Tendo morado durante anos nos subúrbios de Lisboa, passei muito tempo em centros comerciais e multiplexes. Metade da minha cinefilia e da memória do prazer que era ver uma sessão esgotada vem daqui; a outra metade divide-se, em partes desiguais, pela Cinemateca, por algumas das salas que já visitámos nestas crónicas e pelo cinema visto em casa. Guardando a Cinemateca para o fim, nas próximas crónicas andaremos pelas salas da NOS, o gigante da distribuição e exibição de cinema em Portugal.
A história desta empresa confunde-se com uma boa parte da história da distribuição e exibição em Portugal e está, quase toda, por fazer. Quem a escrever terá que passar tanto tempo a ler as estatísticas anuais do INE e do ICA como as páginas dos jornais financeiros. Fundada em 1953, a Lusomundo cresceu através da representação de majors americanas e da compra dos catálogos de várias distribuidoras independentes, ao mesmo tempo que abria cada vez mais salas por todo o país. No início dos anos 1990, a Lusomundo dedicou-se à comercialização de vários clássicos do cinema português ao mesmo tempo que comprou títulos da imprensa nacional e regional, e uma rádio. Esta estratégia de concentração estendeu-se, a meio da mesma década, às parcerias com a Warner e a Sonae para a exploração de vários multiplexes por todo o país e com a PT Multimédia para alimentar os primeiros canais de televisão por cabo. A PT Multimédia acabaria por comprar a Lusomundo em 2000, tiro de partida para as várias fusões empresariais que tiveram como pano de fundo a tentativa das empresas de telecomunicações de integrarem as empresas de “conteúdos” e as suas estruturas de distribuição e exibição. A PT Multimédia acabaria por se tornar autónoma da PT em 2007, mudando então de nome para Zon Multimédia; e novamente para NOS, em 2014, um ano após a sua fusão com a Optimus. Atualmente, a empresa divide-se entre a NOS Lusomundo Cinemas, responsável por quase 50% dos ecrãs de todo o país, e a NOS Lusomundo Audiovisuais, que também distribui a maior parte dos filmes estreados em Portugal.
Em 1985, quando o centro comercial das Amoreiras foi inaugurado, estes processos já estavam no horizonte, mas ainda não tinham começado a mudar o negócio do cinema em Portugal. Os cinemas das Amoreiras explorados pela Lusomundo foram um prelúdio para o que viria a seguir. Apesar de tudo, este não era o primeiro multiplex da cidade (os Alfas funcionavam desde o início dos anos 1980 e o Quarteto desde 1975), nem sequer foi o primeiro centro comercial a acolher um cinema (o Apolo 70 funcionava desde 1971 e o Fonte Nova também inaugurou as suas salas em 1985), mas ganharia a todos na escala e na longevidade. Quando inaugurou, era o maior centro comercial do país e as campanhas de publicidade descreviam-no como “uma cidade dentro da cidade”. Tem actualmente sete salas de cinema, três no primeiro piso e quatro salas VIP no piso inferior. Já teve mais três, onde se encontra agora a loja Sportzone. As salas VIP, assim chamadas desde 2004, foram as primeiras da Lusomundo. Actualmente já não cobram bilhetes mais caros e uma delas só passa cinema francês, o que se pode justificar tanto pela proximidade do liceu Charles Lepierre, como dos bairros de classe alta de Campo de Ourique, Estrela, Lapa e Amoreiras, de onde vem a clientela preferencial tanto do centro comercial como dos seus cinemas.
Visitámos as Amoreiras num final de tarde, poucas semanas antes do Natal. O centro está cheio de visitantes, muitos deles turistas, carregados de sacos de compras balançando ao som das canções de Natal debitadas pelo sistema de música ambiente. No átrio das salas VIP, lançadas as sessões das 19h, somos recebidos por Dimas Alves, 45 anos, e Graça Silva, 50. Graça faz parte da equipa de gerência e está nas Amoreiras desde 2013, mas já passou pelos Olivais, Colombo, Vasco da Gama, Alvaláxia e Montijo. Dimas, por seu lado, começou a trabalhar aqui como arrumador em 1995 e acabaria por tirar a carteira profissional de projeccionista. Hoje, tem várias funções. No modelo de negócio dos multiplexes, já o sabemos, o princípio da especialização cedeu lugar ao da polivalência: projecção, bar e bilheteira são tarefas que se acumulam durante um mesmo turno de trabalho.
Dimas confirma que ainda trabalhou com o velho projector de 35mm Ernemann VIIIB que vimos no topo das escadas que descem para o átrio das salas VIP. É um modelo dos anos 1950, feito pela alemã Zeiss-Ikon e que, pela sua antiguidade, terá certamente vindo de outra sala da Lusomundo para as Amoreiras. “Talvez a Albertina saiba mais sobre este projector”, diz-nos Graça. Uma senhora projeccionista? Isso mesmo, uma das três que ainda trabalham nas Amoreiras. Conhecemos Albertina Martins noutro turno, noutro dia. Já a ouvíamos rir enquanto descíamos as escadas. Sempre bem-disposta, nem a recordação dos “bons tempos” da película, com que adorava trabalhar, a desmoraliza. Com 54 anos, trabalhou sempre nas Amoreiras. Entrou em 1990 e foi logo trabalhar para a cabine. Ao longo dos anos fez os exames que lhe deram a carteira profissional e levaram ao topo da carreira de projeccionista. Entretanto, tornou-se chefe de cabine. Por cada turno, explica Albertina, havia um chefe e um subchefe, mais quatro projeccionistas. As primeiras enroladeiras eram manuais e os projectores Ernemann funcionavam com DGBs (“dérouleur de grandes bobines”), isto é, sistemas de bobinas montadas verticalmente que aumentavam a capacidade do projector. Mais tarde vieram os sistemas “sem fim” com pratos horizontais que permitiam não só montar uma sessão inteira (trailers, anúncios e filme), mas evitavam a necessidade de ter que rebobinar tudo entre sessões. Enquanto fala, as mãos de Albertina vão repetindo no vazio os gestos rebobinar um filme ou de carregar um projector, passando a película pelos carretos, fechando a janela e ajustando a objectiva. É a única maneira de falar de coisas que já não existem. Hoje, a projecção é assunto das equipas de gerência. Albertina trabalha nas salas e no bar. Sem ponta de amargura, constata lucidamente que, depois do digital, “a minha profissão acabou”.
A visita às restantes cabines individuais foi uma verdadeira gincana, corredores fora, escadas acima e abaixo, abrindo e fechando portas. Todas as salas dos cinemas NOS Amoreiras têm uma cabine de projecção individual, com a única excepção das salas VIP 3 e 4. Para lá chegar temos que atravessar um corredor com forma e iluminação de nave espacial e que, confirma Graça, realmente já foi usado como cenário de ficção científica. Na cabine das salas VIP 3 e 4 havia uma torre com 5 pratos que servia os dois projectores. “Chamava-lhe o ‘estendal da roupa’”, conta Albertina, por causa daquela confusão organizada de carretos e película atravessando a cabine, ligando a torre aos dois projectores. Com uma lotação entre 50-60 lugares, as salas VIP estão equipadas com projectores digitais Barco DP2K-12C, adequados a ecrãs mais pequenos, tal como os DP1200, que servem as salas do primeiro andar. Todos os modelos são da segunda geração de projectores de cinema digital, mais compactos, lançados entre 2008-10. As cabines são bastante pequenas e custa imaginar como caberiam aqui projectores de película, sistemas de pratos, enroladeiras eléctricas, armários de bobinas e a restante parafernália técnica do 35mm.
Continuamos a visita nas salas 1 a 4, no primeiro andar. Mal saímos das escadas rolantes vemos no chão as bandas coloridas que indicam o caminho para a nova atracção do centro comercial, o “Amoreiras 360º Panoramic View”, isto é, o novo miradouro no topo da Torre 1. Em frente, vemos a entrada dos cinemas, muito estreita, como se fosse apenas mais uma loja: no lugar da montra está o balcão das bilheteiras/bar. Por trás das bilheteiras fica o átrio que dá acesso a todas as salas e ao escritório da equipa de gerentes. Dimas passou entretanto o testemunho a Graça, que é quem nos mostra as restantes quatro cabines. Lá estão as vigias Zeiss-Ikon como lembrete do tempo da projecção em película e do batalhão de projectores Ernemann que equiparam estas cabines. Todas as cabines são relativamente pequenas e têm plantas irregulares que regatearam todo o espaço que puderam à sua volta. Na cabine da sala 1 espera-nos uma pequena surpresa: a parede do fundo é nada menos que uma janela para a rua Carlos Alberto da Mota Pinto. São uns estores, permanentemente fechados, que garantem a escuridão na cabine. E foi aqui, justamente, que se estreou o cinema digital nas Amoreiras. Foi em Setembro de 2008 com o filme Mamma Mia! (Phyllida Lloyd), recorda Graça com a ajuda dos seus colegas Maria Gonçalves e Hugo Sousa.
A visita termina na sala da equipa de gerência onde se encontram os equipamentos informáticos que monitorizam (e alimentam de filmes) os projectores de todas as salas. A projecção digital adapta-se bem ao “modelo de negócio” das grandes cadeias de exibição: multiplexes em centros comerciais, equipas polivalentes, importância das receitas dos bares. Em Portugal, conta Graça, este modelo foi introduzido no tempo da parceria da Lusomundo com a Warner, que começou por explorar apenas os bares de alguns cinemas (como aconteceu aqui nas Amoreiras). Em parceria com a Sonae, a Lusomundo estenderia depois este modelo a multiplexes em centros comerciais por todo o país, começando pelo Olivais Shopping, cujos cinemas funcionaram entre 1995 e 2007, e onde Graça também trabalhou. Logo depois, abririam o Colombo, que continua a ser um dos maiores da Península Ibérica, e o Vasco Gama, construído sobre uma das portas de entrada da Expo 98. Mas isso já é assunto para as próximas crónicas.
Fotografias de Mariana Castro
Agradecimentos: Luís Mota, Ana Domingues, Graça Silva, Hugo Sousa, Maria Gonçalves, Dimas Alves, Albertina Martins