Por vezes, os filmes assemelham-se a sonhos. Parecem-nos, vivemo-los como sonhos. Filmes-sonhos, então: cometas que iluminam a escuridão (a da sala, mas também a nossa…), que nos deixam sobressaltados, que nos impedem de descansar, que nos roubam à quietude. Enfim, que frustram a respiração regular e tranquila do sono merecido. No caso de The Revolt of Mamie Stover [Mulher Rebelde, 1956, de Raoul Walsh, o Santo-Padroeiro desta casa], tal dimensão onírica aconteceu-me a um nível radicalmente literal: essa quinta-feira tinha sido uma noite de excessos, excessivos excessos, razão pela qual, no dia seguinte, ainda o sol não se tinha finado e já eu sentia o corpo a esgueirar-se, de mansinho, para o sofá, crente de que se seguiria uma (breve) sesta. Acordei, completamente atordoado, eram umas 5h00 da manhã, esfaimado como um lobo e, pior, sem sono absolutamente nenhum, despertíssimo, prontíssimo para iniciar o dia. Convicto da alvorada, subi, então, as persianas. Mas a escuridão permanecia, as ruas estavam desertas e os lampiões ainda acesos.
Contrariado, devorei uns cereais na esperança de que, com a barriga cheia, o regresso ao sono fosse pacífico. Puro engano. Para “matar o tempo” – já de si um “tempo-morto” –, pus-me, então, a ver um filme de Walsh há muito sublinhado nas minhas anotações, experiência que transformou esse período em todo um “tempo-vivo” [uso a perspicaz terminologia que o Luís Mendonça pediu de emprestado a Christian Metz para escrever sobre Montanha (2015)]. Quando o filme terminou, e já com a cabeça – depois da barriga – cheia, desliguei o computador e adormeci.
Na manhã seguinte, levantei-me e, durante o banho, comecei a projectar o dia, o que tinha de preparar, avanços a dar, entregas, etc., até que, já enquanto me secava, me lembrei, de súbito, do filme. Mais do que nunca, ele parecia-me um sonho, um objecto remoto, um estado intermédio de consciência, um meteorito vagueando algures entre o meu cérebro e o éter, entre a realidade e a fantasia, entre o dia e a noite. O mundo e o cosmos, o meu quarto e o céu negro lá fora. Com o silêncio da rua e as quadrículas de sol projectadas na parede branca do quarto a anunciarem o tardio das horas, aquela viagem de barco de Jane Russell e Richard Egan até à ilha no Havai onde se iludem e desiludem mutuamente parecia-me agora um segredo mal contado, uma longínqua memória de infância que nunca chegara a existir – dessas que irremediavelmente adulteramos quando, ingénuos, as tentamos reconstituir.
Por maioria de razão, é também esta recordação turva, sonâmbula, drogada, que tenho de Jane Russell e do seu rosto (um sonho, escusado sublinhar, em si mesmo). Aliás, o seu cabelo ruivo parece-me agora, a esta distância, esse cometa a que me referi no início, um flamejante lampejo irrompendo pelo escuro e pelo torpor do meu quarto, um novelo de cor e luz com vida própria que, no silêncio da noite, entreabriu a porta, entrou a voar e, durante alguns minutos, rodopiou no ar até se sumir, liquidamente, pelo caixilho da janela.
Apesar de Russell ter o rosto mais belo de toda aquela ilha e, provavelmente, de toda a América, ela deseja um outro: outra vida, outro estatuto, outra posição social.
The Revolt of Mamie Stover começa e termina da mesma forma (“Mamie… Nothing’s changed, Mamie”, diz o polícia na última cena): Russell, num porto, acompanhada pela polícia. Falei de filmes-sonhos como aqueles capazes de nos roubarem à respiração tranquila do sono e a primeiríssima cena é exactamente isso: breathtaking. Vemos, pelas costas, um carro – cuja sirene já anunciara ser da polícia – chegar ao porto, um homem sai do seu interior e abre a porta a uma mulher. E logo nesse instante, no modo insubmisso como a mulher retira a mala das mãos do homem, apercebemo-nos, mesmo que não soubéssemos o título do filme, da sua natureza, da sua revolt, a mesma que o homem fica, tão fascinado quanto nós, a contemplar enquanto ela se distancia. A mulher caminha em frente – continuamos a vê-la de costas – enquanto a música jazz vai subindo de tom até que, sintonia-clímax perfeito entre som e imagem, pára precisamente na linha da cancela que dá acesso ao navio e, depois de um curtíssimo momento imóvel a dar-nos ostensivamente as costas, o rosto se vira e a câmara (plano médio) lhe dá todo o protagonismo. Os trompetes ao rubro e eis que surge, a vermelho, o título do filme, com o navio lá atrás – sinalizador, por natureza, de instabilidade, de despedidas e distâncias [o manual, nesta matéria, é o Le quai des brumes (Cais das Brumas, 1938) de Marcel Carné] – a desempenhar uma função tão formal (a profundidade de campo que empresta ao plano) quanto material (o peso, a iminência, a inexorabilidade da partida).
É coisa de poucos segundos, os suficientes para Russell condensar no seu rosto – algo só ao alcance de muito poucos – toda uma paleta de emoções (em si contrastantes): rancor, poder, frustração, determinação, humilhação, confiança, fragilidade. Tudo isto, mas não só: também um intenso desejo de vingança. Em Close-Up, Kiarostami dizia ao farsante, durante o julgamento, que uma das duas câmaras o filmaria exclusivamente em grande plano para, dessa forma, captar as suas explicações para coisas que “as pessoas acham difíceis de entender ou aceitar”, e isso porque, insiste o cineasta, apesar de ele se dar como culpado, “há coisas mais complexas do que parecem e que nem todos entendem” – o grande plano como instrumento de perscrutação e diálogo, de compreensão e respeito pelo outro, enfim, de “contraditório”. Walsh também faz uso, nesta sequência, do plano (embora não seja um close-up, o que aqui é preponderante é a proeminência reservada ao rosto) com efeitos semelhantes: depois de sinalizar a acusação que recai sobre a “arguida” Russell (que chega num carro da polícia ao porto), Walsh promove o “contraditório” captando essa paleta complexa, contraditória, enfim humana de emoções, modo de nos fazer entrar no seu mundo, nas suas preocupações e angústias e, no mesmo passo, de nos fazer compreender os seus actos que veremos dali em diante (e os do passado que, embora não visíveis, são sugeridos). Compreensão, apenas – não se pede aceitação ou absolvição, pois o realizador não pretende ser juiz moral de nada.
Femme fatale, sim, mas – ou “e”, pois só esta conjunção faz justiça à natureza complexa e acumulativa do seu rosto-personalidade – uma femme profundamente magoada, sentida, pisada (a demonstração de confiança não é sempre uma “fuga para a frente” às nossas inseguranças…?). É esta mesma dupla condição que se acha no olhar de Russell: um olhar “que mata” (fatal, lá está), sim, mas vindo de alguém que foi/está morto – ou, pelo menos, gravemente ferido. A vingança funciona assim: quem foi morto, matará. Ou, dando a volta ao provérbio, quem com ferros morre, com ferros mata.
Russell é o gato com 7 vidas que vai vivendo e morrendo sucessivamente (To live and die in America…) pelas várias cidades por onde vai circulando com a “casa às costas”, sempre em busca do dime redentor. A cada nova cidade que chega, um novo fôlego, um novo ressuscitar, uma derradeira tentativa – mas haverá sempre mais uma… – de ascender no elevador social até às tais high hills, a altitude faustosa e ajardinada onde vive Egan e de onde se pode espreitar lá “para baixo” – aliás, daquela posição, só mesmo para baixo se pode olhar, a isso se está confortavelmente condenado. Olhar “de cima para baixo”, olhar “de baixo para cima” – “altos” (upper) e “baixos” (lower) geográfica e socialmente falando, então. Um plano “picado” permanente é o que Egan (e todos os do seu nível) capta da sua casa-resort, por oposição ao “contra-picado” através do qual durante toda a vida Russell se habitou a olhar o mundo – O plano é uma questão social. O modo como estamos no mundo e interagimos com o outro não está, afinal, profundamente condicionado (mesmo que involuntária e inconscientemente) precisamente pelo “tipo de plano” com que crescemos e nos habituamos a fazer do que nos rodeia? “Olhar para as coisas”, no sentido de as analisar e compreender, não é, frequentemente, uma forma de colocar a “câmara” e fazer “planos” da realidade?
Voltando a Russell, não se trata, contudo, de um desejo de vingança concreto, dirigido contra esta situação ou aquela pessoa. Não, Russell deseja vingar-se de tudo e de todos, deseja vingar-se do mundo, esse (este) em que cresceu permanentemente vista como alguém inferior, explorável, domável. A sua revolta é, pois, tanto para com as classes ricas, snobes e elitistas (reflexamente, essa revolta consubstancia todo um projecto de concretização do american dream, e o filme, se não é socialmente empenhado, é, como tantos outros de Walsh, socialmente interessado), como para com todos aqueles que, independentemente da sua condição social (a mulher que detém o bar onde Russell faz sucesso e que, ajudada pelo seu sinistro braço direito, controla a sua vida e a das restantes mulheres), sempre a trataram, ainda que por motivos diferentes, sem a lídima dignidade que ela merece. Daí o regresso-vingança triunfante, com pompa e circunstância, que Russell sonha para o dia em que voltar ao vilarejo onde nasceu e todos dobrarem o dorso à sua passagem.
Campo: o rosto de Russell. Contra-campo: São Francisco, a cidade que Russell se prepara para abandonar, a enésima cidade de que parte, vexada e vencida (e vendida, também, pois no romance original, depois adaptado, Mamie é uma prostituta, aspecto obviamente escamoteado para o filme se ajustar aos ditames do Código Hays). São Francisco nocturna com os seus néons coloridos: cidade-promessa, cidade-tentação. Uma supernova sensual e clandestina insinuando o dinheiro, a corrupção e a promiscuidade (moral, sexual) que Russell tão bem conhece. Campo e contra-campo, então, como sujeitos de desejos absolutamente correspondentes: Russell observa a cidade (que ficou “lá atrás”, que é passado, nesse olhar se contrariando, de alguma forma, o “To look ahead, only ahead, never back” que Egan escreve sobre ela a bordo do navio) e esta observa-a a ela; Russell deseja a cidade e a cidade deseja-a a ela. Olham-se mutuamente como dois amantes tragicamente pré-destinados, amor proibido e mal visto pelas convenções sociais. É a esta atracção intensa e silenciosa, a esta paixão incompreensível para os comuns dos mortais, que o polícia – símbolo de autoridade, da lei e dos costumes – põe fim ao deitar Russell, literalmente, “borda fora”, ao colocar-lhe “as malas à porta” (gesto reiterado no final: “You’re still not welcome in San Francisco“).
Por esta tamanha correlatividade entre Russell e São Francisco, nunca o termo “contra-campo” fez plasticamente tanto sentido, na medida em que, através da utilização desse expediente técnico indutor de um sentido adversarial, “oposicional”, se ilustra, dramaticamente, o peso daquela separação e o insucesso, mais um, de Russell na sua demanda. Num pormaior de génio, Walsh não desvia o olhar de Russell da linha de câmara; não, o espectador é, por momentos, São Francisco, o espectador é o “contra-campo”, é o objecto de desejo de uma mulher e actriz chamada Jane Russell [e, por isso, vou discordar do meu colega Ricardo Vieira Lisboa e dizer que sim, Russell (também) olha para nós]. Não existirão muitos outros filmes e realizadores que tenham conseguido, de modo tão simples quanto inteligente, concretizar as fantasias de tantos homens e fazê-los sentir-se “queridos” por uma mulher -símbolo sexual de todos os tempos.
She wishes she had another else’s face. Apesar de Russell ter o rosto mais belo de toda aquela ilha (do qual, porém, nem sequer pode tirar partido, tal é o controlo a que está sujeita por Bertha) e, provavelmente, de toda a América, ela deseja um outro: outra vida, outro estatuto, outra posição social. Porque ela sabe, como sabia a Hepburn de Breakfast at Tiffany’s (Boneca de Luxo, 1961), que, para os que não nasceram em bom berço, um rosto, at the end of the day, não vale de nada a não ser que seja utilizado como uma máscara eficaz, uma daquelas que funcionam como santo-e-senha para aceder a um (pré-)determinado mundo social de “mobilidade” reduzida (por isso é que nunca estaremos absolutamente certos da genuinidade do amor de Russell por Egan). E isso mesmo numa América em que, miticamente, todos podem “concretizar os seus sonhos”. É que, infelizmente, os sonhos são o que são: há os de Luther King e de Obama, mas também há os de Trump. Entre uns e outros, o Zé Povinho, as Mamie Stovers desta vida, tentam safar-se e fazer o seu. Don’t hate the player, hate the game.