Não acontece todos os dias. Nem acontece assim todos os anos. Quando sou chamado para fazer balanços ou tops tendo a olhar para os títulos que ficaram de fora do radar da distribuição portuguesa em sala. E, por vezes, lá se descobre uma ou outra pérola. Seja em DVD, on demand ou directamente na televisão, há sempre margem para o cinéfilo espraiar o prazer pela escavação e pela descoberta. Era aqui que queria chegar: esta arqueologia feliz sobre as segundas ou terceiras camadas de filmes produzidos recentemente não acontece todos os dias e não acontece todos os anos. O filme que motiva esta edição da Civic TV poderá ser motivo para uma dessas descobertas, mas a ele parece ser alheia a questão “ao cinema o que é do cinema”. Inimigo do cinema? Não, “cinema desamigado”, poderosamente inscrito nos ecrãs onde, cada vez mais, se desenrola o outro cinema, que é o da nossa vida. Da nossa vida online. Mas calma, vamos por partes.
2017 começa com uma notícia importante: o mais recente filme de Ti West, In a Valley of Violence (Terra Violenta, 2016), não chegou lamentavelmente às salas, mas acaba de ser lançado no mercado home cinema nacional. A mais recente obra do realizador de House of the Devil (2009) – ainda hoje comercialmente inédito em Portugal – e The Innkeepers (Hóspedes Indesejados, 2011) – com passagem demasiado discreta pelas nossas salas – é um contributo interessante para a ressurreição a que temos assistido do género do western. Resumindo rapidamente a proposta, diria que se trata de uma versão low key – por comparação, talvez demasiado “amorfa” – do Tarantino “odioso” que em 2016 assaltou a mitologia da História – e do cinema – ambientada na terra de Lincoln. De qualquer modo, cá está mais um exemplo de um filme que não merece cair no esquecimento, pese embora, por uma razão ou outra, não tenha chegado ao grande ecrã. Olhando para o ano que agora passou, há um filme que releva como principal falha da distribuição em sala: esse pedaço impecável de horror folk chamado The VVitch (A Bruxa, 2015), lançado directamente em DVD e um título da grelha TVCine.
Em 2015 dois filmes estrearam directamente na televisão nacional e deixaram em mim uma impressão duradoura: Gipsofila (2015) de Margarida Leitão – sobre o qual escrevi aqui – e, assunto que me traz a esta crónica, Unfriended (Desprotegido, 2014) de Levan Gabriadze. Não há dúvidas de que estamos na presença de um caso muitíssimo especial dentro do universo dos filmes que não passaram pelas nossas salas de cinema. De facto, respeitando a ideia de que o “meio é a mensagem”, não serão elas, de facto, o habitat mais justo para este filme. O grande ecrã seguramente interferia com o efeito desconcertante de um filme todo ele passado na imanência de um pequeno ecrã de laptop. Por aqui, o lamento em relação à sua não estreia em sala é um pouco estúpido: sim, Unfriended é uma peça de cinema fundamental para se perceber o modo como hoje urdimos as nossas relações interpessoais, mas não, nem por isso se adapta aqui a boa máxima que diz “ao cinema o que é do cinema”. Foi Lev Manovich que defendeu, em The Language of New Media, que a Internet aprendeu a sua linguagem com o cinema, indo beber sobretudo às grandes lições de montagem dadas desde Griffith e Eisenstein. Em Unfriended é como se assistíssemos ao cinema a dar o troco: a Internet é agora arena tomada, “reclamada de volta”, pela Sétima Arte. Sim, porque esta – para ser arte do movimento – não precisa de mais do que desse set; um “ambiente de trabalho”, onde múltiplas janelas reproduzem, até ao abismo, imagem, som e acção (pura kinesis).
A partir de uma ligação Skype o realizador Levan Gabriadze faz desenrolar um slasher totalmente online. Como manda a receita do género, o vilão aqui não tem cara e o seu nome é como uma máscara sem rosto. Ele é um ícone de Skype identificado como Billie227 que se intromete numa conversa entre amigos teenagers. Quem é ele mesmo? De onde veio ele ao certo? Será um bot, um bug, um glitch no sistema? Sim, quer dizer, não, quer dizer, sim e não, porque se, por um lado, alguém reage e interfere na conversa amena entre amigos, também é verdade que, por outro lado, o que acontece offline denuncia um qualquer poder demiúrgico que transforma a realidade num teatro totalmente controlado à distância. Olhemos para a coisa de outro modo: a presença de Billie227 é virtual, num meio virtual, mas nada se afigurará mais real do que esta intrusão – mesmo que não tenha rosto ou um nome “convincente” -, porque o seu propósito é claro. Tudo ganha mais nitidez quando este “monstro” virtual começa a atacar os jovens incautos e, jogo após jogo, quando começamos a perceber – nós e as vítimas, nós com as vítimas, nós como as vítimas – que o propósito do assassino tem uma finalidade moralizadora: vingar a morte de Laura Burns, rapariga que cometeu suicídio depois de ver a sua dignidade brutalmente ferida numa publicação de YouTube. Estamos, definitivamente, no campo do slasher. O assassino, seja ele quem for, esteja ele onde estiver, virtual ou real, morto ou vivo – ei, haveis visto Kairo (Pulse, 2001)? -, faz da morte uma lição de moral, contra a arrogância, a maldade e a vaidade da juventude.
Neste compromisso com as imagens da escrita e a escrita das imagens, estaremos sempre sob o julgamento moral de uma espécie de “olhar divino”, que aqui é hiperbolizado numa linguagem, à la Antigo Testamento, do “olho por olho, dente por dente”.
Unfriended insere-se no género, em maturação, do desktop cinema. Num dos LisbonTalks organizados no ano passado pelo À pala de Walsh, “A Internet como forma-cinema”, foram discutidos os limites e alcance desta espécie de novo campo cenográfico para o cinema. Dois dos mais inventivos e estimulantes pontas-de-lança deste cinema – se estamos a falar, de facto, de um outro tipo de cinema – fizeram parte do debate: o norte-americano Kevin B. Lee, que com Transformers: The Premake (2014) assinou uma obra de referência dentro deste domínio de um cinema de interfaces, e o português Afonso Mota, jovem realizador que, nas suas promissoras primeiras obras, tem assimilado a linguagem das interacções online. É curioso ver, desde já, como estes dois casos se distanciam do exemplo que aqui trago, provando, deste modo, a riqueza de possibilidades fílmicas que o nosso desktop pode encerrar. Unfriended é um filme de terror e não uma análise sociológica sobre o fenómeno cultural do cinema na Web 2.0. (como é o referido filme de Kevin B. Lee) ou um exercício de subtil introspecção dramática [como são os filmes de Afonso Mota, Sala Vazia (2015) e O Sul (2016)]. Unfriended é – muito simplesmente, apetece escrever e mal – um slasher. Um filme que faz do online matéria, muito concreta, de susto, tensão e medo. Curiosamente, este não é o único filme que transforma a arena das redes sociais em matéria de horror. O episódio filmado por Joe Swanberg para o filme colectivo V/H/S (2012), The Den (2013) e Open Windows (2014) eram já muito barrocas experimentações no âmbito do desktop cinema. A assombração e a perseguição – uma perseguição demiúrgica operada por um qualquer, mais ou menos saneante, “avatar do mal” – são os ingredientes fortes destes filmes de terror passados entre as janelas da Internet, portanto, passados na vizinhança de todos nós, utilizadores deste código que nos faz escrever, e que faz de nós a sua escrita.
Unfriended é, de longe, o objecto mais bem burilado dos filmes de terror aqui citados, nomeadamente por entrosar hábil e lucidamente o drama com uma espécie de oficina contínuo de “escrita – conversação – escrita – conversação”. O verdadeiro suspense está nas brechas, muito concretamente, nos modos como a protagonista hesita ao escrever, ao tentar traduzir em palavras e acções de montagem – ainda Manovich? – a ansiedade e o medo que lhe vão corroendo o espírito. Esta acção de escrita – escrita de si e do outro, isto é, de perfis psicológicos e de um desígnio comum – é muito poderosa no filme de Levan Gabriadze. Por ela nos vamos apercebendo de como vivemos, hoje, num cenário de imagens-palavra, no seio do qual escrevemos tanto quanto somos escritos pelas tecnologias que utilizamos.
Apanhar Unfriended a dar na TVCine 4 foi desconcertante. O meu primeiro encontro com este filme aconteceu no ambiente certo: no ecrã do meu computador – o mise en abîme foi, então, ainda mais abismal. Contudo, no ecrã do televisor, pude encontrar a “distância mínima” que transforma os objectos da Internet em objectos do cinema. O facto do meio de exibição (o ecrã do televisor) descoincidir com o suporte diegético (o ecrã do computador) permitiu-me situar o valor de Unfriended como uma tentativa de tratado cinematográfico sobre a linguagem perversa do online ou, usando outras palavras, sobre o “doente e manhoso cinema” que faz a Internet funcionar. É, portanto, aqui que a função-cinema releva. Porque é ela que consegue trabalhar, nessa tal distância crítica justa, o lugar de uma comunicação que é, por vezes tão insidiosamente, montada com texto, som e imagem.
Conclusão? Estamos todos vulneráveis às consequências da nossa escrita. E a nossa escrita é tanto escrita de si como escrita dos outros – a web é rede e a rede é uma malha que serve para pescar. Neste compromisso com as imagens da escrita e a escrita das imagens, estaremos sempre sob o julgamento moral de uma espécie de “olhar divino”, que aqui é hiperbolizado numa linguagem, à la Antigo Testamento, do “olho por olho, dente por dente” – o cyberbulling como pecado capital? Não precisava Unfriended de ir tão longe na violência da sua mensagem, porque, seja on ou offline, o mal devora. Billie227 não é fantasma, é o nome – o avatar possível – da nossa (falta de) consciência na era do digital. Lembro-me de um tweet do já falecido Roddy Piper em que este exclamava: “They Live is a documentary!” É o que me apetece dizer também sobre este Unfriended.