Elaborar uma listagem de dez filmes fundamentais na História do Cinema Português é uma tarefa particularmente ingrata. Escrever sobre a História de diferentes cineastas portuguesas implica o contorno de uma dupla invisibilidade: a do Cinema Português e a do Cinema dirigido por mulheres, num universo que, por diversas razões, continua a ser essencialmente masculino.
Três dias sem Deus (1946) de Bárbara Virgínia
A primeira ficção de longa-metragem realizada por uma mulher, em Portugal, data de 1946, tendo estreado em 30 de Agosto no Cine Ginásio, em Lisboa. Três dias sem Deus, de Bárbara Virgínia (de seu verdadeiro nome Maria de Lurdes Dias Costa), é uma adaptação da obra original de Gentil Marques, Mundo perdido, que chegou a ser apresentada no I Festival de Cannes. Do elenco, fazem parte a própria Bárbara Virgínia, Linda Rosa, João Perry, Alfredo Ruas e Maria Clementina. O filme centra-se numa jovem professora primária, que vai leccionar para uma aldeia da serra. Poucos dias depois da sua chegada ao incerto e recôndito local, Lídia é informada pelo médico de que irá ausentar-se, juntamente com o pároco, para se deslocarem à cidade: serão “três dias sem Deus”, de acordo com a sabedoria popular. Nesse intervalo, a professora conhece Paulo Belforte, a quem os habitantes da aldeia acusam de ter um “pacto com o diabo”, por supostas tentativas de incêndio à igreja local e homicídio da esposa. Do filme, restam cerca de vinte cinco minutos de película, que se encontram no Arquivo Nacional da Imagem em Movimento (ANIM) da Cinemateca Portuguesa. Praticamente desconhecida enquanto património cultural e histórico português, a obra de Bárbara Virgínia não tem sido objecto de análise e reflexão. Numa última entrevista de que sou co-autora, conjuntamente com Wiliam Pianco, a cineasta revelou-nos que, após a estreia deste filme, ainda apresentou algumas propostas de guião ao antigo Secretariado Nacional de Informação (SNI), sempre recusadas. Poucos anos mais tarde, casou com um empresário e foi viver para o Brasil, onde permaneceria até à sua morte, em 2015.
Trás-os-Montes (1976) de António Reis e Margarida Cordeiro
A segunda longa-metragem de (etno)ficção dirigida por uma mulher, em Portugal, data de 1976: Trás-os-Montes resulta da co-realização de António Reis e de Margarida Cordeiro, tendo obtido um reconhecimento internacional comparável ao de diversas obras de Manoel de Oliveira. No retrato antropológico que empreendem, evocam uma província do Interior-Nordeste do País, onde a ausência dos que partiram é tão marcante como a presença dos que insistem no cumprimento de tradições seculares. A tradição de um cinema etnográfico, de que são exemplos anteriores Acto da Primavera (1962) de Manoel de Oliveira, Festa, trabalho e pão em Grijó de Parada (1973) de Manuel Costa e Silva, e Falamos de Rio de Onor (1974), foi exponenciada neste filme. Planos rigorosos e um profundo respeito pela linguagem cinematográfica – de natureza contemplativa e aqui essencialmente relacionada com a pintura – oferecem tempo a quem assiste. Recorde-se, no entanto, que estes olhares saíram de uma Lisboa que vivia o fervor da revolução para mostrar o Portugal profundo que a ditadura salazarista procurou esconder. Poesia atenta à política, bem como às condições de vida na ruralidade. Memória, terra e paisagem. Jean Rouch e toda a crítica francesa tecer-lhe-iam largos elogios, contrastantes com o silêncio e desconhecimento da obra do casal em Portugal. Os seus filmes continuam a ser vistos e discutidos em contexto académico, sem que mais nada se faça para a chegada à generalidade do público.
Máscaras (1976) de Noémia Delgado
A primeira longa-metragem de Noémia Delgado (1933 – 2016, que começou a trabalhar como anotadora, montadora e assistente de António da Cunha Telles, Manoel de Oliveira e Paulo Rocha), documenta as diferentes tradições do Ciclo ou das Festas de Inverno no Nordeste Transmontano. Logo na introdução, Alexandre O’Neill diz-nos que os rituais de origem pagã se encontram associadas ao culto dos mortos, remontando a tempos que precedem o cristianismo. Evocando o solstício, a transição para a idade adulta (a Festa dos rapazes) e os vários ciclos da vida, Máscaras é um documentário que filma os acontecimentos no momento em que decorrem, mas que também os recria. As cenas finais em que a morte e o diabo vagueiam pelos campos, entre pessoas e animais, são disso exemplo, questionando-se uma vez mais as dúbias fronteiras entre ficção e documentário. Por outro lado, se o filme foca naturalmente a masculinidade dos costumes, o olhar de Noémia Delgado não é inocente ao fixar-se nas mulheres de Varges, Grijó, Bemposta, Rio de Onor, Podence e Bragança, que trabalham na confecção das refeições (à mesa onde não se sentam), e nos campos que não deixam de ser cultivados enquanto as festas decorrem. De uma riqueza etnográfica imensa, o filme é também um poema visual.
Solo de violino (1992) de Monique Rutler
Sendo apresentado como ficção, Solo de Violino é baseado na história verídica de Adelaide Coelho da Cunha, filha do fundador do jornal Diário de Notícias e esposa de um dos seus directores. No período que se segue à implantação da República, seria internada e sujeita a tratamentos psiquiátricos indevidos por ter decidido viver um amor adúltero. Depois de intensas pesquisas nos jornais da época, bem como de uma leitura atenta do livro da historiadora Manuela Gonzaga, Doida não e não!, a cineasta franco-portuguesa concluiu uma obra/denúncia que debate inúmeras questões bioéticas. Revelando o início da paixão de Adelaide por Manuel, o motorista da família burguesa, 23 anos mais novo, o filme evidencia o processo de internamento forçado pelo marido, sem qualquer respeito pelos princípios que regem a elaboração cuidada de um diagnóstico. Nele participam Egas Moniz (o único português a ser galardoado com o prémio Nobel da Medicina, em 1949), Júlio de Matos (então director do Hospital Miguel Bombarda) e Sobral Cid (professor de Psiquiatria na Universidade de Coimbra, que chegou a exercer funções de Governador Civil do distrito de Coimbra e de Ministro da Instrução Pública, em dois dos governos da Primeira República Portuguesa). Pela própria escolha temática, seria expectável que a obra, com Fernanda Lapa e André Gago nos principais papéis, tivesse gerado maior consternação, despertando um paralelo interesse do público. Todavia, estreada comercialmente em apenas três salas do País, não conseguiu ultrapassar os 2 706 espectadores.
Rosa Negra (1992) de Margarida Gil
Com uma intensa carreira ligada à realização e produção televisivas, bem como à passagem pela Universidade Nova de Lisboa enquanto docente, Margarida Gil é provavelmente a mais canónica das cineastas referidas nesta breve listagem. Tendo sido casada com João César Monteiro, identifica-se com uma geração de realizadores da qual fazem parte Alberto Seixas Santos, Fernando Lopes, Paulo Rocha ou Rita Azevedo Gomes, entre outros, que buscaram incessantemente uma ligação entre o cinema nacional e o cinema de autor. A actual presidente da Associação Portuguesa de Realizadores nasceu na Covilhã, em 1950. Quatro décadas mais tarde, regressou às origens para filmar uma história de memórias e desencontros, dando a conhecer uma Serra da Estrela permanentemente fustigada por incêndios. Os diálogos, escritos com a colaboração de Maria Teresa Horta, oferecem o mimetismo de uma cidade fechada, com a qual a cineasta parece ter contas a ajustar. “Adeus, terra adormecida, adeus, que me vou embora”, canta Teresa Salgueiro, na composição propositada de João Gil. Pela narrativa perpassa a partilha de experiências da condição feminina, sintetizada na fala de uma personagem: “Eu… antes de mim, a minha mãe, filha de outra mulher.” Gerações que transmitem a melancolia, a falta de suporte, a vontade de algo que parece sempre mais difícil de atingir em virtude de uma condição. Como o comboio que vem de Lisboa e que, percorrendo paisagens idílicas, tarda tanto em chegar. Seriam também estas as últimas interpretações de Mário Viegas e de Zita Duarte.
Os mutantes (1998) de Teresa Villaverde
A terceira longa-metragem de Teresa Villaverde, depois de A idade maior (1991) e de Três irmãos (1994), viria atribuir-lhe uma consagração definitiva, nacional e internacionalmente. A ideia inicial da realizadora, assumida em diversas entrevistas, era filmar um documentário sobre adolescentes criados em lares de acolhimento. Na impossibilidade de captação de imagens e testemunhos, a opção pela ficção traduziu-se na criação de uma personagem – Andreia – que constantemente foge de centros de reinserção social, vagueando pelas ruas de Lisboa, à procura do rapaz que a engravidou. Pedro e Ricardo, em situação semelhante, fazem de tudo para sobreviver, incluindo pequenos furtos e poses para câmaras de vídeo de holandeses pervertidos. Os três jovens são “mutantes”: seres frágeis e exaustos, inadaptados a uma realidade que não lhes oferece alternativas à violência na qual foram gerados. Visualmente, o filme revela uma agressividade extrema e um sofrimento atroz, sublinhado pelo desempenho memorável dos actores principais, com destaque para a perturbante entrega de Ana Moreira, premiada nos Festivais de Taormina e Bastia.
Aparelho voador a baixa altitude (2002) de Solveig Nordlund
Num País onde a ficção produzida nas últimas décadas se restringe essencialmente a um dos pólos do binómio “cinema de autor versus cinema comercial”, pouco espaço tem sido legado a géneros mais específicos, como a animação, o musical ou a ficção científica. Neste contexto, Aparelho voador a baixa altitude é uma das raras incursões do cinema português pelo último género, tratando-se de uma co-produção portuguesa e sueca, estreada em 2002, que somaria 3 562 espectadores em sala. Na sua quarta longa-metragem, Solveig Nordlund adapta o conto homónimo de J. G. Ballard. Abdicando de grandes efeitos especiais e cenários estereotipadamente futuristas, a realizadora recria um universo palpável, com personagens familiares e próximas da realidade contemporânea. Para quem lê o conto ballardiano, torna-se fácil reconhecer as marcas do discurso feminista de Nordlund, essencialmente visíveis no destaque atribuído às personagens femininas, que contrariam o texto inicial. A narrativa fílmica centra-se num fenómeno de alterações genéticas que terão vindo a afectar o mundo nos últimos 30 anos, fazendo com que as mulheres passem a gerar seres mutantes. A proibição dos nascimentos imposta pelas autoridades, associada ao facto de Judite (interpretada por Margarida Marinho) decidir levar a sua gravidez até ao fim, transforma este Aparelho voador (…) num espaço de debate sobre a condição humana e o medo da diferença.
O fato completo ou à procura de Alberto (2002) de Inês de Medeiros
A obra de Inês de Medeiros revela um filme dentro do filme, difícil de situar-se entre a ficção e o documentário. As personagens principais são jovens que, frente a uma câmara, narram as suas biografias: nascidos em Portugal, não são portugueses; nunca tendo estado em África, reconhecem que o Continente Negro faz parte da sua identidade. Artisticamente, os recursos cinematográficos utilizados não ultrapassam o realismo e a verosimilhança. O filme é marcado pela câmara à mão, a desimportância da mise-en-scène, a luz natural, os grandes planos das personagens principais, a própria realizadora que se inscreve na narrativa e as cenas de rua com anónimos que circulam quotidianamente. Inês de Medeiros realiza, portanto, de forma dialéctica. Compõe séries de imagens com entrevistas aos candidatos, ensaios da actriz e planos gerais de transeuntes, organizadas de acordo com os princípios cinematográficos da montagem, deambulando entre o mundo dos afrodescentes e o do espectador ou espectadora comuns. Do outro lado, Isabel de Castro interpreta escrupulosamente a nostalgia e o romantismo da personagem Alice: uma mulher que, não tendo nascido em África, terá vivido ali os anos mais marcantes e felizes da sua vida. Um continente que faz parte das memórias vividas ou construídas? O questionamento sobre a selecção humana de recordações permanece assim, no final do visionamento desta proposta híbrida e comovente.
A costa dos murmúrios (2004) de Margarida Cardoso
A obra de Margarida Cardoso [realizadora dos documentários Natal 71 (1999) e Kuxa-kanema: o nascimento do cinema (2003)], por sua vez, regressa às memórias nunca consensuais da Guerra Colonial. Em termos cinematográficos, uma observação rápida e generalista bastaria para comprovar que a guerra foi essencialmente vista de um ponto de vista masculino: o da personagem principal e soldado que combate, abandona a família e se sacrifica em nome de valores patrióticos; ou o do próprio realizador, que documenta ou ficciona determinada acção. Contrariando tendências e antigos processos de institucionalização artística, A costa dos murmúrios é um filme de guerra. Mas é também um filme de mulheres, pela adaptação do romance homónimo de Lídia Jorge por Margarida Cardoso, com duas personagens femininas na centralidade da trama. Ao longo de toda a narrativa, estas encontram-se em permanente conflito com a autoridade – o regime que procura preservar a célula familiar, mediante o incentivo à ida das mulheres dos militares para África. A fragmentação e o questionamento da verdade absoluta, tão no cerne de uma crise pós-moderna de conceptualização, são retomados por Margarida Cardoso, que, ao fazer cinema, cria ilusões. Incertezas proferidas num murmúrio ou sussurro imanente da estória de cada um: Evita tornada Eva narra oralmente os factos que viveu e testemunhou, com o distanciamento crítico de uma romancista que (re)cria uma personagem ficcional, atribuindo-lhe os contornos que deseja. Margarida Cardoso revisita as palavras de Lídia Jorge e forma imagens em movimento, como um exorcismo estético de uma guerra que ninguém vence.
48 (2010) de Susana Sousa Dias
A História que não é revelada nos manuais de História. A memória recente de 48 anos de ditadura e o sentimento de não-condenação daqueles que a sustentaram. Um fascismo que mostrava um Portugal pobre, isolado da Europa, mas feliz. Um fascismo que escondeu a vida dos clandestinos, a tortura, os anos de prisão e a morte. Através das imagens captadas por Susana Sousa Dias é possível conhecer-se a verdadeira história do Estado Novo, o controlo de uma população ignorante e a sobrevivência dos que lutaram contra. Através destas fotografias de prisioneiros da PIDE e dos seus testemunhos actuais, somos confrontados com o sofrimento e a humilhação, a falta de sono, o assédio e a maior dificuldade de ser prisioneira mulher. No minimalismo de uma nova linguagem cinematográfica, a realizadora interpela quem assiste, tal como estes prisioneiros e prisioneiras interpelaram quem os prendeu. Um filme feito ao longo de vários anos, desde que a realizadora filmava Natureza Morta (2005), comprovando que uma entrevista só se consegue depois de vários contactos, inúmeras explicações e outras tantas partilhas. O que a documentarista alcança aqui é mais do que um testemunho. É uma vida contada com emoção, mas sem cedências, para que um “obrigada” a quem lutou possa ser finalmente pronunciado.
Ana Catarina Pereira*
*Ana Catarina Pereira é docente na Universidade da Beira Interior e autora do livro A Mulher-Cineasta: Da arte pela arte a uma estética da diferenciação, onde algumas das análises iniciadas neste artigo são aprofundadas. A obra encontra-se disponível para download gratuito aqui: http://labcom-ifp.ubi.pt/livro/256