O menino é pai do homem.
Wordsworth
Chronos is here the ghost, the devourer of children-books, the incongruous visitor in the celibate solitude of the work of reconstructing debris, fantasmatic of the Other in the middle of this insular laboratory.
Michel de Certeau, Writing vs Time: Robinson Crusoe
Quando um trem atravessa o caminho do cinema, já sabemos por tantos e tão desolados tráfegos que se trata de um arauto da morte: Strangers on a Train (O Desconhecido do Norte-Expresso, 1951), La bête humaine (A Fera Humana, 1938), Les yeux sans visage (1960), Sanma no aji (O Gosto do Saké, 1962), Sleepless (2001), King of New York (O Rei de Nova Iorque, 1990), Human Desire (Desejo Humano, 1954), Ministry of Fear (Prisioneiros do Terror, 1944). Um trem a princípio é a figuração da reta irreversível que nos conduz a nosso destino, e é impossível aos olhos fixados nos trilhos não perceber, neste penúltimo momento que antecede o desastre, que a morte já se confirmava pela sujeição das linhas dispersas que caracterizam a vida à perpendicular aniquiladora que deságua no Nada. Mas no filme de Mozos, Xavier (1991-2002), esta straight line fatal é diferida singularmente: o trem absorve a figura da mãe (que desaparece na primeira sequência, ao deixar o filho num convento) e transfigura a paixão triste da mulher em um crescendo de juventude e força que agora nos restitui Xavier já adulto, em um close iconográfico de Pedro Hestnes que é o emblema heráldico da renovação do cinema português dos 90: Xavier quer viver, e o filme vai consistir no cotejo de dois modos de vida e operandis, que, nestes anos de ressaca para uma juventude que aspira a converter finalmente a experiência em obra, sempre se entrecruzam aqui e ali, entre a cama, a bebedeira e o casual cigarro a dois, mas que tacitamente acabam por se distanciar: há os jovens que estão “aí” e acreditam que o instante é o grande dom, e assumem as máscaras da insolência e da despreocupação para ingenuamente exorcizar os perigos deste “estar lançado aí”, que os pode tragar subitamente; e há os jovens graves e belos como Xavier, que taciturnamente recolhem a herança que lhes é devida e empenham-na no trabalho e na paciente contemplação, pois cultivam um eudaimonismo, sim, mas que se preserva do demoníaco. Eis aí talvez uma justa figura para definir a obra daqueles “graves e belos” cineastas que fizeram a nouvelle vague portuguesa; voltaremos a isto.
Xavier é um filme feito de encontros, de esbarrões, de entrecruzamentos no espaço e intermitências no tempo; como em Uma Rapariga no Verão (1986), filme que lhe é contemporâneo, Mozos vê a existência jovem que se faz diante de seus olhos como empreinte de rascunho: uma experiência passageira que, como nos versos das Elegias de Duíno, também está selada por um certo angelismo relacionado à finitude, à evanescência leggera que transforma a vida presente em um instantâneo ontológico: nossa condição é ser passageiros. Um trânsito, um tráfego intermináveis converte o espaço num container de transições; no domínio do découpage e da montagem, também: vejam esta senhora que solicitamente ajuda Xavier a não ser atropelado, e em quem mais adiante o seu amigo esbarra, sem pedir desculpas: ficamos por ali mesmo. O filme consiste nesta intensa atenção a uma fenomenologia do instante, esta coagulação da finitude – mas afinal, que futuro nos espera? Um corte bruscamente lapidar é a resposta. Uma desconhecida manda um beijo da rua para o escritório onde, para variar, “espera e contempla” um Xavier um tanto espantado pelo inusitado da situação, assim como esta outra lhe pede fogo, e a iminente paquera se desvanece na noite túrgida de possíveis. Numa bela sequência de primeiro beijo entre o rapaz e seu flerte, um plano geral da mulher à balaustrada vai se estreitando à medida em que Xavier dela se aproxima e a beija de forma atabalhoada; mas em seguida ele retrocede e sai do campo pela esquerda, deixando-a ainda aturdida pelos efeitos de sua passagem. Esta talvez seja a sentença justa: “pelos efeitos de sua passagem”. Testemunhamos uma imaginação impressionista au travail, como lá dizia o Cocteau da Morte em gerúndio no cinema: o diapasão do filme consiste em recolher os ecos, as reverberações destas passagens, o ethos desta geração que prefere o gerúndio horário da epifania ao pretérito mais que perfeito de conjugação metafísica.
Mas e Xavier? Xavier é talvez uma espécie de foz, para onde convergem todos estes instantâneos, estas experiências lacunares de ser; pensemos, assim, que a vertigem característica que o acomete – na hora de atravessar a rua, em cima do andaime – é um índice existencial que, como em Mudar de Vida (de Paulo Rocha, aliás produtor deste Xavier), torna o personagem sensivelmente mediúnico a esta radical transitividade: Mozos pressente no psicossomático uma qualidade de antena do que circula entre nós. Em duas sequências liminares, ligadas aliás à Mãe, esta mediunidade existencial se revela figurativamente, na própria carne do filme: na sequência de abertura, a mulher, ao atravessar a rua, desaparece à la Méliès (truque primitivo, “aí”, que é o lote deste cinema de base ontológica), e o contracampo nos oferta aquele close glorioso de Hestnes no trem. Quando ela morre, em uma sequência espetacular e especular ( onde a identificação do jovem um tanto à margem da alienação vigente com a mãe doente se manifesta), Xavier vai visitá-la no hospital psiquiátrico, e um contracampo que raccorda com um close de seu rosto atônito nos leva a presenciar uma espécie de curto-circuito ontológico, onde o desespero do rapaz acaba por se exteriorizar na explosão da lâmpada: uma presentificação do que “vai dentro” no cerne da matéria é a resposta avant la lettre de Mozos ao uso tatibitati do digital em nosso tempo. Xavier pode ser considerado uma espécie de go-between, diegético ( está sempre aí, entre todos), mas também espiritual deste meio em gerúndio; é ele que retém e fixa para a inscrição romanesca do filme tudo o que passa e passará.
Se Xavier está com todos e sempre – de fato, é uma figura ubíqua-, ele no entanto se reserva em uma espécie de delicada redoma de pose ( um tanto à parte em certos planos, à espreita de ou observando) e de ethos : é um anjo guardião ou conselheiro, a quem sempre se recorre; é sobretudo um espectador, um tanto tragicamente privilegiado é verdade, pois é sua história vincada de sofrimento que o ensinou que a vida é fortuita e o prazer dom interino. Esta talvez seja a razão para a sapiência deste rapaz que, do pai desaparecido e da mãe louca, soube tirar a lição de uma ética um tanto estóica, transcrita embora suavemente pelo bico-de-pena daquela melancolia que, nos belíssimos closes “gênero busto” de Pedro Hestnes, o destacam (literalmente: uma secção extática do espaço turbulento em volta) como a consciência desencantada do filme. Xavier começa o filme já sem pai e vai perdendo a todos pelo caminho: a mãe, finalmente a freira e o padrinho, mãe e pai substitutos , e a sequência final já não nos presenteia com nenhum daqueles itinerários despreocupados dos amigos que energizavam o espaço do plano fixo: onde quase todos? Mas Xavier segue, pois é um asceta laico da economia restrita, não um herói desabrido da economia geral. Ele não desperdiça, como todos; antes pelo contrário: preserva-se, amealha ser e tempo, pois os pressente findos no instante iminente. Daí a importância, enfatizada por Mozos, do regime do trabalho e do estudo, destas ocupações a que o rapaz se dedica e que o salvarão do desperdício demoníaco, pois não se esgotam no present tense da vida “que se gasta”, mas se alicerçam em um telos futuro de posteridade. Xavier conta com o tempo, pois o sabe usar, aplicar-lhe um valor de uso que lhe será útil com o tempo e no tempo: o tempo pode não ser exatamente o Kairos da Revelação, mas certamente não é mais o Kronos maldito do valor de troca capitalista (… e ganharás a vida com o suor do teu rosto). É um tempo intermediário, como uma vida intermediária, que não se contenta com o sursis dos jovens em torno, pois aspira à mais-valia da existência: um Kairos do Ganho.
A vida e o tempo de Xavier “vão vivendo como se deve”, mas o seu eudaimonismo não se limita ao instante porque, como está dito na abertura deste texto, não flerta com o demoníaco: sabe que há mortos demais em torno e dentro de nós para darmos uma chance à “parte maldita”, sabe que apesar das intempéries e das seduções é preciso continuar, e um dia morrer de pé; se Uma Rapariga no Verão, filme das desconexões intempestivas e encontros casuais com o qual pode ser comparado, termina no vácuo em que começou, é porque Isabel talvez ainda tenha ofertas demais, e quem muito tem desperdiça a liberdade com um uso niilista; Xavier sabe que passa, sabe que é pobre ( apesar do padrinho), sabe que precisa trabalhar para viver, e como é sábio por obra das pancadas da existência -até hoje não encontraram outro meio de nos ensinar-, sabe fazer um bom uso do trabalho, maldição para tantos mas Graça para aquele que conhece por intuição que o trabalho, se nos aliena socialmente, também traz a bênção de alienar nossos fantasmas. Xavier, então, é um filme sábio, um filme terapêutico, da vida “que se preserva”.
Falei no começo dos jovens “graves e belos” que, à semelhança de Xavier com seu futuro, fizeram o novo cinema português. Também na ideia e na confecção destas obras extraordinárias do cinema contemporâneo encontramos a mesma experiência de uma “economia restrita”, ou que preserva (o passado): o cinema feito de jovens devotado à iconografia dos jovens não cede em nenhum momento à retórica “jovem” que contaminou e condenou a uma caduquice irremediável alguns espécimes, por exemplo, da nouvelle vague: nada de câmera na mão, de raccord desleixado, de luz estourada, porque o cinema feito em Portugal é modernista mas rigorosamente coerente com aquela dívida que levou o maneirista Parmigianino a necessariamente ser um “intérprete” de Rafael, e Rafael de Michelangelo: a prestação de contas aos Pais, aos clássicos, às Origens. Em Pedro Costa, em Mozos, em Vítor Gonçalves pressentimos sempre que à sombra da solidez de um plano oblíquo ou de um raccord mais fantasioso se abriga a garantia do artesanato clássico: ninguém nasce ex-nihilo, como não há artistas sem herança nem promessa. Manuel Mozos, como seu personagem Xavier, conhece que a vida é passageira, é certo, e que a única chance que lhe é reservada de garantir-se uma sobrevivência póstera é a Obra; e obras não existem sem Pais e sem filhos.