A burden to keep, though their inner communion,
Accept like a curse an unlucky deal.
Ian Curtis, The eternal, Joy Division: Bernard Summer
Dans la poésie du xiXe et du xxe siècle, la nuit peut être le lieu de l’horreur, des metamorphoses effrayantes, du surgissement des monstres ou des vampires, mais aussi le moment béni, celui des éclosions mystiques, comme en témoigne toute la
poésie de Paul Claudel. La lumière, de son côté, si elle est presque toujours associée à la vie, à l’illumination, à la délivrance, peut devenir aussi le moment meurtrier
qui dénonce et expose à la mort.
Henri Agel, Métaphysique du cinéma
Discípulo de Elsa Morante no amor a Mozart, Pasolini fala-nos algo tocante sobre o austríaco: “Elsa me ensinou a amar a leveza, por exemplo a leveza mortuária de Mozart. Aprendi a amar Mozart e o amo, embora ele não esteja nas minhas cordas afetivas. (…) porque este mal profundo que se expia em leveza, que portanto vence a dor pela leveza, seria talvez mais santo que a santidade canônica”. Neste travelling vertical para a cruz e o ar diáfano com que se encerra The addiction, reverbera a palavra pasoliniana, que parece ter encontrado no Concerto para clarineta a essência do classicismo: sublimação. Ao final de seu itinerário infernal, Kathy descobre a visão pacífica e a nota cálida que foi toda a aspiração da bella figura clássica; transfigurar os percalços brutos, as anfractuosidades, as arestas de nossa condição encarnada em nome de uma Forma sublime, que mantivesse a lição ética do horror percorrido sem sucumbir novamente a suas garras telúricas: profundidade exorcista da superfície clássica, de que o escudo espelhado dado por Minerva a Teseu para combater a Medusa é a melhor imagem.
Como Ferrara, este poeta da Energeia underground, artista moderno – e portanto narrador de um mundo engendrado por forças e por fantasmas – , pôde ser capaz de vislumbrar a consangüinidade encoberta, recalcada entre a transparência clássica e o demoníaco? Não se trata de opor Goethe e Schelling a Kleist e Hoffman, mas de ver que o classicismo só chega aos primeiros através de uma necessária depuração dos últimos. The Addiction (Os Viciosos, 1995) é um graffiti expressionista que secretamente aspira à luminosidade clássica como seu lugar primeiro e último. Katty aprende a ver o que é sob a luz da redenção, assim como o classicismo aprendeu a representar o cosmo, não como um container de detritos pulsionais ou dejetos divinos, e sim como o tabernáculo da kharis. Esta aprendizagem da visão de que o final de Luzes da cidade nos deu o sintagma mais elegíaco ( “Agora, eu posso ver”) designa para a arte cristã da encarnação o seu Bildungsroman: de Pickpocket (O Carteirista, 1959) a We Own the Night (Nós Controlamos a Noite, 2007), de Yôkihi (Imperatriz Yang Kuei Fei, 1955) a Ordet (A Palavra, 1955) e Céline (1992) de Brisseau, todos aprendemos a ver, e isto equivale a reconhecer o mundo segundo um novo paradigma, cognitivo ou existencial, mas sempre através do pedagógico fio-condutor de uma experiência, que é o próprio filme. Em The Addiction, o romance de formação do classicismo se espelha e se refrata na trajetória do de Katthy, pois assim como os clássicos nos ensinaram a ver a personagem verá como é vista: esta é a sua experiência da Revelação, que o “Self-revelation is revelation of self” final certifica.
The Addiction é um filme percorrido por transições da negra água-forte para a luz clarividente: do negro para o branco, como da profundidade de campo onde o vampiro se engendra para o front do campo, onde devora a vítima; são fondus materiais, meios de cultura para a Passagem do Mal. A grande Revelação do final é assim prenunciada por estas micro, tópicas revelações na matéria do filme, que vai assim abrindo-se em sua própria carne à luz. Estes travellings sinuosos que atravessam paredes, superfícies opacas de estantes e corpos combalidos são a figuração do processo iniciático de Revelação de que o filme é a prova material e o testemunho metafísico; o cinema primitivo, arte debitaria do révelateur fotográfico, de Méliès a Secondo de Chomon conheceu estes milagres de aparições ex-nihilo, onde o que jazia no retinto negrume agora advêm à luz. Mas a coalescência entre a sombra e a luz que estrutura figurativamente o filme não seria um índice da própria trajetória mística de Kathhy- que deve, segundo a regra de paradoxos crísticos como o “escândalo da cruz” de Lutero, necessariamente curtir-se e nutrir-se de treva para ter o direito de ascender à luz? Quando Casanova a seqüestra para a toca, o close de Kathy, premida contra a parede, é uma superfície onde a teia da luz e da sombra compartilham a mesma presa, um ícone irisado de pontos que a disputam entre si, como a danação e a Redenção. Já nesta primeira aparição iconográfica do corpo decaído no qual a intelectual vai progressivamente se transformar, a doença metafísica se instala, e o seu sintoma fenomênico é esta carne carcomida pelo chiaroscuro, esta superfície sulcada pelos paroxismos do invisível. Se o vampiro é um psicopata ontológico que vive de desapropriar o Outro e instalar-se em seu lugar- daí a metáfora da droga, que nos retira de nós mesmos -, então podemos pensar que a personagem é antes de tudo vampirizada pelo combate agonístico entre a luz e a treva: Ferrara traz para este kammerspiel tardio um confronto tectônico e uma injunção arquetípica que Homero e Plínio cantavam nas arenas em pleno sol.
O expressionismo reivindicado naquele que é talvez o filme de Ferrara mais devedor de uma certa história da fascinação clássica não está aí como paráfrase tardia ou amaneiramento arbitrário. Se é mobilizado novamente no esplendor de suas fulgurações como de seus opróbrios, é pela razão alegada por Worringer: “Incapaz de se sentir em harmonia com a Natureza, os homens do Norte têm necessidade deste pathos estranho que se relaciona à vivificação do inorgânico; é uma expressão intensificada sobre uma base inorgânica”. O gênio plástico que se exercita aqui é um escrínio magnífico, mas urdido com as contorsões, as caretas hemiplégicas, as mãos hieráticas do cadáver; e haveria no expressionismo a beleza medusina que é seu lote sem esta sinistra colaboradora de Cena? Quando Kathhy tenta o suicídio, Penia, anjo exterminador que a vai iniciar no significado propriamente metafísico de seu percurso, diz-lhe que não se pode matar aquilo que já não é; Katthy já está morta desde o encontro com Casanova, mas ainda não acedeu à luz do conhecimento de si (self-revelation) que dá à morte sentido e à via-crucis mística um lugar na Glória, ainda não se “auto-revelou”: morta em si, mas não para-si, pois não são dialetas os clássicos como os expressionistas? Se o filme é esta Gólgota expressionista, habitada por mortos presentes e assombrada por todos estes mortos que a História madrasta nos legou, podemos pensar que o seu moto sub-reptício é chegar ao Paraíso clássico, a saber: dissipar a incandescência do demoníaco em nome de uma visão límpida, de uma transparente vidência, que se saiba visão; o percurso hegeliano da consciência não nos deu outro leitmotif, não? Chegar lá é chegar diante de si mesmo, é saber-se um si-mesmo; apenas ao reconhecer-se criatura, o indivíduo pode aspirar a Deus, apenas ao saber-se Mesmo pode desaguar neste Totalmente Outro que foi, é e será. Quando define o que é o demoníaco, Goethe é lacunar e fulminante: “é tudo aquilo que não compreendemos”. O classicismo, arte que venceu o demoníaco, busca justamente a tudo espiritualizar, ou seja: tornar significativo; e quem lá chegará sem um plus de consciência?
O manto da Verônica é a efígie desta aspiração ao auto-conhecimento que está na base do itinerário místico, devedor de um Logos que não apenas experiencia, mas sobretudo conhece as aparências: a Verônica retém na chapa fotográfica de linho não o Cristo em-si do Calvário, mas já o Cristo para-si joanino, destinado à Eternidade da Glória. Estes closes burilados pela sombra onde Kathhy saboreia a presa, se pertencem ao sistema predatório expressionista de que os vampiros são a melhor metáfora (um Vivo seviciado por um Morto), são também um signo anunciatório da redenção clássica que a espera ao final, onde o close vai converter-se na vista geral da Eternidade: o final, filmado num décor superexposto e segundo um découpage “da parte para o todo”, começa por nos mostrar num close sobre a lápide a Palavra na qual a mulher se transformou (“Eu sou a Ressurreição, João”) e termina no ar imantado de luz: o auto-conhecimento a que tudo tendia, que resolve em um mesmo telos a ascese mística e a ascese clássica, não aspira a olhar-se no espelho fenomenicamente (o close), mas a eternizar-se em Palavra, em abandonar o fenômeno opaco e escuro em nome de um Significante glorioso onde o invisível apareça; e não é isto que se expressa justamente pela afamada transparência clássica: tornar visível a essência? E não é a este caminho que alude um Ferrara cicerone com seus travellings untuosos, conduzindo-nos sempre da imanência danada do expressionismo à rarefação redentora do classicismo, da sombra para a luz? Sempiterna dialética!
Nicole Brenez, em seu estudo brilhante sobre Abel Ferrara, fala-nos de The Addiction: “Em contraste com Driller Killer (1979) e Body Snatchers (Violadores: A Invasão Continua, 1993), The Addiction apresenta a imagem como exterior, objetiva, pública e documentária. O filme questiona o status da imagem em uma economia do horror. A imagem registra o mal, projetando-o em esferas públicas (…), e também o propaga. Kathy, absorvida por estas imagens, por seu turno reabsorve-as e as retransmite para os outros através de seus atos vampirescos”.
The Addiction é, apesar da síntese tardia (isto é: dialética) entre o “rough cut” do cinema verdade e o kammerspiel expressionista que Ferrara empreende, um filme que se resolve segundo a economia teratológica de uma épica arquetípica; aqui, se fala de embates entre potestades que orquestram os destinos da sombra e da luz, dos mares como dos ares: Eros e Thanatos, classicismo contra expressionismo, Pneuma contra Soma. O mal que acomete o Destino da personagem é de fatura muito maior que o drama de uma subjetividade destroçada pela alteridade predatória da droga/vampiro; tem um status cósmico ou demoníaco, e necessita de um Soma à altura: é por isto que Ferrara escolhe a História como este monstruoso corpo doente que, à semelhança da temporalidade do mito (Saturno), devora seus filhos, condenando a posteridade de sua descendência à desolação das sinistras plantações de Dachau, Treblinka. Como qualquer grande cineasta, Ferrara é um materialista, e mesmo quando aborda um tema de essência metafísica como aqui: estas fotos e estes filmes dos horrores de que o século XX foi pródigo tem que atestar, como prova pericial inegável, a tese agostiniana de que a Cidade dos Homens é um Purgatório do bom, do belo como do justo; esta publicidade do Mal pelas mídias de propagação da informação confirma sua universalidade, sua ubiqüidade paranóica: o ser decaído é o princípio do próprio ser.
É a representação que deve se encarregar de nos advertir do perigo; mas se a mimesis, que está na origem de toda representação -e sobretudo do cinema, arte do imitatio por excelência – pode alertar, e talvez curar, ela também infecta; como pensa Brenez, Kathy foi contaminada pelas imagens, e retoma-se o circuito: esta deve contaminar aos outros igualmente. O esquema figurativo através do qual Ferrara descreve a cooptação da presença pelo Mal coordena uma insondável profundidade (de campo) de onde o vampiro vem e uma superfície clara, onde estaca um personagem que será devastado por ele: como este terrível istmo carnívoro que é a História, envelopado por sua vez pelo arquipélago abominável do mito, o Mal é este horizonte – ele se confunde propriamente com uma linha de horizonte, que domina o campo ab ovo – que engloba os seres como sutura o espaço, ligando o profundo do campo à superfície do plano: é uma possessão do espaço pelo Totalmente Outro o que vemos aqui. Se a História aparece na diegese do filme como o Saturno da imanência a quem devemos temer (fotos e filmes projetados), é o mito que se manifesta “na carne do filme” para nos advertir de seu Mysterium tremendum; deste inferno, só se sai Outro (morto, no caso). Quando da última visita a Kathy no hospital, Casanova se afasta pela direita do campo e se perde no onimoso de sua distância, enquanto o padre emerge à frente vindo pela esquerda: exorcismo da profundidade expressionista pela superfície clássica, do demoníaco pelo angelismo.
A felix culpa agostiniana é uma noção basilar para a doutrina da Encarnação; segundo Agostinho, a Queda de Adão acabou por ser um feliz evento, já que permitiu a Cristo, segundo Adão, redimir a decaída humanidade; este paradoxo, entre outros, atesta o caráter radicalmente dialético de uma religião (mas também uma cosmologia, uma ontologia e uma hermenêutica) que precisa, apesar da carne e com a carne, atingir o espírito. As heresias, se creditarmos devidamente a ideia de que as margens têm uma visão mais privilegiada do centro, revelaram a essência do cristianismo até melhor que as doutrinas oficiais, pois viram que no cerne deste credo da pistis e da kharis sempre habitou uma desabrida sensualidade, panteísta élan de reconciliação com a Natureza: uma obsessão empedernida com a carne. Kathy, para ascender ao terceiro dia “classicista” do final, precisa sorver toda a taça de fel e o cálice de veneno, precisa esgotar todos os filões da finitude para, sem outro recurso, usufruir das graças da infinitude.
A orgia da tese, de onde sairá este Cristo em negativo enlameado de hemoglobina para a via-crucis da Cidade, é uma brilhante transposição para o exploitation metafísico de Ferrara de todas as débâcles, festivais de sangue e vísceras que o expressionismo, arte votada ao demoníaco, representou, e cujo paradigma está dado na derrota de Krumhilde na segunda parte do filme de Lang: possui o caráter de um apocalipse, pois manifesta a vitória objetiva do Totalmente Outro, até então restrito à figura de Kathy e seus encontros isolados e agora finalmente no mundo. Para fazer justiça a este festim infernal, Ferrara abdica do classicismo aveludado dos travellings circulantes – e o por que desta diferença considerável, deste corte lapidar no estilo do filme? Kathy precisava atrair as presas para a sua toca, e a bella maniera clássica é exatamente um travesti que seduz os incautos para a teia, como os espectadores para a tela: não poderíamos pensar também que o classicismo foi sempre esta cortina de fumaça para todos os horrores do existente, que ele diligente e elegantemente suprassume sob a forma sublime? Nesta orgia, Ferrara investe num découpage hard cerrado, trabalho de câmera esfuziante, raccords espasmódicos: é a sua cena, podemos dizer, pois aposta menos na metáfora substancialista católica (Nicholas Saint John) que nos circuitos energéticos “de gueto” deste outsider genial.
Espinoza fala em sua Ética do que chama de mauvais infini: é o infinito traduzido por uma imagem, e não por um conceito; o meio, digamos, ainda não chegou lá. A trajetória expressionista de Kathy no filme de Abel Ferrara é este corpo devastado pela imanência que , como a imagem do mauvais infini espinozista, ainda não chegou lá, e é um instrumento ainda inadequado para revelar a Verdade a que aspira este filme tão prenhe de trevas e tão sequioso de luz: a sua decadência física é o índice de que o corpo, container finito, é frágil demais para suportar as grandezas do Espírito; daí a deformação figurativa. Mas poderia viver a robustez dialética da reconciliação clássica sem estes detritos, estes corpos calcinados e estes picos de heroína que fomos acumulando pelo caminho? Provavelmente não, pois aqueles que não passaram pelo inferno são indignos da Promessa como dos dons do Eterno.