Jeanne Liotta, Janie Geiser, Jennifer Reeves, Deborah Stratman, Julie Murray, Rebeca Baron, Els Van Riel, Talena Sanders, Stephanie Wuertz, Christine Lucy Latimer, Martha Colburn, Karissa Hahn, Laida Lertxundi, Mary Helena Clark, Kelly Gallagher, Ana Vaz, Basma Alsharif, Jeannette Muñoz, Stephanie Barber, Jesse McLean, Nazli Dincel, Shambhavi Kaul, Kelly Sears, Malena Szlam, Ralitsa Doncheva, Katherine Bauer, Azadeh Navai, e ainda muito mais (norte-americanas e não só) são algumas das filmmakers e artistas moving images mais interessantes do panorama do experimental filmmaking desde alguns anos até hoje. Todas mulheres.
Um legado do feminino que se liga à tradição vanguardista norte-americana, que dos anos setenta remonta até aos anos quarenta: Peggy Ahwesh, Abigail Child, Su Friedrich, Barbara Hammer, Yvone Rainer, Carolee Schneemann, Joyce Wieland, Marie Menken, Maya Deren. Desde o tardio modernismo às práticas artísticas e políticas do feminismo, da declaração de independência dos artistas e dos filmamkers americanos das vanguardas históricas europeias até aos “sinais subversivos” de Martha Rosler, Sherrie Levine, Dara Birnbaum, Barbara Kruger, Louise Lawler, Jenny Holzer, que desmontaram e agrediram o dispositivo do poder que ligava (e ainda hoje liga), num entrelaçamento repugnante, economia política, arte, olhar masculino e representação da sexualidade feminina[1].
Há de facto um vaivém produtivo, um vaivém profícuo, uma troca generativa entre artistas e filmmakers. Por um lado as filmmakers citadas foram e ainda são artistas multimediais, por outro lado as artistas que nos anos setenta encarnaram as praxes artísticas mais provocatórias e incisivas, pela sua vez, usaram muito o vídeo e o filme para desarticular as representações estereotipadas e sexistas sobre a mulher, desnaturalizando-as, e re-articular uma denúncia da sociedade do espectáculo, através de processos de expropriação e re-apropriação da linguagem e das imagens. Penso, por um lado, nas performances (Meat Joy no Festival de la libre expression de Paris, em 1964 e Snows que teve lugar no Martinique Theater de Nova Iorque, em 1967) e nas pinturas de Schneemann ou nas coreografias de Rainer. Por outro, penso em Martha Rosler e nos seus vídeos, Semiotics of the Kitchen (1975) e Domination and the Everyday (1978), que logo pelo título ligam a violência da sujeição da mulher na vida quotidiana à nudez da violência política (personificada pelo ditador chileno Pinochet), a violência no seu grau mais “escasso”, puro, elementar, em que está escandalosamente ligada à excedência, à proliferação, ao luxo organizados pela narração das imagens da american way of life – em que a mulher deve ocupar o papel de fada do lar. Rosler, neste último vídeo, utiliza o collage como uma contradição, uma colisão que junta e faz chocar coisas que não deveriam estar pacificamente de acordo, como a escravatura e a democracia. Trata-se de um aspecto que foi desenvolvido também por Martha Colburn, que se estreou nos anos noventa e que é reencontrado também no filme Pen Up the Pigs (2014) de Kelly Gallagher, um handcrafted collage animation político e poético (penso no uso da cor) que, por sua vez, se inspira em Colburn. Mas poderíamos também citar os filmes de Cindy Sherman: Doll Clothes (1975) – um Super8 a preto e branco que a artista realizou enquanto frequentava as aulas de Paul Sharits em Buffalo – e Office Killer (1987), este mais narrativo mas talvez bem mais interessante, dado que põe em cena o novo regime sócio-económico que se afirma nos anos oitenta, a condição neoliberal do consumo programado e da produção flexível, que transforma o produtor num empresário-performer de si mesmo, isto é num capital humano que, não casualmente, é encarnado propriamente por uma mulher[2]. E, ainda, o vídeo bastante conhecido de Dara Birnbaum, Technology/Transformation: Wonder Woman (1978-79): corrosiva desmistificação do imaginário popular masculino.
As mulheres, portanto, foram e são protagonistas da vanguarda, em particular da americana, seja nas artes visuais e do espaço, seja no cinema. Muito mais do que no cinema hollywoodesco, onde as mulheres realizadoras eram verdadeiramente casos isolados (Dorothy Arzner, Ida Lupino) ou até camufladas (Alla Azimova, é, para todos os efeitos, a autora do filme Salomè, 1923, que por razões de circunstância foi atribuído ao marido).
A seminal Maya Deren, com a sua recusa do naturalismo e os seus filmes fundamentais, verdadeiros rituais dionisíacos. A inventora da prática diarística Marie Menken: pintora abstracta que influenciou Anger e Brakhage com o seu action-filming, consentido pela agilidade da Bolex, utilizada desde o princípio no Visual Variations on Noguchi (1945), cujo dinamismo gracioso entra em correspondência com as esculturas de Isamu Noguchi. O cometa Rubin e o seu unicum orgiástico: Christmas on Earth (1963). Naomi Levine, actriz, pintora, filmmaker e primeira superstar feminina de Warhol. Joyce Wieland, protagonista do filme estrutural, com os seus lindíssimos e misteriosos Sailboat (1967) e Handthinking (1967) e 1933 (1967), riscados pelos estragos sobre a emulsão, balançados entre a diferença e a repetição e sobre o intervalo entre a imagem do ecrã e a imagem da película. E, ainda também, Su Friedrich, cujos filmes combinam narração, documentário, found footage, home movies, estilos experimentais para afirmar uma nova identidade lésbica unindo privado e público. E, depois, Carolee Schneemann, artista visual, performer, cineasta que mistura sexualidade e aspectos formais e estruturais, colorindo, queimando, alterando e alternando as filmagens em película [Plumb Line (1968-71)]; ou, para citar não uma filmmaker mas um filme capital My Name is Oona (1969) de Gunvor Nelson. E, por fim, Barbara Hammer que em Multiple Orgasm (1976) representa o sexo como uma alegre e orgulhosa afirmação da identidade de género, em que a masturbação da vagina pela própria filmmaker é entrechada com sobreimpressões e grandes planos que representam o sexo feminino como se fosse quase uma misteriosa formação rochosa.
As imagens não são de facto transparentes e não são marcadas mas sobretudo produzidas, são como normas sociais, sinais. Em particular as imagens de mulheres, objectos da representação masculina. As práticas feministas recordaram-nos isto e em muitos casos desvendaram pela primeira vez e de qualquer modo com uma evidência inédita, irónica, sem negociações, de género.
Adams Sitney em 2002 publicou a terceira edição do seu Visionary Film em que aborda os desenvolvimentos da vanguarda dos anos setenta até 2000, debruçando-se particularmente sobre Warren Sonbert, Andrew Noren, James Benning e Peter Hutton, mas também sobre Yvone Rainer, Abigail Child e Su Friedrich. Sitney faz notar, de facto, como a partir do fim dos anos setenta, propriamente o feminismo «became the single most dynamic arena of energy both new films and critical discussions»[3].
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A modernidade, com as suas meta-narrações (les grands récits), deixou de reconhecer o local e a diferença, incluída a diferença de género. Mesmo as práticas artísticas feministas (e pós-modernas) nos anos setenta – que depois confluiram também na corrente da vanguarda americana – desmontaram a autoridade patriarcal e machista que sempre falou em nome dos outros mas a partir da voz do macho-patrão. Uma indecência que viola a sacralidade do mistério do outro. «O outro, cujo mistério não será nunca um segredo partilhado, o outro que permanecerá para mim sempre um mistério, é o outro da diferença sexual»[4].
São mesmo as mulheres, por uma sensibilidade, por uma capacidade sensorial, de género, que souberam reflectir sobre a relação sem relação que insiste mais do que subsiste entre o corpo e o outro, já que a mulher experimenta na sua pele este im-possível, a relação com alguma coisa que é própria mas, que ao mesmo tempo, expropria e viola a santidade do corpo, pertence sem pertencer, isto é o filho, o corpo do filho, carne da sua carne e, também, corpo estranho, alheio, que cliva e diverge a identidade da mulher. Deste modo, a mulher vive no seu próprio corpo a relação paradoxal entre identidade e diferença, corpo e alteridade.
Talvez seja também por esta razão que muitas filmmakers desenvolveram uma obsessão sensual pelo corpo pelicular, enraízada na analogia do corpo humano e daquele pelicular continuará, de Sanctus (1990) de Barbara Hammer até aos filmes muito recentes de Nazli Dincel que toma conta carnalmente da sua película, num corpo a corpo estético, sensual[5].
O crítico Craig Owens, nos anos Oitenta, partindo mais uma vez de uma reflexão sobre a diferença, tinha individuado no feminismo e nas suas práticas artísticas o núcleo do pós-moderno. O modernismo tinha declarado a autonomia do significante (por exemplo na versão reducionista e formalista de Clement Greenberg), enquanto o pós-moderno proclama e contesta a tirania dele. Este significante não se revelou outra coisa do que um falo, o significante é sempre fálico, sempre uma figura do Nome do Pai. O feminismo, por vocação, não podia que tornar manifesta tal verdade sempre escondida que por sua vez baseava-se no predomínio da vista em detrimento dos outros orgãos sensoriais. O menino distingue-se a si próprio da menina vendo que nela, bem como na mãe, falta o pénis. A diferença sexual institui-se graças ao olhar[6]. O olhar é masculino e o prazer que o cinema nos proporciona tem a ver com o olhar masculino que submete a mulher a seu objecto de prazer e que não basta apenas que seja submetida mas também subjectivada por aquele tipo de representação autoritária e masculina, como demonstraram as análises de Laura Mulvey nos anos setenta contidas no Visual Pleasure and Narrative Cinema[7]. As práticas feministas desmontam este tipo de representação.
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Hoje, artistas e filmmakers como Stephanie Wuertz (Calgon, 2014) e Nazli Dincel (Solitary Act #6, 2015) continuam, com outros meios, esta batalha: desconstroem a mulher como expressão da transmissão da dominância masculina e a voz do patrão (o macho) ouve-se mas sem efeito. Antes (e ainda hoje), Barbara Hammer, Su Friedrich, Abigail Child e outras, que, por sua vez, inspiram-se em Yvone Rainer, na celebração do desejo (por uma vez) não masculino mas feminino, como aquele posto em cena potentemente em Fuses (1967), de Schneemann, até à exibição da vagina que suprime o falo na performance de 1975 Interior Scroll sempre de Carolee Schneemann, em que a artista, nua sobre uma mesa, pinta o seu corpo com lama e lentamente tira fora da vagina um rolo escrito de qual lê o seguinte texto:
«I thought of the vagina in many ways – physically, conceptually: as a sculptural form, an architectural referent, the sources of sacred knowledge, ecstasy, birth passage, transformation. I saw the vagina as a translucent chamber of which the serpent was an outward model: enlivened by it’s passage from the visible to the invisible, a spiraled coil ringed with the shape of desire and generative mysteries, attributes of both female and male sexual power. This source of interior knowledge would be symbolized as the primary index unifying spirit and flesh in Goddess worship».
Não queremos dar a impressão de estarmos presos no âmbito se não de uma contraposição, quanto menos de uma distinção demasiado nítida entre masculino e feminino. Aquilo que se quer colocar em jogo e afirmar é a diferença, a sensualidade, e não a oposição, o conflito, o sentido – isto é, os nós que articulam o regime de dominância masculina.
A este ponto, de forma resumida e para concluir, é sempre oportuno recordar que, genealogicamente, a iniciadora do cinema de vanguarda foi uma mulher: Maya Deren. Genealogia, como diria Nietzsche e Deleuze, é o diferencial e o genético, a incessante produção da diferença, o elemento genético da diferença. Genealogicamente foi Maya Deren a dar o imprinting a toda a vanguarda americana, foi ela – para além da questão historiográfica dos precursores – a origem de um movimento cujo orgulho é a proliferação da diferença.
Toni D’Angela
Fundador da revista La Furia Umana e autor de vários livros sobre cinema.
Tradução por Sara Fonseca e Francesco Giarrusso.
[1] Cfr. Hal Foster, “Subversive Signs”, in Hal Foster, Recodings. Art, Spectacle, Cultural Politics, Bay Press, Seattle 1985.
[2] Cfr. Tom McDounough, “Human/Capital”, October, n. 153, 2015.
[3] Cfr. P. Adams Sitney, Visionary Film. The American Avant-Garde 1943-2000, Oxford University Press, Oxoford/ New York/Toronto/Melbourne 2002. Esta terceira edição foi ampliada com um capítulo final intitulado: “The End of the 20th Century”.).
[4] Luce Irigaray, Essere due, Bollati Boringhieri, Turim 1994, p. 126.
[5] Cfr. Toni D’Angela, “Body, Language, Life. A Conversation with Nazli Dincel”, La Furia Umana, n°28, 2016, http://www.lafuriaumana.it/index.php/61-lfu-28/545-toni-d-angela-body-language-life-a-conversation-with-nazli-dincel
[6] Cfr. Craig Owens, “Il dibattito sull’altro. Femminismo e postmodernismo”, in Hal Foster (org.), L’antiestetica. Saggi sulla cultura postmoderna, Postmedia, Milão 2014, p. 89.
[7] Cfr. Laura Mulvey, Cinema e piacere visivo, Bulzoni, Roma 2013.