A parte inicial do novo filme de Martin Scorsese, Silence (Silêncio, 2016), acompanha dois jovens jesuítas portugueses – Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield) e Francisco Garupe (Adam Driver) – que rumam ao Japão para procurar aquele que foi em tempos o mestre espiritual de ambos – Cristovão Ferreira (Liam Neeson), padre da Ordem de Jesus, que alegadamente renunciou à sua fé em Cristo.
Que a conversa em torno de Silence se centre unicamente em questões de fé, sendo expectável, não deixa de revelar a falta de entusiasmo quanto ao que, nesta longa-metragem, extravasa o seu núcleo temático. Essa falta de entusiasmo é justificada – este não é um Scorsese (ou um filme) particularmente bom, mas é, de modo claro, um Scorsese. Essa marca autoral é importante, porque é ela que incute no filme um certo lado subversivo, não em termos estéticos, está bom de ver, mas no que diz respeito à Igreja Católica, que tão abertamente tem puxado o filme para junto de si. Como acontece com outros heróis do realizador norte-americano [pensemos, a título de exemplo, nos protagonistas de Taxi Driver (1976), The King of Comedy (1982) ou dos mais recente The Wolf of Wall Street (2013)] , o percurso do padre Rodrigues é um de progressivo isolamento. O desaparecimento do seu companheiro, o padre Garupe, marca o momento em que Silence deixa de ser um filme de aventuras pontuado por momentos de singular humor (como uns curtos banhos de sol do par jesuíta) e se foca no percurso solitário de Rodrigues, passando a ser uma espécie de travessia do deserto.
A aprendizagem do jovem padre, ponto de maior interesse do filme (e que dá, apesar de tudo, alguma consistência ao ainda incipiente Garfield), condu-lo a um ponto diametralmente oposto àquele de onde partiu. Deixara o Japão como jesuíta dedicado à missão de recuperar a ovelha perdida, para assim fazer justiça à própria Igreja, e o que encontra no final da sua viagem é o homem que lhe servia de referência dentro da Igreja a abandoná-la, sem que tenha, em rigor, abandonado Deus.
A longamente adiada apostasia de Rodrigues não é apresentada como uma derrota, mas antes como uma forma de transformação. O homem que Scorsese mostra no final, sendo, perante a Igreja, um apóstata, tem, e sempre teve, o coração em Deus
Ora, a possibilidade de uma vida em que a relação com Deus é individual surge confirmada no final do filme. A longamente adiada apostasia de Rodrigues não é apresentada como uma derrota, mas antes como uma forma de transformação. Isto não quer dizer que essa seja uma transformação pacífica ou linear, mas é inquestionável que o homem que Scorsese mostra no final, sendo, perante a Igreja, um apóstata, tem, e sempre teve, o coração em Deus, exactamente como se ouve na Eucaristia («O Senhor esteja convosco. Ele está no meio de nós. Corações ao alto. O nosso coração está em Deus»).
Uma variação desta concepção de um deus que está não apenas no meio dos homens, mas na natureza, é a base, de acordo com o que o padre Ferreira lembra a Rodrigues, do modo como o povo que a tanto custo os padres jesuítas tentaram converter no Japão entende a transcendência. A maior traição de Ferreira à Igreja Católica é precisamente a sua abertura a um entendimento diferente do que é a divindade. Que tanto Ferreira quanto Rodrigues acabem por deixar de ser agentes evangelizadores, que tentam impôr algo, e passem a ser indivíduos que se misturam com o meio, desistindo da sua missão inicial, é acima de tudo, profundamente anti-eclesiástico. Talvez a melhor forma de sublinhar que Silence é o filme de um crente, mas de um crente que dá precedência a deus, é precisamente recuperar a arejada cena ao sol que anteriormente referi. Salvaguardando as devidas diferenças, esse deslize de Rodrigues e Garupe veio emprestado de uns outros banhos de sol no meio das montanhas – italianas, da outra vez (e bem sabemos do amor de Scorsese pela Itália). O seu modelo é Anna Magnani, numa cena do segundo episódio de um filme de Roberto Rossellini, L’amore (1948). Esse episódio – Il Miracolo – foi causa aliás de grande polémica. A sua protagonista é uma pastora (Magnani) que julga engravidar por acção do espírito santo (mediado por um muito pouco santo José, interpretado por Federico Fellini) e que, condenada pela Igreja, trilha sozinha um duro caminho de ascensão à graça.
Que Scorsese se coloque do lado daqueles dois homens, celebrando uma relação não mediada do indivíduo com deus (mesmo que este seja ainda o Deus cristão), pode não ser explicitamente uma posição contra a Igreja, mas não deixa de ser, como sugeria, uma forma de subversão – o que a Igreja certamente compreende, mesmo que faça de conta que não.