Um fundamental educador dos nossos “modos de ver” a arte e a vida, o inglês John Berger morreu aos 90 anos. Deixa um legado impressionante, que passa por programas televisivos de divulgação artística e cultural como por uma vasta bibliografia constituída por ficção, poesia e ensaio. Olhou para a pintura, fez pintura também. Viajou muito entre as imagens e teve a generosidade de nos levar com ele. Três walshianos dizem adeus a este “Viajante no Tempo”.
Vi um autêntico “Viajante no Tempo” e o seu nome é John Berger. Em 1972, criou um programa de televisão chamado Ways of Seeing, e lançou-nos em direcção ao passado para melhor nos fazer ver o presente. Sem termos de sair de casa para ir ao museu, sem precisarmos de ter dinheiro suficiente para viajar ou para comprar os quadros que estávamos a ver, com a concentração de uma aula entrávamos, à velocidade dos zooms, dentro dos quadros mais emblemáticos da história da arte. O televisor, ordenado pela voz de John Berger, ligava-se para interromper a imobilidade geral da nossa sala-de-estar e, sucessivamente, destruía as molduras das obras-primas de grandes mestres. Na sua sábia paciência, Berger sublinhava com lances certeiros a obra decisiva de Benjamin, Obra de Arte na Era do Progresso Técnico, e explicava como, com o surgimento da câmara, podemos ver coisas que já não estão lá. Se esta câmara, fotográfica ou de filmar, nos permite viajar até ao passado, este Viajante deixou a sua marca no Futuro. De forma precursora, soube perceber como não é só a experiência da obra de arte que pode ser democratizada pela reprodubilidade técnica, mas também o discurso em torno da obra de arte – aqui, a arte chega aos ecrãs domésticos enquadrada por um princípio de educação artística para todos. Hoje, graças à sua visionária vitalidade, podemos saltar de YouTube em YouTube, em busca das multifacetadas opiniões que partilhou em diversos programas televisivos, emissões de rádio, entrevistas e webshows. Apesar de escritor, ensaísta e poeta, Berger foi muito além da letra: quantos académicos ao seu nível assim se colocaram fora dos livros e dos artigos? Quantos assim marcaram presença nos palcos do espaço público sem receio do ridículo? Quantos assim partilharam críticas e artes próprias simultaneamente?
Nunca duvidei que John Berger tivesse vindo do futuro. E, ao longo destes anos todos, também nunca o vi alhear-se de um característico sentido de dever sobre si cultivado: usando todos os meios ao seu dispôr, escolheu relacionar-se com o seu próprio tempo e foi um homem público no pleno sentido contemporâneo. A diferença entre um mero académico e um verdadeiro mestre é que um fala para se ouvir e o outro fala para ser ouvido – e, na inesquecível calma da sua voz, Berger cativou uma audiência crescente porque se dirigiu sempre ao seu igual – o humano ancestral, qualquer um de nós habituado a aprender por narrativas. Para falar de estética, de semiologia, de teoria da representação, de semiótica, de história ou de mitologia, contou-nos estórias para as compreendermos. Enquanto recordamos como Berger dá início o seu ensaio-visual On Time (1985), narrando a demanda do jovem pelo sítio onde nunca ninguém morre, ocorre-nos que a vitalidade do seu próprio percurso parece esboçar uma resposta possível ao desfecho desta lenda: a permanente juventude de pensamento é o lugar onde nunca ninguém morre. Enquanto o olhar deste Viajante nos souber a tão jovem, tão verdadeiro, tão original, percebemos que há forças que superam o Tempo – e, sucessivamente, nos confiaremos às várias gerações de ecrãs para voltar a viajar com John Berger.
Sabrina D. Marques
Houve uma altura na minha vida em que procurei ver e ler tudo o que conseguia arranjar que envolvesse John Berger. O ponto de partida foi o de muita gente como eu: o livro/série televisiva Ways of Seeing. Comecei por ler. A proposta geral pode-se resumir nesta ideia: “cada imagem corporiza um modo de ver.” Pois bem, podia dizer o mesmo sobre Berger, o melhor contador de histórias a transformar as imagens em narrativas de acessos ilimitados, num território aberto a todos (a todos os olhares que esse modus incandesce). Há um diálogo memorável entre Berger e Susan Sontag. Ele fala, com a sua voz calma, pacificadora, sobre histórias e sobre histórias sobre histórias. Diz o que já dissera no seu encantador programa About Time. Ela replica, com assertividade e frieza. A inteligência dela é penetrante, verdadeiramente superior. Berger ouve, ele é generoso, elegante, um “true gentleman”. Este momento de elevadíssima televisão – uma “televisão impossível”, diríamos nós, na pobreza da nossa contemporaneidade – revela o que mais me fascina em Berger: a sua insaciável curiosidade, a sua paciente absorção do mundo que o rodeia, sem a sobranceria e cinismo das “certezas absolutas”.
A certa altura, há algo que Sontag diz e que, mais tarde, vejo “replicado” numa entrevista do próprio Berger: saber escrever é saber ouvir. O escritor faz-se com o ouvido, o realizador com os olhos. Berger nunca filmou, mas escreveu, com delicadeza, sobre filmes e fotografia, nomeadamente num livro intitulado Understanding a Photograph. O que ele fez foi saber olhar como quem sabe ouvir, como ele soube ouvir as histórias sobre histórias, os mundos que os outros instituíram, pelo pincel, pela objectiva, pela caneta. Sobre a profundidade – generosa profundidade – do olhar, da voz, apetece-me reconduzir para esta singela homenagem uma máxima de La Rochefoucauld: “249. Não há menos eloquência no tom da voz, nos olhos e no ar da pessoa, que na escolha das palavras.” John Berger foi um homem da televisão, grande cicerone do mundo da arte e das histórias, alguém que soube tratar o espectador com um sentido de dignidade hoje proscrito – ideologicamente “indesejável” – no espectro televisivo. Mais até que pela escrita, foi pelo tom da voz e pelo brilho nos olhos de Berger que encontrei a tal lareira imemorial – referida em About Time – onde a arte de contar histórias foi inventada. Sentei-me e fui absorvido pela eloquência (a doce intensidade) da sua presença.
Luís Mendonça
Estive a centímetros de John Berger, quando veio a Lisboa em 2015, a convite do Lisbon & Estoril Film Festival. Estava uma multidão naquele hall de entrada do Teatro D. Maria II. Não falei com ele. Regozijei-me em escutar a sua voz forte e gentil (há outro modo de a definir?) ali tão perto, no diálogo com quem o rodeava. Diz Jodorowsky, no seu mais recente filme, Poesía sin fin (Poesia Sem Fim, 2016), que esta, a poesia, é como uma borboleta ardente. Bem, nesse dia a poesia não me abandonou: tinha muitas borboletas afogueadas na barriga, de contentamento… Estava ali, mesmo ali, o autor cuja citação deu o remate final na minha tese de mestrado sobre The River (O Rio Sagrado, 1951), de Jean Renoir.
Ele, que era um entendido nestas coisas de como a infância opera sobre o olhar de um artista, tem um texto magnífico, entre outros, no livro About Looking, intitulado Courbet and the Jura, ao qual recorri para provar que The River é uma recordação projetada de Renoir. Escreveu Berger: “The Thames developed Turner. The cliffs around Le Havre were formative in the case of Monet. Courbet grew up – and throughout his life painted and often returned to – the valley of the Loue on the western side of the Jura mountains”. Ora, do mesmo modo, Renoir, que cresceu nas margens do Sena, “pintou” a sua infância noutros corpos à beira do rio Ganges – um rio especial, entre as várias representações na sua obra. Era uma breve citação, e todo o apoio teórico, retilíneo, que precisava para concluir meses de trabalho estava ali. Longe de ser um excerto que ilustre a beleza da sua escrita, foi-me útil. A propósito, é também dele a verdade na origem deste pequeno memorando que agora componho, em jeito de saudação: “We are always looking at the relation between things and ourselves.”
John Berger era um mestre da arte do olhar. Um olhar que ampliava ideias, e ideias com histórias dentro. Ele próprio poder-se-ia caracterizar como uma paisagem de pensamento: escutá-lo e lê-lo é um absoluto exercício visual, é ter acesso à grande pintura da sua interioridade.
Inês Lourenço