As pessoas que têm os olhos azuis vêem tudo azul?
Cruzeiro Seixas
Por acaso, ou por decisão superior, vi, costas com costas, Cruzeiro Seixas – As Cartas do Rei Artur (2016) e Fernando Lopes, Provavelmente (2008). E desse improvável emparelhamento, próprio das metodologias cinéfilas de cada um, surgiu uma curiosidade que aproxima os dois criadores: tanto a Lopes como a Seixas lhe falta a habilidade de nadar. Se esta parecença entre os dois surge casuística, e é-o com certeza, menos aleatória são as proximidades entre os filmes que retratam cada um dos artistas. Cláudia Rita Oliveira e João Lopes, nas distâncias evidentes que separam os seus documentários, encontram-se através de um exercício cinematográfico que pretende, a espaços, mimar as obras dos homens que retratam. E é nesta solução fílmica, que demonstra a entrega dos realizadores aos sujeitos que homenageiam, que se manifesta a verdadeira compreensão da arte de cada um, e como tal, se evidencia a potência dessa mesma arte e do olhar que a (re)transmite em imagens e sons. Aquilo a que me refiro exactamente é o modo como Rita Oliveira e Lopes conseguem produzir retratos dos dois autores que são simultaneamente um decalque do trabalho destes, como se esse retrato só fosse possível através de um trabalho de transferência que filtra a mise en scène dos primeiros através dos formalismos das obras dos segundos.
Em concreto, Fernando Lopes, Provavelmente inicia-se com um fotograma, impresso em papel, que o realizador retratado observa e analisa e logo depois assina, fotograma esse que resulta de um encadeado fundido entre duas sequências da obra do realizador mas cuja montagem se deve ao olhar (de crítico) do realizador – solução narrativa que aliás encerra circularmente o filme. Ou seja, João Lopes produz uma imagem nova que Fernando Lopes toma (literalmente) como sua, e nesse arco mimético revela-se, de modo surpreendentemente cândido, a própria natureza do cinema do realizador retratado. Por sua vez, em As Cartas do Rei Artur o mimético ganha proporções que se podem encarar como ironicamente estruturalistas, isto é, Cláudia Rita Oliveira estrutura o seu olhar a partir dos cadernos de Cruzeiro Seixas (mais de quarenta, conservados na Fundação Cupertino de Miranda), objectos pautados pela sua estrutura caótica – avulsos, torrenciais, singulares.
O mimético nota-se nos grafismos feitos à maquina de escrever, a insistência nos ‘desaforismos’, as fotografias e as imagens de arquivo, as cartas trocadas e recortadas nesses mesmos cardernos [de certo modo, mesmo que de modo diverso, este é também um filme epistolar sobre dois poetas como o é Correspondências (2016) de Rita Azevedo Gomes], ou a forma como o filme captura momentos do dia-a-dia de Seixas sem no entanto os documentar de facto, substanciando a qualidade de diários não-diários dos próprios cadernos, feitos livros-objecto. Tudo isto acaba por cair (esporadicamente, é certo, mas especialmente no recuso aos arquivos da Videoteca de Lisboa e do Prelinger) num trabalho algo ilustrativo (com efeitos colocados a despropósito, como as sequências filmadas com drone), no entanto, ao construir um documentário que reproduz na sua própria natureza a substância da arte surreal de Seixas, Rita Oliveira mostra-se devota do homem e do seu legado, e por fazer transparecer a obra na forma do filme, este acaba por revelar, de modo mais evidente, a doçura dedicada do olhar que o produziu – por esse olhar ser capaz de se esconder a bem da homenagem que procura.
Mas os mais ternos e tristes momentos de Cruzeiro Seixas – As Cartas do Rei Artur são aqueles em que Cruzeiro se encontra sentado frente a um televisor e vê Autografia (2004) de Miguel Gonçalves Mendes, e nas imagens (re)encontra Mário Cesariny. O filme de Rita Oliveira foca-se essencialmente na relação entre os dois, relação de adolescência (foram colegas de liceu) que foi depois amorosa, artística, confessional e fraternal. Relação essa que marcou profundamente Cruzeiro (talvez mais do que a Cesariny – pelo que o filme mostra…) e que se converteria num exílio (semi)auto-imposto em África, e na transferência de um amor carnal pelo outro, num amor etéreo pelo continente. Nesse processo os dois homens deixariam de se falar e por isso o reencontro produzido pelo contacto com as imagens plasmadas no ecrã do televisor ganha uma potência emocional rara – no fundo sublimando a própria natureza do espectador que olha nos olhos das imagens como se elas fossem gente, e lhes fala, as encara, as contesta e por fim lhes toca, em vão. Só que Rita Oliveira dá corpo ao sonho de todos os espectadores, de ver as suas preces ouvidas e receber das imagens a resposta devida. Cruzeiro olha as imagens de Autografia e estas, na forma de Mário Cesariny, dizem-lhe “olha bem para os meus olhos, sem vida ainda te hão de ver”. A realização atinge neste momento a sua máxima poesia, como o faz também na construção que desemboca na última aparição pública de Cesariny ou na sequência de Paris com imagens de The Man on the Eiffel Tower (1949).
A capacidade de tornar o arquivo háptico é a qualidade mais evidente no trabalho de Cláudia Rita Oliveira, e mais belo é que essa capacidade seja posta ao serviço de um fechamento emocional de um homem sentidamente marcado por outro, já inacessível. A esse respeito o super cut da sequência, o barretinho ridículo, é altamente reveladora disso mesmo e Cruzeiro Seixas – As Cartas do Rei Artur é um filme que opera (também no sentido cirúrgico) uma excisão dos amores funestos através da relação com as imagens (de arquivo). E isso é de facto muito belo.