No dia 10 de Dezembro, pelas 15h30 na sala Dr. Félix Ribeiro, será projectado, numa double-bill que contará igualmente com Tarachime (Birth/Mother, 2007) de Naomi Kawase, a correspondência-vídeo de dois importantes poetas japoneses, Shûji Terayama e Shuntarô Tanikawa. Video Letter (1983) é um pot-pourri especulativo em torno dos limites da linguagem, da passagem do tempo e dos problemas da identidade. Objecto fascinante, íntimo mas não diarístico, a colecção de epístolas visuais representa também um dos grandes pináculos das inquietações de Terayama, cineasta digno desse nome, deixando-nos através dos seus segmentos e na primeira pessoa, pistas valiosas para decifrar certas imagens recorrentes dos seus outros filmes. Aproveito esta feliz (e, julgo, inédita) passagem na Cinemateca para adaptar um trabalho académico realizado no início deste ano e cujo fito era o de indagar, no corpo cinematográfico do multi-facetado artista Shûji Terayama, um sistema de imagens que ilustrasse uma teoria ou apontamentos de uma teoria sobre a fotografia
Shûji Terayama em Video Letter (1983)
No cinema de Shûji Terayama, jamais uma única palavra foi proferida acerca da fotografia e, no entanto, ele nunca parou de problematizar e adensar o discurso visual acerca de questões que na literatura especializada sobre o tema encontram ecos inquestionáveis. A nossa intenção será a de revelar, na medida do possível, uma continuidade e afinidade temática no corpo fílmico de Terayama, como se novas imagens sobre os mesmos assuntos (neste caso fotográficos, mas não apenas esses) aparecessem no seguimento da sua obra por acumulação e na assumpção do conhecimento dos trabalhos anteriores. Este pressuposto admite a possibilidade de um diálogo interno à própria obra, no qual o cineasta faria uso de certas sequências como se fossem avanços ou acrescentos a outras filmadas numa ocasião anterior. Isto jamais retira o poder individual de cada cena, antes congrega cada uma numa narrativa comum, transversal, passível de ser citada e reconstituída, como um puzzle. Terayama não é apenas um cineasta que fala com imagens, mas teoriza e provoca-nos através delas. Portanto, o nosso objectivo último será o de coser as pontas soltas, unificar os fragmentos dispersos, em suma, converter uma linguagem visual, noutra.
Quando em 1963, o poeta e enfant terrible Shûji Terayama, que na época ainda não se tinha descoberto como cineasta, escreveu o ensaio Gendai no shishun-ron (Sobre a Adolescência Moderna), o subtítulo que escolhia para complementar a visão libertadora dessa idade decisiva era Iede no susume (Encorajamento para fugir de casa). Na verdade, esse escrito “foi (e continua a ser) amaldiçoado como uma diatribe tóxica e anti-social que blasfemava contra a relação entre progenitores e filhos e acelerava o colapso da sociedade tradicional (Sorgenfrei 2005, p. 33). Podemos encarar o projecto cinematográfico de Terayama como um caminho alternativo para operar essa mesma desconstrução da comunidade humana mais primária e gregária (a mãe de todas as outras). Imagens recorrentes do seu cinema: filhos oprimidos por expectativas castradoras, como se não tivessem espaço para ser livres dentro de uma tradição possessiva que recompensava a auto-negação e jamais a libertação dos sentidos, projecto comum e finalidade última de toda a geração do baby-boom. Para Terayama, a família era o aparelho ideológico por excelência (inclusive o aparelho a partir do qual se poderia pensar a relação mítica e sacralizada com o Imperador) e, justamente, aquele que tinha de ser desabado para fundar uma nova relação, a partir do zero, com o real. Propor a fuga de casa, abandonar a mãe, estabelecer encontros aleatórios nas ruas da grande metrópole: todas estas imagens repetidas dinamitavam a mente dos jovens espectadores, criando uma espécie de comunicação directa com eles e elegendo um alvo como causa de todos os males: a instituição familiar.
Na sua primeira longa-metragem com um título deveras sugestivo, Sho o suteyo machi e deyou (Throw Away Your Books, Rally in the Streets, 1971), Terayama pensa a partir de vários estratagemas narrativos e formais, não só a desintegração familiar, como o alastramento e sucessivo triunfo da contra-cultura hippie. Interessa-nos isolar aqui um flashback ocorrido sensivelmente a meio da película (ver excerto #1), onde uma fotografia de família é tirada a “modelos” cuja vida parece ter sido extorquida. O sépia da cena, cromaticamente nos antípodas dos tons vibrantes e agitados do resto da película, parece já fornecer uma primeira pista de interpretação. Será este o território de uma memória espectral?
Excerto #1 Sho o suteyo machi e deyou (Throw Away Your Books, Rally in the Streets, 1971)
A partir do acto de fotografar e ser fotografado, conseguimos vislumbrar a tensão fantasmagórica presente na instituição familiar, como se esse género de cerimónia doméstica, em que cada membro não é mais do que a representação de si mesmo, exprimisse um desejo imaginário de congregação e homogeneização dos laços afectivos. A intenção de Terayama é clara quando paralisa literalmente os membros da família que aguardam ad eternum, não só o regresso do pai desaparecido (ironicamente, um anão), mas também a possibilidade de poderem ser cristalizados uma segunda vez pela câmara e transformados, finalmente, numa imagem. Essa paralisia geral da vida que invoca uma sensação de morte específica a qualquer stasis tem como excepções o filho, o pai e a mãe que, ao contrário das outras personagens mudas e petrificadas, ainda interagem entre si, revelando, ao mesmo tempo, a corrosividade dos seus laços íntimos. O cineasta, assumindo o ponto de vista desconfortável do filho, parece condenar essa sessão bizarra que tende, através da artificialidade da pose fotográfica – Roland Barthes em La Chambre Claire comparava a última a um “fabrico instantâneo de um outro corpo, a uma metamorfose que antecipa a imagem” (Barthes 1980, p. 25) – , da paragem do tempo e da produção de um objecto externo, a combater a entropia e a desarmonia familiar. Esse desejo de união comunitária só existe e sobrevive no reino da imaginação, e não seria exagerado considerar que Terayama equivale esses objectos obscuros do desejo à privação do movimento natural das coisas, como se o triunfo da imaginação subterrânea, da petição subsidiária de afecto, fosse, afinal, o triunfo da morte.
Portanto, quando a fotografia finalmente é tirada (a esses “modelos” cuja identidade é dada na extracção da subjectividade e no desempenho de um papel imaginário), os referentes esfumam-se numa neblina espessa que toma conta da visão do espectador e impossibilita qualquer reconhecimento de quem estava anteriormente no plano. Terá a fotografia criado outros corpos ou mortificado os presentes? Uma coisa é certa: nesse momento, tudo o que estava para trás no tempo e no espaço tornou-se inacessível. Philippe Dubois escrevia n’O Ato Fotográfico que “qualquer fotografia, no momento em que é feita, remete para sempre (o) seu objeto ao reino das sombras” (Dubois 1998, p. 312), e é precisamente essa remissão que aqui está em causa. A família, enquanto referente de um objecto fotográfico, esfuma-se quando um nova imagem nasce a partir dela e é hipostasiada, porque, como escreve ainda Barthes em La Chambre Claire, “a fotografia transforma os sujeitos em objectos” (Barthes 1980, p. 29).
Qual é, portanto, o produto da sessão fotográfica de família? Qual a especificidade de uma imagem que, extraída do tempo, adquire agora uma realidade independente e material? Não seria exagerado responder do seguinte modo: uma imagem mortificada que se presta a ser venerada. Na sua segunda longa-metragem, Den-en ni shisu (Pastoral: To Die in the Country, 1974), Terayama filma uma reunião familiar com os mesmos dotes ominosos da sequência anteriormente analisada. A família junta-se à mesa para limpar os retratos dos antepassados enquanto a matriarca, perante os olhares de toda a gente, inquire a nora sobre escapadelas durante a noite, implicando uma relação extra-conjugal (excerto #2).
Excerto #2 Den-en ni shisu (Pastoral: To Die in the Country, 1974)
Gostaríamos de acreditar que dentro da lógica auto-referencial e entretecida desta filmografia existe uma sucessão inteligível entre as cenas dos dois filmes ao ponto de elas dialogarem entre si e ser possível aclarar o sentido da segunda a partir da primeira. Porque, da descrição de uma sessão fotográfica familiar entendida como “presença perturbadora de vidas paralisadas da sua duração, libertas do seu destino, não pelo prestígio da arte, mas por via de uma máquina impassível” (Bazin 1981, p. 14), passamos à relação fetichista que a comunidade familiar estabelece com o objecto que daí proveio. Se nos abstrairmos das contingências narrativas, dos diálogos da cena de Den-en ni shisu e nos focarmos apenas no gestos obsessivos, tenebrosos, quase eróticos, presentes na limpeza colectiva dos retratos, descobriremos que as imagens dos parentes falecidos se transformaram num símbolo de adoração e culto e que a própria presença das molduras na reunião cria a sensação bizarra de uma omnisciência passiva, por natureza voyeurística e julgadora no seu mundo de silêncio. Essa projecção do olhar dos vivos sobre os mortos é a metonímia perfeita para Terayama categorizar a esterilidade essencial da estrutura familiar. É em torno dos mortos, não dos vivos, que a comunidade estreita os seus laços sufocantes.
A despeito da manutenção desesperada e fetichista dos mortos por parte dos vivos (fetichista porque provêm da relação unilateral e silenciosa entre sujeitos e objectos que, cristalizados no tempo, se sujeitam aos mais variados usos de acordo com o engenho e a vontade do seu dono), as fotografias dos antepassados continuam a ser meramente uma superfície que aponta unicamente para “um presente passado” (Metz 1985, p. 85). É essa natureza oximorónica, com várias camadas, que encontramos em Susan Sontag – as fotografias são em simultâneo “nuvens de fantasia e cápsulas de informação” (Sontag 2008, p. 69) – ou mesmo no texto de Christian Metz, Photography and Fetish, quando se escreve sobre os rituais funerários: “(eles) têm um duplo significado, dialeticamente articulado: uma lembrança dos mortos, mas também a lembrança que permanecem mortos.” (Metz 1985, p. 85). Do mesmo modo, depreende-se que a fotografia também “mantém a memória do morto como estando morto” (Metz 1985, p. 84), mas abre espaço para fazermos dela o que quisermos com a imaginação, já que, ao ser uma imagem que refere outra realidade que não ela, pode até não confundir a representação com o representado ao ponto da indistinção, mas certamente engendra um sentimento específico de realidade dessa mesma representação (Metz 1985, p. 88), como se, de algum modo, essa presença ausente superasse, fosse um acréscimo da própria ausência para que sempre aponta.
Este fosso entre referente e referência fotográfica adensa-se ainda mais nas experiências de Video Letter (1983), uma correspondência em vídeo que o cineasta iria entreter até à sua morte em 1983 com um outro poeta, Shuntarô Tanikawa. Talvez pelo estado avançado da doença e pela auto-consciência da degenerescência do seu corpo, Terayama, frequentemente nessas epístolas visuais põe em evidência o alcance destrutivo do tempo nos corpos e na matéria. Como parece constantemente indicar Miguel Mesquita Duarte no artigo O Testemunho, o Instante e a Memória: Espaços de Corte e de Interrupção em Video Letter (1982-1983) de Shûji Terayama e Shuntarô Tanikawa, a única prova do poder invisível do tempo, entre presente incessante e imagem estarrecida, é-nos dada através do intervalo que separa vertiginosamente uma coisa da outra (Duarte 2014, p. 177). Evoquemos a cena em que Terayama filma, em dois momentos diferentes, a sua mãe. No primeiro momento, um conjunto de fotografias espalhadas na cama mostram uma jovem mulher (excerto #3: segundos 0.00-0.33). A voz sorumbática de Terayama narra: “Novembro de 1927: a minha mãe”. De seguida, o mesmo plano é repetido, só que em vez das fotografias vemos uma senhora idosa deitada na mesma cama, encarando a câmara (excerto #3: segundos 0.40-1-44). “Outubro de 1982: a minha mãe”, diz-nos agora Terayama.
Excerto #3 Video Letter (1983)
Exprimindo literalmente e por imagens a queda dos corpos na constante transgressão diacrónica (a de um presente que se anula no momento em que é capturado), Terayama aproxima o registo vídeo do fotográfico ao paralisar a mãe de 1982 numa pose que, parafraseando Barthes, a “torna verdadeiramente num espectro” (Barthes 1980, p. 30), encarando-nos de frente com o olhar e resistindo ao tempo e à aproximação sucessiva do plano como se tivesse adquirido a substância de uma fotografia. No entanto, o contraste entre o primeiro e o segundo plano, que compreende um salto no tempo, um intervalo inacessível de quase 55 anos, faz da fotografia um “documento de ausência e de desaparecimento que se abre aos territórios de construção e de memória (…) que faz prolongar o passado no presente através de um choque e de uma tensão entre ambos” (Duarte 2014, p. 179). Com efeito, a mãe de Terayama de 1927, essa ficção bidimensional meramente projectada na cristalização do tempo introduzida pelo objecto fotográfico, difere tão radicalmente da mãe de 1982 que apenas a narração em voz-off, isto é, o elo expositivo e externo à percepção, nos consegue fazer crer que se trata da mesma pessoa. Este choque violento entre passado e presente, esta décalage abismal entre fotografia e referente-no-tempo parece indicar, também, que entre o nosso tempo e o tempo da fotografia existe um espaço de falso preenchimento que remete para uma pretensão de inteligibilidade e reconhecimento perceptivo. Uma imagem, para Terayama, parece provir, citando ainda Mesquita, de “um espaço intermediário de ausência e mistério que constitui, por via de um radical disfuncionamento do simbólico, uma falha entre nós e o mundo” (Duarte 2014, p. 177).
A presença do fotográfico na obra de Shûji Terayama não esquece a afirmação de Susan Sontag em On Photography: “qualquer colecção de fotografias é um exercício de montagem surrealista e de abreviação surrealista da história” (Sontag 2008, p. 68). A noção de qualquer fotografia é bastante cara a Terayama. As suas ficções deliberadamente incorporaram fotografias de arquivo pessoal em que parentes próximos ou distantes participam, embora quase nunca sejam nomeados ou apresentados como tais. Como artista interessado em dissolver o real na ficção, nunca encontrou a necessidade de estabelecer diferenças entre fotografias tiradas no contexto de uma obra ou outras que pertenciam à sua própria vida, pois, pelo simples facto de terem a mesma natureza ontológica estavam igualmente sujeitas a revestir-se da mesma problematicidade. As fotografias íntimas, porém, não deixam de introduzir uma nova camada hermenêutica que poderia ser apelidada como inspirada e relacionada com uma pseudo-biografia.
Den-en ni shisu (Pastoral: To Die in the Country, 1974)
Nas sequências iniciais de Den-en ni shisu, a mesma fotografia da mãe, que aparecerá novamente em Video Letter e noutros trabalhos, surge acompanhada por outras de outros familiares. A intromissão destas stasis no fluxo da ficção e da narrativa representa uma contaminação do próprio filme por “uma imagem estática da morte, uma vez que as pessoas nessas fotografias – parentes mortos, mães a serem mortas – estão associadas com a morte” (Ridgely 2010, p. 154), mas, na verdade, o que nos interessa aqui será o modo como elas são apresentadas, ou melhor, transformadas.
Nem é preciso deter muito o olhar para perceber que essas fotografias “foram rasgadas, cosidas uma outra vez, e reenquadradas” (Ridgely 2010, p. 19). Esta transfiguração inquietante será uma primeira pista para introduzirmos mais uma dimensão específica à apropriação do objecto fotográfico na filmografia de Terayama. Para ele, uma fotografia (como tudo o resto, especialmente o cinema) só existe para ser expandida e intervencionada. Vimos anteriormente que, através da fotografia, o cineasta tinha aberto um terreno de contradições e espectros, mas essa abertura era dada, justamente, por via da passividade assustadora e material da stasis. As fotografias cosidas de Den-en ni shisu, ao serem ainda stasis, conviviam com a sua contradição, levantavam ecos misteriosos e subentendiam várias conjecturas, possíveis narrativas, tão ricas quanto mais frutífera fosse a imaginação do próprio espectador. Steven Ridgely em Japanese Counterculture contribui igualmente com uma leitura biográfica hipotética : “uma narrativa desenvolve-se a partir desses fragmentos rasgados (…) – imaginamos um momento passional de fúria por parte do filho, seguido de um arrependimento pelo ataque e, finalmente, a retoma da afectividade” (Ridgely 2010, p. 19). Poderíamos afirmar com segurança que as fotografias cosidas representavam, não só a relação pessoal e problemática de Terayama com a sua mãe (relação documentada tanto na sua obra, como na sua biografia mais íntima), mas mais decisivamente a profunda repulsa que nutria pelo poder simbólico e impassível desses fantasmas que lhe devolviam o olhar sem liberdade de resposta. Ao mostrar a violência e a reconciliação a partir de uma stasis intervencionada por ele mesmo, Terayama apresentava-se como narrador dentro do estatismo (Ridgely 2010, p. 20), um agente activo no interior de um terreno que apenas aceitaria a surdina, a passividade, a morte.
Num texto publicado em 1976 intitulado Meiro to Shikai: Waga Engeki (O Labirinto e o Mar Morto: O Meu Teatro), Shûji Terayama teorizava sobre a principal teleologia de uma dramaturgia que aboliria a concepção segundo a qual a plateia estaria dissociada da acção interior de uma peça teatral. Ao relembrar duas afirmações sobre movimento incessante e paralisia eterna, note-se como podemos iluminar o sentido dessa extrema contradição que não é alheia à apropriação da fotografia pelo seu cinema enquanto objecto intervencionado.
“O «estudo da estória» é uma tentativa de reconstruir a totalidade do passado. Mas quando eu dirijo o meu olhar em direcção à história, parece que o passado atravessa o meu campo de visão tão rapidamente que toma conta do presente sem que me aperceba” (Terayama 2005, p. 264).
E ainda:
“(…) porque sempre que o intelecto compreende que tudo desemboca na morte, cria símbolos de imortalidade” (Terayama 2005, p. 269).
Excerto #4 Video Letter (1983)
Nestas duas afirmações parece-nos estar contida a verdade oculta, se quisermos, a real profundidade da intervenção do seu cinema nas fotografias de arquivo pessoal. Se as fotografias cosidas de Den-en ni shisu apresentavam um distúrbio no estatismo, todavia apenas intuído pelas réstias materiais de destruição e reconciliação, fazendo o espectador completar a elipse fora de campo; em Video Letter, pelo contrário, Terayama, usando uma fotografia de infância, separava e fazia mover dentro de campo uma parcela que compreendia a figura materna da sua aparência enquanto criança (excerto #4). Desta vez, o movimento invade as expressões paralisadas e espectrais da mãe e do filho, criando uma imagem cinematográfica que é extremamente paradoxal porque tenta, a todo o custo, criar “símbolos de imortalidade” enquanto convida a metamorfose, o logos e a confissão íntima a imiscuir-se. Isto é certo: Terayama jamais foi contra a ideia de uma stasis enquanto registo de eternidade, mas só a poderia aceitar se a sintetizasse de acordo com as transformações da vida e os instantes do real, se quisermos, se a tornasse pessoal ao ponto de fabricar um discurso visual e biográfico a partir dela. Ao confrontar, através do cinema, a stasis com os movimentos e desafios dessa força incessante do presente, pretendia criar, através de forças antagónicas, um mundo poético, uma zona indiscernível onde a morte da fotografia deixaria de ser morte e a vida apenas poderia ser inferida pelo acto de intervenção.
Esse ponto de encontro entre real e ficção, morte e vida, essa transmutação surreal e indistinta de ambos os pares na mesma terra-de-ninguém, é o tema essencial de Keshigomu (The Eraser, 1977). Trata-se de uma curta-metragem sepulcral, sem diálogos, onde uma fotografia de um oficial da marinha efectua literalmente “o regresso do morto” (Barthes 1980, p. 23). Roberta Novielli em The Prying Glance classificou-a como “uma retoma do tema das memórias e dos fantasmas que emergem do passado” (Novielli 2003, p. 48): uma mulher, provavelmente a amada de um oficial que morreu na guerra, olha para o oceano e vive as memórias de mocidade através de uma fotografia desse soldado misterioso. Ela ressuscita-o na mente, em projecções transfiguradas perante os seus olhos e em que participa numa versão mais nova de si mesma, mas mantêm-se petrificada como se contemplasse o seu próprio sonho, acordada. Todavia, as memórias angustiantes do luto, em vez de serem descritas como mera passividade consciente, entregam-se, mais uma vez, a uma intervenção que apenas poderíamos apelidar de surreal ou fantasmática, ou seja, que corresponde a uma exterioridade invasora da imperturbabilidade do registo ficcional e diegético e que diz respeito a um profundo desejo delirante de auto-destruição.
Excerto #5 Keshigomu (The Eraser, 1977)
Essa intervenção faz-se sentir a dois níveis distintos durante a curta-metragem: a afectação pela espectralidade, adivinhada pelos fragmentos obliterados de uma imagem que é memória traumática (excerto #6: segundos 0.00-0.03) e, finalmente, a recusa categórica de toda a discussão anterior. Nesse último momento (excerto #6: segundos 0.04-0.12), o realizador segue o paradeiro interior de uma memória que quer deixar de ser imagem e se quer esvair no esquecimento, condenando-se a si mesma à indiferença. A exterioridade radical do acto de apagamento da imagem (com uma mão e uma borracha borrando-a literalmente) só poderia significar o vai-e-vem de uma memória fatalmente inconveniente que deseja ser recalcada ou mesmo neutralizada. Com este acto extremamente simbólico e meta-fílmico, Terayama estabelece também um paralelo entre memória e fotografia, chamando a atenção para o facto do humano (no caso, a viúva) poder viver refém das imagens assombradas do passado, impossibilitando o escoamento do tempo presente.
Uma das grandes obsessões e talvez a mais violenta na obra de Shûji Terayama equivale à cristalização dos sujeitos no interior da temporalidade do plano, aquilo que, exagerando as coisas, poderíamos baptizar por fotografização ou objectificação dos corpos vivos. O triunfo do olhar fotográfico (habitado pela memória do que foi e recusando a vida em virtude de uma paralisação, de uma eternidade – só que em Keshigomu indesejada), sendo também o triunfo da morte, cria imagens abjectas que pedem, uma vez mais, para serem intervencionadas pela mão visível do próprio realizador.
Excerto #6 Keshigomu (The Eraser, 1977)
Num plano-sequência longo, é-nos mostrado o olhar vazio da viúva na praia (excerto #6). Ela mesma tornou-se numa fotografia dentro do filme, um fóssil de memórias traumáticas que, a despeito dos esforços, não se apagam. Pensamos poder haver aqui qualquer coisa da natureza de uma replicação, no registo cinemático, de uma time-exposure, isto é, a recusa do tempo do cinema, que é, por sua vez, a recusa do instante fotográfico. Segundo Mary Ann Doan no texto The Emergence of Cinematic Time, esse tipo de fotografia está sempre “assombrada pelo passado, pela lembrança, pelo luto” (Doan 2002, p. 26). Os sujeitos autorizam a sua presença, mas simultaneamente encontram-se desprovidos de vida. Ao paralisar o que já é estável, a time exposure “antecipa e instancia a morte” (Doan 2002, p. 28) mas ao mesmo tempo “transforma isso numa temporalidade recorrente de luto ou nostalgia” (Doan 2002, p. 28).
Quer na temática, quer na forma, Terayama invoca toda esta sensibilidade fúnebre em Keshigomu, mas ao mesmo tempo, e à semelhança do que aconteceria em Video Letter, instaura o poder do cinema, o poder da continuidade, mesmo que ele seja completamente externo e só consiga ser formado por uma camada de imagem em movimento que se acumula conflituosamente numa outra estanque. Dentro da sua filmografia, é em Keshigomu que os dois registos (fotográfico e cinemático) mais lutam entre si e poderíamos afirmar que, na óptica do artista, só o cinema poderia conjurar o trauma da memória, só ele poderia banir a implementação de um ponto-de-vista fotográfico sobre o real. Enfim, só o cinema pode salvar a espectralidade constitucional da fotografia.
Excerto #7 Saraba hakobune (Farewell to the Ark, 1984)
Cena final da derradeira e póstuma película do poeta visual: uma comunidade de novos habitantes citadinos reúne-se para tirar uma fotografia com um aparelho tão antigo que nem parece funcionar de maneira adequada. Anteriormente na acção narrativa de Saraba hakobune (Farewell to the Ark, 1984), estes mesmos personagens, quando viviam na aldeia, eram espécimes em via de extinção porque eram os últimos sobreviventes de um mundo primitivo onde rituais pré-morais coexistiam com a desconfiança da linguagem e da lógica. Antes de po(u)sarem para (na) a fotografia, reconhecem-se com base no passado, falam do tempo que passou sem pedir licença, encontram-se pela primeira vez desde que se mudaram. A vida na cidade tornou-os provavelmente anónimos e, por isso mesmo, desconhecidos uns em relação aos outros. Mas, a fotografia vai ser tirada. É necessário manter a postura.
Qualquer coisa de mágico e imprevisível acontece a seguir. Naquele que é o último momento do seu cinema, Terayama inverte poeticamente toda a conflituosidade latente da sessão fotográfica do seu primeiro filme, Sho o suteyo machi e deyou (excerto #1) e convida-nos a contradizer com ele tudo o que proferiu visualmente nas obras passadas. Se nessa sessão fotográfica familiar reinava o sentimento de que a “fotografia era o inventário da mortalidade” (Sontag 2008, p. 70) e a expressão mais perversa da manutenção de um mecanismo ideológico totalmente falso e artificial, nesta outra sessão, a fotografia, que devia registar a nova vida civilizada (mas triste e desconexa) destas existências na cidade, acaba por voltar fatalmente atrás no tempo e ressuscitar uma imagem passada, decididamente mais viva e reveladora do que a do próprio presente. No último plano do seu cinema mágico, o cineasta parece dizer-nos, pela primeira e última vez, que a fotografia devolveu a genuinidade daquela comunidade que se reuniu em torno de uma memória para, de certo modo, se reencenar e se descobrir uma outra vez.
Este é um caso flagrante de uma excepção que confirma a regra. E é precisamente porque se trata de uma excepção, provavelmente de últimas palavras escritas em celulóide, que esta misteriosa cena, difícil de congregar num sistema fechado sem contradições, se torna tão comovente. O cinema de Shûji Terayama, ao esgotar-se e se consumir na morte, parecia abraçar, por breves instantes, a ideia de que uma fotografia “também é um convite para a sentimentalidade” (Sontag, p. 71), um meio poderoso para retro-activamente resgatar uma identidade perdida no interior da confusão alarmante do presente.
Bibliografia citada:
Barthes, Roland (1980). La Chambre Claire: Note sur la photographie. Paris: Éditions de L’Étoile, Gallimard, Le Seuil.
Bazin, André (1981). Ontologie de l’Image Photographique. In Qu’est ce que le cinéma? (pp. 9-17). Paris: Les Éditions du Cerf.
Doan, Mary Ann (2002). The Emergence of Cinematic Time: Modernity, Contingency, the Archive. Boston: Harvard University Press.
Duarte, Miguel Mesquita (2014). “O Testemunho, o Instante e a Memória: Espaços de Corte e de Interrupção em Video Letter (1982-1983) de Shûji Terayama e Shuntarô Tanikawa”. Aniki – Revista Portuguesa da Imagem em Movimento, Volume 1 (nº 2), pp. 176-191.
Dubois, Philippe (1998). O Ato Fotográfico e outros ensaios. São Paulo: Papirus Editora.
Metz, Christian (1985). “Photography and Fetish”. October, Volume 34, pp. 81-90.
Novielli, Roberta (2003). Terayama Shûji – The Prying Glance. In Domenig, Roland (Ed.), Art Theatre Guild – Unabhängiges Japanisches Kino 1962 – 1984 (pp. 46-50). Viena: Osterreichischen Filmmuseums.
Ridgely, Steven C. (2010). Japanese Counterculture: The Antiestablishment Art of Terayama Shûji. Minnesota: University of Minnesota Press.
Sontag, Susan (2008). On Photography. Inglaterra: Penguin Books.
Sorgenfrei, Carol Fisher (2005). Unspeakable Arts: The avant-garde theatre of Terayama Shûji and postwar Japan. Honolulu: University of Hawai’i Press.
Terayama, Shûji (2005). The Labyrinth and the Dead Sea: My Theatre. In Sorgenfrei, Carol Fisher (Ed.), Unspeakable Arts: The avant-garde theatre of Terayama Shûji and postwar Japan (pp. 263-313). Honolulu: University of Hawai’i Press.
Todas as traduções são da responsabilidade do autor.