O que é mais notável neste tão badalado Manchester by the Sea (2016)? O facto de, desde cedo, ficar claro que Kenneth Lonergan sabe a diferença – e essa diferença é muito, é, na realidade, tudo – entre fazer um filme sobre o luto e fazer um filme que é como um luto. A experiência lutuosa é a proposta que passa desde os primeiros minutos, quando nem sequer sabemos o que ou quem se perdeu. Sabemos que na vida da personagem interpretada, e agarrada pela alma, por Casey Affleck alguma coisa falta – qualquer coisa falha, para usar um verbo mais apropriado a um handyman que conserta sanitas, banheiras, caldeiras, canalizações…
O filme retoma o tom do drama adulto que já distinguira a obra de estreia You Can Count on Me (Podes Contar Comigo, 2000) para transformar em matéria propriamente fílmica o combate interior com a perda. Não uma perda qualquer. Quando a personagem diz que não consegue “combater” está a dizer algo que já estava marcado – esculpido, apetece dizer – no rosto. Mas também é verdade que o filme vai gerindo a possibilidade de uma redenção.
“There is a crack in everything. That’s how the light gets in.” A fragilidade mostrada por Casey Affleck, neste papel mais de silêncios – e gestos bruscos ou “avariados” – do que de palavras – e acções concertadas ou “consertadas” -, é como a canção de Leonard Cohen: a fenda por onde a luz pode, poderá, entrar. Mas Lonergan – e muito bem – é implacável. O luto é invencível – tinha de ser, já que está metido no sangue do filme desde os primeiros instantes. A montagem em stacatto apunhala-nos – sem sublinhados, sem avisos prévios – com pequenas cenas que vamos percebendo que se situam num passado povoado por fantasmas. É essa “vida-fantasma”, essa “luz-fantasma”, que passa pelas fendas do filme – ela penetra no presente anódino deste homem “à deriva” num oceano mental. As imagens “by the sea”, paisagem idílica da memória, são as de um naufrágio psicológico.
Esta distinção entre ser-se como e ser-se sobre o luto é notável – sinal de um certa maturidade que rareia na tradição melodramática norte-americana.
Portanto, sim, esta distinção entre ser-se como e ser-se sobre o luto é notável – sinal de um certa maturidade que rareia na tradição melodramática norte-americana. Mas o filme também existe “por dentro”. E, quanto a mim, o realizador concebe o seu filme à volta daquele que é um dos frentes-a-frentes mais emocionais do cinema americano recente. De um lado, Casey Affleck e, do outro lado, Michelle Williams. É pungente a forma como os dois não conseguem comunicar, falando uma linguagem própria que só o sofrimento entende.
Infelizmente, por vezes Lonergan trabalha por dentro da narrativa com as preocupações de um handyman que procura dar uma lógica, um padrão psicológico, ao drama. É aqui que o realizador cede às tentações por um certo esquematismo. As explosões de violência algo aleatórias em que se envolve o protagonista (necessidade de converter em fórmula psico-narratológica a angústia do protagonista), o modo como o drama sucumbe ao dramalhão (a história da origem do luto é grotescamente trágica), algumas personagens secundárias (a cena do casal “muito cristão” é demasiado anedótica para se poder levar a sério)… Enfim, vários elementos vão roubando subtileza e arrojo à proposta de Lonergan de, repito, ser mais como a coisa do luto do que o luto da coisa.
Mesmo assim, Manchester by the Sea não afunda. Lonergan é corajoso quando decide terminar sem terminar o filme com um simples fade out sobre as personagens, que tão eloquentemente ecoa o desabafo final de Affleck que atravessa todo o filme: “não consigo combater isto”. Não é uma derrota, é a simples constatação de que o sofrimento nem sempre perde. E de que há desenlaces nem felizes nem tristes. Para o cinema americano tal como para a vida. Agarremo-nos ao agora.