistemáticas e devoradoras de cinema: gostavam de saber cinema, de entender cinema, eram “connaisseurs” de cinema, conheciam a história do cinema, alguns com erudição, entendiam estética, linguística, e até erótica do cinema, embora essa ultima especialização da paixão “cinéphile” tivesse sido mais explícita no trabalho da revista rival Positif.
Representar nesse contexto então “a sensibilidade feminina”, sei lá se eu a representava: provavelmente. Mas com prudência. O feminino aplicado à área do pensamento crítico era campo inexplorado, e até cheio de minas. Pensar no feminino, pelo menos na época, não era elogio, não era considerado como qualidade do intelecto acima de qualquer suspeita. Nos Cahiers aprendi com esses rapazes exigentes uma certa disciplina necessária, formal, moral, do esforço para pensar o cinema além do umbilical exercício de considerar a tela como espelho de fantasias, ternuras ou pavores.
Agora, naturalmente, historicamente, sociologicamente, eu sou mulher e a minha sensibilidade tem corpo feminino, como a sua, Luís, suponho, tem corpo masculino, pelo nome.
A cabeça tem corpo e alma. E quanto à alma, de mulher, houve já alguns teólogos a duvidar que existisse.
Acha que a cinefilia é um universo intrinsecamente masculino?
O universo da cinefilia é “intrinsecamente masculino” na sua origem? Com certeza. Vocês que mandam para o e-mundo inteiro as comunicações “à pala de Walsh”… Vou-lhe contar aqui uma anedota do tempo da minha iniciação na cinefilia. Cinemateca do Palais de Chaillot em Paris, 1964 ou 65, eu então com 20 anos, estudando cinema: tinha sido projectado um filme de Raoul Walsh, talvez um dos meus mais amados, Objective, Burma! (Objectivo Burma, 1945). Eu saí da sala numa euforia total de ter visto um filme tão genial, mas com o mesmo prazer enorme de antigamente (antes da minha admissão na amizade da turma Cahiers): uma belíssima história de coragem e de guerra. Mas, de repente, eu dei conta que começava a gostar de cinema como os cinéfilos, como os garçons, isto é, com a mais-valia do connaisseur.

Os cinéfilos eram como monges machos meio, ou completamente, fanáticos da religião deles que era o cinema: cinema como fé, cinema como ideal, cinema como regra de ver cinema, o máximo de filmes, cinema como estudo dos textos sagrados, cinema como missa, como templo (as cinematecas!).
A cinefilia das mulheres, agora, existe, mas é diferente, com certeza, da cinefilia, historicamente primeira, a dos anos 60, aquela que eu conheci, experimentei, enquanto jovem mulher, e que era, de facto, radicalmente masculina. O problema dessa “diferença”, para mim, pertence à ordem libidinal. Originalmente os homens investiram na cinefilia como um suplemento, supostamente nobre, da sua “libido”. Para eles não era apenas o prazer do cinema como para nós, mulheres. Era o prazer no espectáculo, prazer em ver belos actores e actrizes (criaturas de sonho) envolvidos em belas histórias emocionantes. Aquela libido que segundo os Padres da Igreja se chamava “libido sentiendi”. Prazer mental mas também carnal, diria. Os jovens homens da cinefilia estavam, também, nessa “libido” (até mais do que nós, porque o erotismo dos homens pode gerar violentos imaginários de cinema: a vamp, a desnuda, a puta, a mãe, a “femme fatale”, etc… e o homem de guerra, o super-herói, o leader, etc.). Mas o seu investimento no cinema era diferente porque se combinava com a “libido sciendi”, isto é, o desejo de saber e entender, e também com a “libido dominandi”. Os cinéfilos eram como monges machos meio, ou completamente, fanáticos da religião deles que era o cinema: cinema como fé, cinema como ideal, cinema como regra de ver cinema, o máximo de filmes, cinema como estudo dos textos sagrados, cinema como missa, como templo (as cinematecas!). Em cada cinéfilo homem tinha, ou parecia que tinha, alguém que colocava o cinema tão acima de tudo que dele queria saber tudo, pelo menos tudo do tipo de cinema que privilegiava, entender tudo, e até, naturalmente, ser capaz de fazer cinema: realização. Como aqueles da Nouvelle Vague, viam filmes e queriam fazer filmes. Poucos, porém, da geração Cahiers que eu conheci fizeram mesmo filmes (Comolli, Téchiné, Bonitzer): muitos viraram professores, escreveram apenas sobre cinema ou ensinaram (Narboni, Bontemps, que, aliás, não ensinou cinema, mas filosofia).
Então, quando eu conheci esses rapazes dos Cahiers, achei essa monotonia temática deles pelo cinema (ver filmes, falar, saber, escrever sobre cinema) absolutamente fascinante, deslumbrante. Eu simplesmente gostava de cinema. Eles sabiam de cinema, sabiam ou queriam saber tudo. Para eles, imagens de filmes não eram imagens, eram “planos” (shot em inglês, plan em francês), tinham tal luz, tal profundidade de campo, etc. Para eles, o argumento era importante, sabiam quem eram os argumentistas, mas o mais importante para eles era a realização. Conheciam os actores e actrizes, gostavam deles, mas o importante era a direcção de actores. O director era o que eles chamavam de autor, não o argumentista como antigamente no tal cinema de “qualité française”, que o François Truffaut odiava.

Alguma vez se sentiu menos “ouvida” por ser mulher?
Com certeza, algumas vezes; mas então, quando aconteceu, e quando foi possível, re-adaptei o discurso, ou fui repetindo, ou falei mais alto, ou mais fino, para ser mais ouvida, ou melhor. Por vezes também, já que houve casos desesperados, desses tipos de má inteligência entre os sexos, desisti de insistir. Macheza é da raça do homem. Às vezes é melhor mudar de assunto.
Outras vezes senti-me mais ouvida. Ora desconfiei, ora aproveitei. Dependeu. No comité de redacção da Trafic, na editora P.O.L, (agora que estamos apenas três com a morte do Serge Daney em 1992 e a morte de Jean-Claude Biette em 2003) a minha palavra de mulher recebe toda a atenção que eu espero, quando mereço, ser ouvida.
Godard diz, em entrevista, que escrever para os Cahiers era já, para ele, uma forma de fazer cinema. Sentia o mesmo?
Ach, Doktor Godard, super-homem do pensamento cinéfilo! Para ele, com certeza, escrever sobre cinema já era uma forma de fazer filmes. E toda a equipa da Nouvelle Vague que escrevia sobre cinema (Truffaut, Rohmer, Chabrol, Rivette…) talvez possa concordar sobre o assunto. De qualquer maneira, fazer filmes era o mais profundo desejo deles. Eu nunca senti uma coisa assim: não quero fazer filmes, de maneira nenhuma. Não tenho nenhum talento, e nisso considero-me muito subdesenvolvida, para dominar o universo das máquinas fotográficas, e a montagem…? Montagem no analógico, até que eu sabia fazer, mas agora que é tudo numérico sou totalmente impotente e incompetente. O meu marido, Georges Ulmann (não procure no Wikipedia que ele é muito discreto) é que faz filmes, e de certa maneira eu ajudo-o pela minha modesta pretensão a certa inteligência no cinema.

A Sylvie representa uma fase na história dos Cahiers de grande abertura a um cinema de paisagens distantes, vindo do Japão, do Brasil, da Hungria, da Polónia, etc. Era importante para a geração Cahiers fazer uma cartografia dos efeitos da Nouvelle Vague pelo mundo?
Comecei o meu trabalho de redactora dos Cahiers num momento de grande abertura aos cinemas do mundo, isto é, jovem, em 1967. Época de abertura aos cinemas do mundo inteiro. Matter of fact, histórica. Trouxe a minha contribuição a essa abertura. Mas, querido Luís, eu estou a trabalhar há 25 anos na revista Trafic, como sabe. Então a cartografia dos efeitos da Nouvelle Vague no mundo, para mim esse assunto é “histoire ancienne”.
Na troca de emails com Bill Krohn, publicada na Senses of Cinema, fala do seu amor à cultura portuguesa. Chega mesmo a dizer: “the Portuguese are the flower of Europe”. A Sylvie tem sido uma importante divulgadora do cinema português e brasileiro no mundo francófono e para lá dele. De onde vem esta paixão pelo cinema de língua portuguesa?
A língua portuguesa, então. Because…, “the cause”, como dizia o Shakespeare, quando eu era criança, anos 50, ouvia-se muita rádio em França, antes da chegada da televisão em meados dos anos 50.
E das cantoras mais populares e famosas na França, talvez fosse até a única que foi realmente conhecida em França e amada pelo “grand public”, pela rádio, tinha a Amália Rodrigues. Eu não entendia nada de português, mas adorava essa música, não sei porquê, pelo som, pela música das palavras, pela melancolia do fado, aquela canção “Lisboa, tu és portuguesa, não sejas francesa…etc.” Ironia daquilo: não entendia mas amava, ficava cantarolando pelo ouvido, sem entender o sentido das palavras. Também pode ser por causa do som da língua portuguesa, muito “ch”, muitas nasalizações dos ditongos na pronúncia, parecia o “patois” do Massif Central que a minha mãe, a brincar, falava um pouquinho quando lembrava a infância dela numa família camponesa da Correze, sul-oeste do Massif Central.
Depois do Maio de 68, da “Semaine des Cahiers du Cinéma” em Lisboa em 1969, resolvi aprender mesmo português. Fiz no cinema duas amizades importantes: o português Paulo Rocha, e o brasileiro Glauber Rocha. Estranha coincidência para alguém que se chama “Pierre”. Comecei mesmo a aprender português, com um velho livro chamado Méthode Assimil. Lembro-me da primeira frase: “a vida é curiosa”, e tinha uma historia de um “comboio para Coimbra”. Com orgulho dessas primeiras frases falei do “comboio” para a minha amiga a cantora, estrela da Bossa Nova, Nara Leão, esposa do director de cinema Carlos Diegues, na época – os dois estavam exilados em França quando ficou muito dura a ditadura militar no Brasil. A Nara riu-se muito do meu comboio, que eles chamam de “trem”. Também em França, e com muita ternura, no rimos muito do sotaque dos outros países da francofonia: belgas, suíços…

Entre 1971 e 1976 fui morar para o Brasil: aprendi mesmo a falar e a entender o principal para sobreviver e viver e ler e até leccionar em Português sobre cinema (Eisenstein, uma loucura naqueles anos fascistas, a minha primeira experiência em 1972 no MAM; tiveram outras de palestras, cursos, presenças em festivais de cinema, etc.) na Cinemateca do Museu de Arte Moderna no Rio, ou na faculdade em Brasília. Descobri a literatura do Brasil, e agora gosto de literatura portuguesa tanto quanto de literatura brasileira. Nos dois países gosto do belo português, clássico, dos grandes poetas, Pessoa e Drummond de Andrade, Sophia de Mello Breyner e Manuel Bandeira. Na pintura tenho uma verdadeira paixão pela Maria Helena Vieira da Silva, que aliás ganhou nacionalidade francesa nos anos 60. Há um quadro dela, vendido recentemente em leilão em França, que se chama assim “Azulejos de Volubilis”: isso que é o charme de uma língua!
Naturalmente o facto de eu ter morado no Brasil deixou-se um enorme sotaque franco-brasileiro que me está a inibir um pouco quando falo em Portugal. Há dez anos o João Bénard da Costa convidou-me para uma “carte blanche”, para apresentar uma semana de filmes na Cinemateca, em Lisboa. Fiquei muito envergonhada de falar com tanto sotaque carioca. Mas tudo bem, amo essa língua e nas duas versões de cada lado do Atlântico.
Recentemente, tentei aprender espanhol, já que os meus amigos brasileiros me ajudaram muito a conhecer a cultura dos outros países da América Latina, e até que enfim, fui para Espanha. Mas não deu para aprender muito: entendo o espanhol escrito, mas não consigo falar. Naturalmente, na conversa, vai tudo saindo em português.
Enquanto editora da revista Trafic, a Sylvie tem publicado vários textos de autores portugueses, tais como João Bénard da Costa, Paulo Rocha e Manoel de Oliveira. Porquê esta decisão editorial?
O João Bénard da Costa irradiava cultura cinematográfica portuguesa. Fidalga, requintada, um pouco snobe. Adoro o snobismo mental dos portugueses.
O João Bénard era um príncipe. Alguns amigos e eu, tipo Bernard Eisenschitz – grande historiador do cinema – chamávamos-lhe de “Dom Lope”, porque tinha uma cara que nos lembrava o Dom Lope do Buñuel de Tristana (1970), isto é, o Fernando Rey. Velho sedutor barbudo cheio de charme. Igual ao nosso Langlois (que também tinha os seus defeitos humanos como todo o ser humano) irradiando cultura cinéfila francesa. O João Bénard da Costa irradiava cultura cinematográfica portuguesa. Fidalga, requintada, um pouco snobe. Adoro o snobismo mental dos portugueses. Quanto ao Manoel de Oliveira foi o Paulo Rocha que nos ajudou (de novo falo dos Cahiers, quando organizávamos a “Semaine des Cahiers” em Lisboa, em 1969) a descobrir a obra dele, mostrou-nos A Caça (1963), fomos “éblouis”, e quando descobrimos Amor de Perdição (1978), muito mais tarde, ficámos maravilhados. Paulo Rocha sei que foi uma pessoa e um cineasta bastante discutido, mesmo em Portugal, mas admirava nele essa cultura profunda e enciclopédica sobre o próprio país. Comovia-me muito este conhecimento apaixonado e profundo que ele tinha da Ásia. Japão, China, Índia. Ele era a consistência pura do impuro colonialismo português. Também reconheci esse mesmo tipo de afinidade com a Ásia portuguesa profunda no João Mário Grilo.

Gosto muito do seu texto «A mes parents», uma carta de amor à origem da sua cinefilia nas pessoas dos seus pais e irmãs. Gostava de lhe pedir um exercício semelhante em relação aos “seus críticos” (vejo-a a citar muito Rivette, Daney e Biette) e de saber o que é aprendeu com cada um deles.
Não lia nenhuma crítica séria de cinema, nenhum texto sério sobre cinema antes de conhecer os rapazes dos Cahiers. Até essa idade, ia ao cinema na maior (ou pior) “inocência”: ia ao cinema, porque gostava, nas salas comerciais ou de “art et essai”. Gostava dos filmes, raramente não gostava. Gostava das histórias (dos argumentos), dos actores, da qualidade ou beleza das imagens… ou até do nível moral das ficções… Ao nome do director não costumava prestar muita atenção.
Os primeiros críticos de cinema que eu conheci foram então da equipa dos Cahiers dessa época: Jean-Louis Comolli, Jean Narboni, Jacques Bontemps, Michel Delahaye… Li os textos deles para entender melhor o seu trabalho. Achava que era uma coisa completamente nova, “escrever sobre cinema”: corpus textual estranho, não conhecia. Tinha estudado letras, especialmente aquilo que se estudava antigamente: latim, grego. E também história, filosofia, inglês. Literatura sobre cinema, não sabia o que era aquilo. Nunca tive então um “critico predilecto” antes de conhecer as pessoas.
E o Rivette ao sair da sala furioso, falando que tinha odiado Mouchette. Consternação e estupefacção geral. “Mais pouquoi?” Eu tive a ousadia de perguntar: tinha odiado o facto da música de Monteverdi no final do final. Achava…vamos dizer, e desculpe o “franc-parler”, uma total putaria esse toque monteverdiano, esse pleonasmo enfático.
Aconteceu que fiquei, por acaso, próxima do Jacques Rivette quando comecei a frequentar a Cinemathèque, na época do Langlois. A sala do Palais de Chaillot. Eu era muito ignorante em cinefilia, então via-me na (alegre) obrigação de ver muitos filmes na Cinemathèque para melhorar o meu nível de conhecimento do cinema e dos vários grandes autores. O Jacques Rivette estava na Cinemathèque várias vezes por semana (o resto das vezes via filmes nas salas, comerciais, ou privadas, passava muito tempo da vida no cinema), sempre sentado no mesmo lugar: um “strapontin” na esquerda da tela. Então como era fácil localizá-lo e encontrá-lo, acostumei-me às nossas conversas sobre os filmes que acabávamos de ver. Bem mais velho do que eu, ele provavelmente achava enternecedor, pretty, nice…something like that… o facto de uma young lady como eu ir regularmente, sozinha, ver filmes na Cinémathèque. Então conversava comigo feito um padrinho do cinema. Eu tinha sido apresentada a ele pelo Comolli, ou Narboni, não me lembro, but by “gente fina”: para mim era o passaporte para o Rivette conversar comigo. Depois das sessões da Cinemathèque, voltava para casa, no centro de Paris, de metro, partindo da estação “Trocadéro”, até “Bonne Nouvelle”: Rivette e eu morávamos no mesmo bairro, então íamos juntos de metro. Mais ou menos 40 minutos de metro: dava muito tempo para conversar. Aprendi tudo o que era o essencial sobre cinema com Rivette nessas conversas. Foi o meu professor. Tinha a memória absoluta dos planos que acabávamos de ver, memória do filme como um conjunto de detalhes de trabalho, montagem, jogo dos actores, luzes, elementos característicos de tal autor. Fazia sempre a síntese entre elementos analíticos do trabalho fílmico e a crítica geral do cineasta ou dos filmes. Fazia gestos precisos das mãos, dos braços, descrevia tudo, com paixão. Factos de iluminação, de montagem, factos de direcção, profundidade e tratamento do campo. Às vezes surpreendia-me. Ele odiava alguns cineastas, até alguns que ele tinha adorado.
Um dia, saindo de não me lembro qual dos filmes do Mankiewicz – talvez All About Eve (Eva, 1950) – ele disse, fiquei surpresa: “bom.. no fundo eu não gosto do Mankiewicz”, “ce n’est jamais généreux”. Lembro-me dele um dia, por exemplo, saindo do Mouchette (Amor e Morte, 1967) do Bresson. Uma projecção privada, chiquíssima, nos Champs Elysées. A equipa inteira dos Cahiers quase rezando quando saímos, ou então na tal devoção de cristão acabado de receber o corpus christi na comunhão. E o Rivette, toda a gente esperando a opinião dele, saindo da sala furioso, falando que tinha odiado o filme. Consternação e estupefacção geral. “Mais pouquoi?” Eu tive a ousadia de perguntar: tinha odiado o facto – sim, o facto fílmico – da música de Monteverdi no final do final. Achava…vamos dizer, e desculpe o “franc-parler”, uma total putaria esse toque monteverdiano, esse pleonasmo enfático. Rivette era muito moralista na crítica. Gostava de lealdade no cinema. Gostava de Hawks, Hitchcock, Walsh, Ford. Via os filmes duas, dez, vinte vezes quando gostava dos filmes. Um dia, encontrámo-nos como sempre à saída da Cinémathèque, depois de Le Carrosse d’Or (A Comédia e a Vida, 1952) do Jean Renoir. Eu provavelmente com estrelinhas no olhar, de tão feliz, depois de um filme tão belo. Ele olhou para mim e perguntou-me: “é a primeira vez que vês o filme?” E eu confirmando, meio envergonhada de apenas descobrir o filme. Então ele disse: “que sorte a tua!” Com inveja, mas com ternura.

Biette: já falei muito de Biette. Meu amigo Jean-Claude. Passava horas a conversar com ele ao telefone. Falando de cinema, e de tudo. Veja Trafic n.° 85, de 2003, quando ele morreu e nos deixou órfãos dele. Biette, não se pode fazer bla-bla sobre ele, tem que se ler. Os textos de Biette sobre cinema são magníficos. O posicionamento dele escrevendo é que é belo: escreve do lado do director. Há um texto dele onde fala do filme de Fellini, Il bidone (O Conto do Vigário, 1955), um da série A pied d’oeuvre, onde falava do trabalho dos filmes “ao pé da obra” como vocês se colocam “à pala” de Walsh. Ele fala dos directores que estabelecem uma relação extremamente forte com os actores (no caso, o Broderick Crawford, um vigarista patético) porque, no fundo, os actores os representam, intimamente. Belíssimo texto.
O Daney era toda a grandeza e toda a fraqueza do ser humano.
Daney: meu amigo Daney. Acompanhei de perto, até na doença, quando estava a morrer de SIDA. Morreu em plena energia, criou a Trafic. A revista é dele. Conceptualizou-a inteirinha; criança que ele não teve, e que depois da morte dele em Junho de 1992 (n.° 3 da revista) nós continuámos, nós criámos e mimámos, Jean-Claude Biette, Raymond Bellour e eu, agora com ajuda do nosso amigo Marcos Uzal. O maior crítico de cinema francês, toda a gente sabe isso. Seja nos Cahiers, no Libération (maior critico de cinema que jamais existiu na imprensa quotidiana) ou nos primeiros números da Trafic, em 1992. Lúcido, preciso, “sévère mais juste”, todas as qualidades do crítico. Também acontecia que como qualquer crítico, se enganava monumentalmente, porque graças a deus, nobody’s perfect. Por exemplo, em 1967, depois de Festival de Cannes, esculhambou (velha giria brasileira… desculpe) o Terra em Transe do Glauber Rocha, obra-prima, filme imenso: não entendeu, não viu, acontece. O Daney era toda a grandeza e toda a fraqueza do ser humano. Os livros dele são magníficos: a maior parte feitos com os artigos que jamais acabou de publicar. Tinha uma incrível capacidade de escrever, rapidamente e sempre com inteligência, exigência. A disciplina do jornalismo no Libération (escrever quase cada dia, nesse nível!) tinha-o levado a oferecer na imprensa quotidiana a exigência crítica dos Cahiers du cinéma nos seus melhores momentos.
De facto, gosto dos críticos cujo sopro de vida se confunde com o amor que dedicam ao cinema. O Daney morreu quando a doença foi tal que não podia sair mais para a rua para ir ver filmes. Resolveu morrer quando não pôde mais ir ao cinema. Isso é que eu chamo de integridade cinéfila.
Perguntava-lhe também – pergunta ingrata, eu sei – que filme e cineasta mais decisivamente moldaram a sua visão do mundo.
Difícil. Amo, amo mesmo, os seguintes cineastas: John Ford, Leo McCarey, Ernst Lubitch (incluindo os filmes mudos, maravilhosos), Raoul Walsh, Allan Dwan, Robert Aldrich, Minnelli, Samuel Fuller, Michael Cimino, Jean Renoir, Éric Rohmer, Jacques Rozier, Ozu, Mizoguchi, Satyajit Ray, Sternberg — génio dos filmes mudos: The Docks of New York (As Docas de Nova Iorque, 1928), acabo de ver, puro génio de cinema. Na Itália, Fellini, Monicelli, Bellochio, Moretti…Tenho um fraco por Clint Eastwood: tem alta consciência do que faz como cineasta. E dá para ver que é mesmo homem, ser humano de verdade. E tantos outros: os brasileiros do Cinema Novo. Os portugueses já falei.
Quando eu amo mesmo um cineasta é porque ele tem uma verdadeira visão do mundo, uma visão generosa: gosta da comédia/tragédia humana. Gosta DE VERDADE.
No sentido em que dizes: um cineasta que poderia ter moldado para mim uma visão do mundo? Bom, vou escolher o Jean Renoir. Perfeito equilíbrio de todas as qualidades francesas de inteligência da humanidade como ser social, ser de vida e de morte. Nesse sentido, visão do mundo, ele, Renoir, acima de tudo. Por exemplo, o filme dele sobre a Revolução Francesa, La Marseillaise (1938). É muito mais até que uma “obra-prima” para mim. Visão do mundo não é apenas uma questão de alta ou baixa cultura: é afecto, é pensamento, é ética. Para mim, uma das sequências mais belas em todo o cinema mundial é quando um dos soldados vindos de Marselha (para a Fête de la Fédération em 1792) faz parte de um ataque ao Palácio das Tuileries onde se encontra ainda o rei Louis XVI. Há confronto, as balas, os soldados a defender o rei. Um dos marselheses fica ferido, e cai no chão ao lado de uma mulher do povo cujo bebé chora. Então, o revolucionário ferido olha para a mulher ao lado e diz: “eu também tenho vontade de gritar…”. Coisa tão humana.

A Sylvie viveu a época dourada da cinefilia. Entretanto, falou-se (por exemplo, Susan Sontag) na morte da cinefilia. Mais recentemente, assisto, nomeadamente com o fenómeno do online, a um renascimento da cinefilia (fervor em ver, partilhar e discutir cinema, se não em cafés e cineclubes, nas redes sociais e em fóruns online). Como avalia todas estas mudanças?
Morte da cinefilia? Pode ser. Somos dinossauras. Século do cinema é mesmo o vigésimo. Mas acredito of course no futuro do online. Também somos um país, a França, onde a cinefilia resiste muito. Não sou muito nacionalista. Os franceses são muito arrogantes. But… é verdade que gostamos de cinema. A nossa cinemateca oferece uma programação riquíssima, a nossa televisão oferece muitos filmes bons.
No outro dia descobri um filme muito bom do Roschdy Zem que se chama Bodybuilder (2014). Sobre homens, e até mulheres, que cultivam a musculação dos corpos. Cultura um pouco absurda, onde nem se ganha dinheiro nas competições. But, coisa humana. O corpo humano é um assunto de cinema fabuloso.
Como é a sua relação presente com o cinema: ainda vai às salas, o que vê e como diagnostica o cinema contemporâneo?
Onde vejo cinema hoje? Nas salas menos, embora ainda tenhamos muitas. Gosto de ver em casa, em DVD ou em canais especializados em cinema na TV. Ver no ecrã do computador, às vezes, por motivos de trabalho, ou para me comunicar com amigos ou companheiros, portugueses, brasileiros, yankees.
Sou uma pessoa lenta, gosto dos processos profundos, nada de superficial: para o online preciso de me acostumar.