Fazer um dossier no feminino no À Pala de Walsh significa olhar para os vários lugares da mulher na história do cinema e, procurando interpretar os dados de que dispomos até hoje, lançar as primeiras fundações para uma história da representação do feminino no cinema enquanto indústria e enquanto veículo de comunicação. Aqui, acompanhamos as fases do Movimento Feminista e analisamos as formas em que, ao longo dos seus mais de cem anos de História, o cinema progressivamente espelhou as modelações na percepção social do feminino. Tem a qualidade sintética de uma abordagem inaugural, com muitas dúvidas em mente e com os pés primeiramente postos no cinema, mas com vistas para assuntos maiores.


PARTE 0 // PENSAR O FEMINISMO HOJE
Porque é que há quem ache que hoje estamos numa era pós-feminista? Porque é que certas mulheres não só não são feministas como querem vigorosamente dissociar-se da expressão? O que é que se entende hoje por feminismo? Porque é que o fosso social entre homens e mulheres é tão maior do que as diferenças biológicas? Porque é que se usa ainda a expressão ‘‘guerra dos sexos’’? Porque é que ainda se fazem piadas desengraçadas a começar com ‘‘os homens assim’’ e ‘‘as mulheres assado’’? Qual o papel de Hollywood no reforço ou desconstrução dos arquétipos? O que é mudou no retrato do feminino entre os cinemas de género e o cinema independente?
Partindo de infinitas questões, propomo-nos a introduzir algum esclarecimento sobre as batalhas dos movimentos feministas, observando como os gender studies se traduziram na análise fílmica, partindo de Hollywood como referência. Numa segunda parte, dedicamos o binómio ‘‘Eva contra Lilith=Lady contra Vamp’’ à literalidade dos primeiros feminismos, focados num princípio de oposição. Invertendo o classicismo que se associa à construção arquetípica da vamp ou da femme fatale, entreabrimos na progressão da libertinagem destas figuras distintas a porta de uma liberdade inesperada, que se materializará entre formas diversas e intersticiais no cinema independente dos anos 60/70. Rever a história do cinema será sempre encontrar uma sucessão simultânea de representações desiguais e reconhecer a marca dos seus autores num movimento disperso, ziguezagueante e auto-contraditório.

PARTE 1 // CINEMA, UMA HISTÓRIA DE DESIGUALDADES DE GÉNERO
- Entre Mulheres e Homens
Em 2015, Brent Lang (1) escrevia na Revista Variety que as ‘‘as mulheres ainda são tratadas como cidadãs de segunda no que diz respeito à maioria dos filmes de Hollywood’’. A partir de um estudo do Center for the Study of Women in Television and Film da San Diego State University, Brent Lang sublinha a desigualdade entre géneros em Hollywood, demonstrando como, entre os principais títulos de 2014, apenas 12% eram protagonizados por mulheres e como para 1 actriz há 2,25 actores. Esta investigação levantava ainda uma variedade de outros indicadores, mostrando como os actores são melhor pagos (em 2013, o maior salário masculino foi de $75 milhões e foi para Robert Downey Jr, enquanto que o vencimento feminino mais elevado foi de $33 milhões para Angelina Jolie); como as actrizes são mais novas (na sua maioria, na casa dos 20/30); como aparecem mais despidas do que os homens (27% de nudez parcial feminina para 9,4% de nudez parcial masculina); como são mais vezes do que os homens retratadas como sendo mães/domésticas, sem outra descrição profissional. O estudo também indica que, em filmes escritos ou realizados por mulheres, as mulheres somaram 37% das personagens falantes e 39% das mulheres foram protagonistas. Enquanto que, em filmes realizados por homens, elas representam 28% das personagens falantes e apenas 4% foram protagonistas. Outros dados da New York Film Academy revelam como, entre 2007 e 2012, a nudez de raparigas adolescentes no grande ecrã aumentou 32,5%; que em 2013, em 145 nomeados para os Óscares, houve apenas 35 mulheres; e que na história da academia, só uma mulher (Kathryn Bigelow) ganhou Óscar na categoria de melhor realização.

Mas se Hollywood é o laboratório desta análise, não precisamos de números para adivinhar como esta desigualdade perpassa todo o meio do cinema, fora de fronteiras americanas. Por comparação, fazemos o levantamento das faltas à primeira vista: porque há ainda tão poucas argumentistas, tão poucas realizadoras, tão poucas críticas, tão poucas directoras de fotografia, tão poucas académicas?
- Cinema, Veículo de Papéis de Comportamentos
A organização sexual da sociedade é uma questão central da sua base política, da qual depende a sua continuidade. No volume ‘‘A Vontade de Saber’’ da essencial História da Sexualidade, Foucault lembra como a sociedade ocidental saída da repressão religiosa medieval no século XVII, responde à necessidade de ‘‘colocar o sexo em discurso’’(2), com a abertura progressiva dos canais discursivos no interior da sociedade laicizada que, com o século XXI, parece chegar ao seu ponto culminante de hiper-sexualização. Ironicamente, a multiplicidade das fontes discursivas orienta-se para um sobre-discurso unipolar, que serve as necessidades viciadas da ideologia dominante e planta questões – porque é que, apesar dos avanços sociais e legais das lutas feministas e LGBT, em pleno ano de 2016, ainda há tão poucas leading ladies? Porque é que ainda contamos pelos dedos os filmes protagonizados por homossexuais ou transgéneros?
É simples perceber como o claro estabelecimento dos papéis sexuais e expectativas de género pode ser definido e definir as características e comportamentos do mercado global capitalista. Como, na era da visibilidade (do corpo transparente (3) e da descoberta científica como valor-notícia (4)) ainda assim, as questões que questionam a disposição binária dos sexos / géneros estão terrivelmente ausentes do perímetro público da discussão – no qual o cinema, enquanto veículo de comunicação para massas, tem um papel a desempenhar.
O cinema é uma questão do que está dentro do quadro e o que está fora.
Martin Scorsese
- A ‘‘Guerra dos Sexos’’
Toda a opressão cria um estado de guerra. E isto não é excepção.
Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo

Guerra dos Sexos (1928) de D. W. Griffith
O pioneiro D. W. Griffith realizou dois filmes chamados Guerra dos Sexos. O primeiro, de 1914, foi uma curta metragem que, por ter sido bem sucedida, serviu de esboço para uma longa, em 1928. Baseados no conto The Single Standard, de Daniel Carson Goodman, perseguem uma visão conservadora dos papéis sexuais, assente numa distribuição tradicional da organização social, baseada na família e no casamento. Se o cinema cria espelhos da sua inserção temporal, não é ocasional que um dos founding fathers do cinema narrativo comece por tematizar tão obviamente essa carregadíssima e bafienta expressão ‘‘guerra dos sexos’’ – que, tão vulgarizada pela replicação mediática é, ainda hoje, sintoma urgente da estratificação opressora dos géneros na sociedade. Perpetuar expressões como ‘‘guerra dos sexos’’ não só é nefasto e impeditivo, como sabota as tentativas de avançar para uma justa igualdade social entre géneros: a linguagem deve combater-se com linguagem. Se Griffith é consistentemente fruto da sua época – salvo excepções como The Female of the Species (1912) – insistindo em repeat em filmes que parecem alicerçar esse domínio inicial do olhar masculino sobre Hollywood, veremos como não é propriamente possível estabelecer cronologicamente uma historiografia da representação dos géneros no cinema, uma vez que este foi tanto lugar de retratos conformistas como de propostas revolucionárias. Ainda hoje, o percurso da representação dos géneros no ecrã não é uníssono e, ora se exprime em conformidade com os ritmos da sociedade em que insere, ora lhes responde com um ponto de vista crítico.


‘‘Comecei a ver padrões. certos temas. por exemplo, que os corpos das mulheres eram muitas vezes desmembrados pela publicidade. (…) Reduzir a mulher a sexos objectos, retiravam-lhes a sua humanidade, quebrando as barreiras para violência. o grande argumento era sempre: a publicidade é trivial. A minha teoria é que quando se transformam pessoas em objectos e se trivializam, isso torna a violência mais provável. Longe de ser trivial, desempenha um papel enorme no encorajamento da violência contra as mulheres.’’ Jean Kilbourne sobre a descontrução explícita do corpo feminino pela publicidade
- Feminismo 1,2,3,4
… o homem é definido como Ser Humano e a mulher é definida como fêmea. Quando ela tenta comportar-se como um ser humano, é acusada de tentar imitar o homem…
Simone de Beauvoir

”O debate entre o “feminismo da igualdade” e o “feminismo da diferença” marcou os feminismos contemporâneos.” Manuela Tavares (Os Feminismos, Jornal, Publico, 19/3/2000)
O Movimento Feminista sedimentou-se em 4 vagas que se adicionam num projecto progressivo de luta pelo papel da Mulher na sociedade, com o fim último da igualdade de direitos e de oportunidades entre os géneros. A partir da inserção de cada fase (cronologicamente cambiante consoante os autores) no seu contexto temporal e cultural, analisamos o cinema que segue a par destes ideários e explicamos, sucintamente, o desenvolvimento que traz ao presente. (É por nos considerarmos ainda entre tantas faltas que não há legitimidade possível para conceito tão ingénuo, facilitista e ilusório – por isso, deixamos assumidamente de fora a expressão contemporânea ‘‘Pós-Feminismo’’).

- A primeira vaga de Feminismo acontece na viragem do século XIX para o século XX. No interior de um contexto industrial urbano, cruzado por ideais liberais e socialistas, surge um movimento feminista concentrado no sufrágio, na participação feminina na política e na igualdade social. Respondia à moralidade victoriana, que impunha contornos restritos à figura da lady, que devia reservar-se ao espaço doméstico, abstendo-se de vocalizar uma opinião pública ou de ter uma participação na esfera civil. Deu-se o nome de sufragettes a estas activistas apoiadas nos conceitos iluministas de igualdade e liberdade, que reivindicam para todas as mulheres o direito de participação na política e leis mais justas que as incluíssem nas decisões parlamentares. Também reivindicações específicas como a licença da maternidade foram exigidas pelas partidárias do chamado feminismo da igualdade. Apoiando-se nas suas “características femininas”, afirmaram que a especificidade das mulheres (a diferença) e luta pela igualdade de direitos são formas complementares e não contraditórias de protesto das mulheres. É do reconhecimento da profunda desigualdade de direitos, que surge a necessidade de construir uma igualdade básica que só se pode concretizar assumindo que a luta pela igualdade é consequência das diferenças irredutíveis entre mulheres e homens.



- A segunda vaga do Feminismo estende-se entre os anos 1960 e os anos 1990 e desafia a figura da ‘‘dona-de-casa’’. Primeiramente ligada à defesa das minorias e aos movimentos anti-guerra e pelos direitos civis, acompanha o surgimento da Nova Esquerda e incrementa o radicalismo dos seus manifestos (como o The BITCH Manifesto, 1968 ou o Sisterhood is Powerful, 1970), com uma produção progressivamente teórica, alicerçada no neo-marxismo e na teoria psicanalítica. O ensaio filosófico O Segundo Sexo (1949), primeiramente publicado em francês pela ‘existencialista’ Simone de Beauvoir, continha ideias-chave para o ideário geral desta segunda fase. No capítulo “Mulher: Mito e Realidade”, Beauvoir argumenta que os homens tinham tornado as mulheres no “Outro” da sociedade, aplicando uma falsa aura de “mistério” em torno destas, vincando a vacuidade de um estereótipo que conduziu à sua estigmatização e à desresponsabilização social pelas suas questões. Ao afirmar que ”o problema não tem nome”, no seu emblemático livro The Feminine Mystique (1963), Betty Friedan é um nome que convoca e mobiliza as donas-de-casa dos anos 60: “Cada mulher suburbana lida com isto de maneira diferente: consoante fez as camas, comprou mercearias, pôs as almofadas da cama a condizer com a colcha, comeu sandwiches de manteiga-de-amendoim com os filhos, conduziu Cub Scouts e Brownies, deita-se ao lado do seu marido à noite e dirige a si própria a questão que até em silêncio tem medo de perguntar – Isto é tudo?”. Na análise fílmica, teóricos como Jean-Louis Baudry, Christian Metz, Peter Wollen e Laura Mulvey analisam o cinema com os alicerces na psicanálise, problematizando as questões do género e desenvolvendo uma associação téorica entre Hollywood e o male gaze. Outras figuras emblemáticas do movimento feminista seriam escritoras como a americana Erica Jong ou a australiana Germaine Greer, que construíram a legitimação da questão feminista no contexto mais alargado de uma crítica à sociedade patriarcal, ao capitalismo, à heterossexualidade normativa e à disposição binária da organização sexual. Nesta época, surge a diferenciação entre sexo (dado biológico) e género (construção social).
Wine of Youth, King Vidor, 1924



- A terceira vaga do Feminismo, termo cunhado por Rebecca Walker em 1992, inicia-se com a década de 1990 e, expandindo os temas feministas para incluir um grupo diversificado de mulheres com identidades variadas, procura corrigir as falhas da segunda fase. Criticando uma agenda prévia demasiado focada nas questões das mulheres ocidentais de classe média ou alta, esta nova fase vinca a percepção de que as mulheres são de “muitas cores, etnias, nacionalidades, religiões e origens culturais”, e abandona a ideologia do “feminismo vítima” em que se baseou a segunda fase. A sua ideologia alicerça-se numa interpretação pós-estruturalista do género e da sexualidade, com uma ênfase na ‘‘micro-política’’. A americana Gloria Anzaldua, a americana bell hooks, a mexicana Cherrie Moraga, a caribenha-americana Audre Lorde ou a chinesa-americana Maxine Hong Kingston são activistas que têm procurado negociar um espaço dentro da esfera feminista para a consideração das subjectividades relacionadas com a raça. Ao contrário da posição radical do feminismo da segunda fase sobre a questão das mulheres na pornografia, no trabalho sexual e na prostituição, o feminismo da terceira fase mantém uma posição bastante ambígua sobre temas tão divisores.

- A quarta e mais recente vaga do feminismo inicia-se, segundo Jennifer Baumgardner (6), em 2008, e relaciona o movimento feminista com o desenvolvimento tecnológico. Nos EUA, o programa Take Our Daughters To Work Day (2003) surge para convidar as mães/pais a levarem as filhas para trabalhar durante um dia, assim endereçando uma questão focal da agenda do novo feminismo: a relação entre a maternidade e a mulher trabalhadora. No centro desta quarta vaga situa-se ainda a problemática da legalização geral do aborto, a criação de linhas de apoio pós-aborto, o incremento da moda plus-size, o apoio a transsexuais e transgéneros e a tolerância do trabalho sexual. Com a progressiva utilização do online para comunicação e difusão das questões feministas, surge o princípio inclusivo de relacionamentos com os outros movimentos minoritários, com foco no discurso público e num estudo das formas concretas em que a linguagem de domínio comum ainda veicula princípios censórios ou exclusivistas.

- Hollywood: Tradição e Transgressão


Respondendo aos resultados das primeiras vagas do Feminismo na análise do cinema predecessor, hoje o movimento Feminista reenquadra a imprecisão do primeiros ímpetos de denúncia que não souberam, precisamente, largar o tom belicista e infrutífero desse espírito de ‘‘guerra dos sexos’’. No seu radicalismo pós-estruturalista, a primeira vaga de gender studies aplicados ao cinema pecou, muitas vezes, pelo generalismo do propósito desconstrutor das suas conclusões. Faltando à minúcia (cinéfila) do olhar da teoria e da crítica, o primeiro olhar feminista via em Hollywood, invariavelmente, o modelo machista em funcionamento e o resultado foi uma condenação sumária do studio-system. Se os cinemas de género se alicerçam em estruturas narrativas regradas (western, comédia, noir, etc), fundadas na disposição binária dos papéis sexuais, a era dos estúdios é também sobre as construções arquetípicas do star-system e a imposição de ideais de beleza e de comportamento. No entanto, apesar das contaminações entre cinema e poder e do propósito industrial de Hollywood, veículo de moralidades sob o escrutínio Hays, é incontornável que estamos permanentemente no interior de um meio artístico, onde nenhuma fase é estática e onde até dos mais clássicos autores destilamos, não raramente, projectos subtis mas subversivos de desintegração dos modelos sexuais vigentes.

”que milhares de mulheres vivam esmagadas pelo fundamentalismo religioso, ameaçadas de morte só porque querem exercer direitos elementares;-130 milhões de mulheres continuem a ser mutiladas sexualmente;-milhares de mulheres, no mundo, morram anualmente de abortos clandestinos;-mesmo nos países desenvolvidos, cresçam as bolsas de pobreza feminina, assentes na precaridade;-a violência contra as mulheres, na família, continue a atingir proporções inadmissíveis.O feminismo como movimento social não esgotou as suas potencialidades do ponto de vista crítico e político. Apesar dos avanços, as discriminações mantêm-se e nalguns casos acentuam-se.” Manuela Tavares (Os Feminismos, Jornal, Publico, 19/3/2000)
Hoje, endereçar o cinema de um ‘ponto de vista feminista’ é um reposicionamento segundo princípios autocorrectivos, demonstrando precisamente como é importantíssimo ressalvar que, apesar dos discursos dominantes, nunca Hollywood caminhou inteiramente numa direcção linear e que a representação dos géneros exibe, desde sempre, um movimento disperso e auto-contraditório que só permite a minúcia de uma análise caso-a-caso (cena a cena, filme a filme, autor a autor). De facto, regressar à história do cinema será sempre rever uma sucessão simultânea de representações desiguais. Há de tudo, com código ou sem ele: exemplos de realizadores que construíram filmes como manifestos feministas; actrizes que vestiram calças no ecrã quando era crime vesti-las nas ruas; precursores innuendos gays em plena golden age; cenas de erotismo ou de nudez que desafiam os códigos censórios; etc. Importantíssimo acréscimo da crítica de cinema, fica-nos precisamente a Teoria dos Autores, que também se pode sintetizar como o minucioso método de reconhecer a individualidade do autor antes de lhe ver o filme (e é por isso que, ainda que entre filmes da grande era americana dos estúdios, aqui mencionaremos apenas os seus realizadores). O surgimento da crítica de cinema desempenhará, desde o início, uma influente função analítica do lugar e da responsabilidade do cinema face à sociedade.

PARTE 2 // O QUE SIGNIFICA FEMININO ?


- Eva & Lilith
As figuras de Eva e de Lilith não encontram contornos fixos entre as variadíssimas interpretações da Bíblia. Sem grandes certezas, sabemos vagamente sobre Lilith que foi a primeira mulher de Adão, tomando a forma da serpente que levará Eva a comer o fruto proibido. No primeiro capítulo do Livro de Génesis, versículo 27, está escrito que “Deus criou o homem à sua imagem e semelhança; criou-o à imagem de Deus, criou o homem e a mulher.” No segundo capítulo versículo 18, lê-se ‘”O Senhor Deus disse: Não é conveniente que o homem esteja só; vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele“ e é somente no versículo 22 do segundo capítulo que Eva é criada: “E da costela que retirara do homem, o Senhor Deus fez a mulher, e conduziu-a até homem.” Da expressão de Adão “…esta sim, é osso dos meus ossos e carne da minha carne!…“ subentende-se a existência de outra criatura que não era qualificada como mulher e que não se podia submeter a ele pois era independente – estava no mesmo nível de criação, criada à mesma hora que Adão.

- Eva contra Lilith = Lady contra Vamp

Na sua livre ilegitimidade, Lilith não existe em relação a Adão – tem uma existência autónoma, sobre a qual este não exerce controlo. Pelo contrário, Eva é uma figura criada a partir deste e em relação a este, para o servir. Apesar das óbvias impossibilidades de precisar os contornos que separam Eva e de Lilith nesta narrativa oscilante, estas duas prefigurações distintas servem-nos funcionalmente para ilustrar uma dualidade que insemina imemorialmente a construção do feminino pela literatura e pelo cinema.
Esta dualidade fundadora persiste ao longos dos séculos em que o lugar do feminino na sociedade é construído por uma visão patriarcal que distingue entre duas tipificações principais que, claro, existem em função do homem: – uma Lilith, mulher-serpente evasiva e livre, que é uma desejável fonte de pecado – a amante, que encontra correspondência na figura da vamp; – uma Eva que conhecerá os limites do pecado e da moralidade, figura de legitimidade divina e de construção, a companheira, esposa e mãe, que é celebração da candura do casamento e da procriação – e que encontra correspondência na figura da lady.
No súbito acordar do desejo carnal ilegítimo numa mãe ou esposa, o que é, afinal, a escandalosa degeneração de Lady Chatterley ou de Madame Bovary, senão a sua desvirtuosa passagem de lady a vamp? Não é por esta verdade que se debate também a protagonista de Von Heute auf Morgen (ópera de Schoenberg, filmada por Straub e Huillet em 1997), provando ao fantasista marido como todas as mulheres têm dois lados?

- Vamp, a Mulher Pecado
A vamp (abreviatura para vampira) é outro nome para a femme que surge no grande ecrã desde os seus primórdios. Corpos da libertinagem de Lilith, estas transgressoras mulheres são retratadas a fumar, a beber, com roupa provocante e em luxuriantes poses e danças. Protagonizam filmes com títulos imediatamente esclarecedores deste ponto-de-partida desfigurador – Safe in Hell (1931) de William A. Wellman, The Godless Girl (1929) de Cecil B. DeMille, The Devil is a Woman (1935) de Josef von Sternberg, When a Woman Sins (1918) de J. Gordon Edwards, The She-Devil (1918) de Kurt Neumann – nomes que se adicionam para nos fazer acreditar que, desde o seu início, a história do cinema consubstancia um projecto antigo de diabolização feminina. Não reconhecemos aqui uma iniciativa que parte do masculino e que, em simultâneo, mostra aos homens o que estes querem ver, ao mesmo tempo que lhes castiga essa mesma vontade de ver, usando o paralelismo religioso para responsabilizar estas diabólicas figuras de tentação? Se o cinema é um agenciamento do olhar, aquilo que começa por orientar as infinitas possibilidades deste ver/mostrar parece ser, em primeiro lugar, um castigo desse próprio olhar, onde as fundações judaico-cristãs participam como orientações culturais comuns e vincam um perímetro moralizador que o ilibe de um processo de culpa: o objecto de desejo é criado e censurado em simultâneo, fazendo deste recorrente retrato do feminino insubmisso uma eterna reencenação do mito de Lilith, a tentadora mulher-diabo do Livro de Génesis, que contamina a integridade original de Eva, a mulher-virtude, criada por instrução divina.
Na dualidade Eva-Lilith expressa-se uma antiga, moralizadora e complexa relação de amor-ódio do homem pela mulher, consequência do peso de uma construção social de expectativas sobre o masculino. E, se este olhar de escrutínio sobre a conduta feminina é decalque da desigualdade de uma estrutura de domínio do masculino sobre o feminino, também vinca um desejo de posse de um sobre o outro. Enquanto derradeira mulher que não pode ser possuída pelo masculino, Lilith alimenta no imaginário masculino o permanente desafio animal, interpelando um qualquer ideal de macho-caçador. É precisamente porque a relação do homem primeiro com a vamp e depois com a femme fatale está enquadrada por uma noção tradicional da ordem masculino-feminino, que se reforçam os ”pré-conceitos” – e essa conduta feminina afigura-se como diabólica, disruptiva da ordem vigente. Mais livre do que a femme-fatale, a vamp é a sua génese – nascida da liberdade do pré-código, à imagem de uma sociedade em acelerado ponto de mudança.




Tudo o que na vamp se rotula como transgressor não é apenas o direito de uma mulher à igualdade? O supremo fascínio da vamp ou da femme fatale é a sua auto-determinação. Na liberdade da sua conduta, esta mulher o mistério do inesperado – afinal, o que acende a progressão de qualquer boa história. Se a femme fatale existirá num papel secundário (em função do masculino), a vamp é protagonista e a sua auto-determinação é central no enredo, particularmente cativante para o público feminino. A desfiguração moral da vamp ou da femme fatale resultará, no entanto, como um empoderamento da mulher em quadros de uma nova acção possível, fora das linhas tradicionais, e a realidade e o cinema contaminam-se entre si. Vincadas na memória de quem vê como inspiradores símbolos do poder feminino, as femmes fatales respondem ao codificado cinema de género em que surgem, delimitadas mas com contornos de potências revolucionárias.

Nos loucos anos vinte, a televisão ainda vai longe e o cinema é o grande lugar do entretenimento popular. As mulheres desejam para si o despudor dessas mulheres ”com o Diabo no Corpo” e os roaring twenties são sobre uma nova liberdade celebrada no feminino: enquanto as vamps povoavam o grande ecrã, as flappers agitavam o espaço público norte-americano na década de liberalismo económico entre as Grandes Guerras. Decaída a moral victoriana, estas raparigas cortaram o cabelo, encurtaram as saias, livraram-se dos espartilhos e dançaram jazz. Usavam uma maquilhagem dramática, gostavam de festas e de bebida e levavam uma vida sexual abertamente livre. Este colorido estilo-de-vida que animava o grande ecrã, era particularmente evidente entre as maiores estrelas de Hollywood, que chegam semanalmente à imprensa sensacionalista envoltas em escândalos que os grandes estúdios se esforçam por conter.


- Femme Fatale, com o Diabo no Corpo
Loving her was like shaking hands with the devil
Ouve-se no trailer de Leave her to Heaven (1945) de John M. Stahl


She’s going to break your heart in two, it’s true
It’s not hard to realize
Just look into her false colored eyes
She builds you up to just put you down, what a clown
- Da Vamp à Femme Fatale, a ”involução”:

Alicerçado em códigos estritos, o cinema noir estabelece-se como uma resposta a uma sociedade em ponto de desintegração no fim da segunda guerra. No contexto deste tão dissecado género americano (de nome francês, este sub-género do romance policial surge no início da década de 40 e a sua designação ”noir” é cunhada pelo crítico Nino Frank, recordado das edições policiais da Gallimard), muito se escreveu sobre as conjunturas do surgimento da figura da femme fatale, essa misteriosa mulher que cativa e manipula os homens em seu redor. A perturbadora intensidade desta figura materializa várias apreensões do masculino, num novo lugar de suspensão de certezas acerca do lugar do sexo oposto na sociedade. Com a segunda guerra mundial e com o destacamento em massa dos homens para as trincheiras, a autonomização das mulheres é convocada para responder a todas as exigências práticas de um país em esforço de guerra: das mulheres, esperava-se socialmente que continuassem, em simultâneo, ‘‘making babies and making bullets’’. A femme fatale significa também a rejeição dos papéis convencionais habitualmente destinados ao feminino. Por norma solteira, independente, sem marido nem filhos, esta mulher calculista compete directamente com os homens por poder e dinheiro. Há uma moldura erótica no retrato deste feminino perigoso mas, em toda a sua liberdade e transgressão, é descrita como uma ameaça a ser contida. Aí se confirma a relação de Hollywood com a estratificação da sociedade em função do poder masculino: no film noir, a conduta da femme fatale será sempre castigada com um fim trágico, que culminará na sua auto-destruição. No paranóico mundo do noir, ‘‘o sol morreu’’, e os seres humanos subsistem, entregues a si mesmos e com propensão para o mal, entre os fumos e os neons de uma dura cidade a preto-e-branco. Sylvia Harvey escreve que frequentemente, as mulheres do noir, ‘‘são apresentadas como prémios, objectos desejáveis para os homens destes filmes’’ (7). Ou seja, apresentam-se, como mais um desafio exterior a ser superado pelo venturoso masculino. No habitual tom monologar do film noir, somos permanentemente colocados dentro do olhar de um homem a atravessar um mistério com várias portas por abrir. Relacionamo-nos com o feminino com a mesma conjecção voyeurista com que este masculino o observa – e na projecção ‘‘objectificante’’ do seu desejo, está inscrito um juízo moral sobre a femme que modelerá a nossa percepção da história.
- A Persistência da Femme Fatale

Ela é a femme fatale pós-moderna, por isso não é castigada no fim do filme e pode continuar a manipular pessoas, a ter sexo com homens e (eventualmente) a matá-los.
Juan Senís Fernández
O filme também lida com esta noção precisa de que as relações de sexo e de género são necessariamente fundadas em jogos de poder
Ed Howard
A figura da femme fatale nunca abandonou o cinema. Se as ‘‘bond girls’’ são a persistência nostálgica desses encantatórios vultos que surgem como um desafio de sedução para o herói masculino, sendo invariável a sua imediata conquista, o arquétipo da insondável mulher fatal trata precisamente sobre a incapacidade masculina de seduzir. Ressurge em força no princípio dos anos 90, com dois títulos essenciais: Basic Instinct e Fatal Attraction. Num thriller criminal atravessado por complexos jogos sexuais, Sharon Stone protagoniza a icónica Catherine Tramell de Basic Instinct, a misteriosa e vilanesca mulher que conserva a seu poder edificando um ardil da manipulação bissexual. A intensidade das suas capacidades de controlo inscreve-se na suspensão dessa cena emblemática em que cruza e descruza as pernas. Um gesto de uma simplicidade aparente como uma demonstração assertiva do seu poder sobre os homens. O corpo hiper-sexualizado de Catherine é um espectáculo de véus e de visibilidades, o permanente foco de um estado orquestrado de tensão.
Catherine usa a sua beleza e a sua inteligência para nulificar os homens.
Juan Senís Fernández
O ascensão social da mulher no ocidente, decorrente do progresso no acesso à educação e formação e da ocupação de profissões até aí consideradas masculinas, enquadram este ressurgimento da femme fatale no ecrã mainstream dos anos 90. Ostensivamente presente no mundo dos homens, a femme fatale pós-moderna é descrita como insaciável por poder, sexo e dinheiro e é tão mais próxima quando mais incompreensível, mais misteriosa e mais perigosa. A materialização dos complexos de inferioridade dos homens (Kastrationsangst – a angústia da castração que a psicanálise freudiana problematizaria?) alimentam o seu temor tanto como o desejo. No interior do descontrolo dos homens face a este feminino inesperado, consolida-se uma visão sexista e moralizadora, e os olhos do medo masculino desejam forçosamente ver nesta nova liberdade uma libertinagem que deve ser contida. A grande vitória de Basic Instinct está no fim em aberto que salva o filme de um resultado de orientação punitiva – esta femme fatale ‘‘permanece à solta’’.
- A Liberdade do Pré-Código



O Pré-código (Pre-Code Era) foi um período de peculiar liberdade do cinema americano que se estendeu entre o final dos anos 20 e o início dos anos 30. Compreende a chegada do sonoro (em torno de 1927) e, no interior veloz de experimentalismos e inovações, é uma fase progressista e inovadora. Na força de uma liberdade singular, actrizes como Barbara Stanwyck, Claudette Colbert, Greta Garbo, Norma Shearer ou Joan Blondell são ícones de um precursor exame do papel social da mulher que começa a despontar num momento em que Hollywood não era ainda contida por um Código de Produção Cinematográfica – O Código Hays. Nas décadas de 10 e de 20, o grande ecrã era dominado por essas vamps, personagens cativantes na sua complexidade e desafiantes para o sexo oposto. Nesses tempos pré-código, vimos uma Greta Garbo bissexual em cross-dressing em Queen Christina (1939) de Rouben Mamoulian, vimos Marlene Dietrich como Mata Hari (1931) de George Fitzmaurice, vimos close-ups da lasciva Mae West em I’m No Angel (1933) de Wesley Ruggles e vimos Barbara Stanwyck como prostituta explorada pelos homens da própria família, em Baby Face (1933) de Alfred E. Green. Num ápice, tudo mudou. Se no grande ecrã se contavam os esquemas de sobrevivência e de precariedade social e moral da realidade americana pós-depressão, o conservadorismo cristão rapidamente se apoderou desse poderoso meio de comunicação de massas com o intuito de renovar o comportamento da sociedade. (4)
- Código Hays, o Código de Censura Cinematográfica
”Se a história do cinema ensina alguma coisa é que vem aí uma década de libidinoso aquecimento. No século do código Hays, passagem dos anos 20 para os 30, tudo era proibido. Mesmo o beijo na boca era só uma lástima de beijo na boca. (…) toda a proibição dilata os corpos e foi essa imparável expansão humana que, subversiva, inundou Hollywood naqueles anos pudibundos.”
Manuel S. Fonseca
”O Código Hays dá-me vontade de vomitar.”
Gloria Swanson

Promiscuidade, homossexualidade e infidelidade são alguns temas que surgem no grande ecrã e que a moralidade cristã norte-americana se apressa a acusar de promoverem comportamentos impróprios, pressionando o Governo a impor aos estúdios um código censório. Oficialmente em vigor desde 1930, o Código Hays só viria a ser posto em prática por volta de 1934, estendendo-se até 1967. Seria elaborado pelo presbiteriano Will Hays e posto em prática, gradualmente, a partir de 1930, decaindo até 1966, quando a Motion Picture Association of America introduziu o sistema de ratings (escalões etários para os espectadores). O Código Hays consistia numa lista de «Dont’s» e «Be Carefuls», que restringiam a presença de imagens de nudez, tráfico ilegal de drogas, escravidão branca, miscigenação ou ridicularização de credos ou nações, e recomendavam cuidado particular ao mostrar a bandeira, armas de fogo, drogas, técnicas de cometer assassinatos, brutalidade, prostituição, crueldade para com crianças e animais, entre dezenas de outras advertências. Até aí, Hollywood parecia conduzir-se num fluxo de ostensiva liberdade: neste mesmo ano de 1930 – apesar do pós-crash, um ano de forte produção cinematográfica – são lançados filmes tão populares como The Divorcee (Robert Z. Leonard) protagonizado por Norma Shearer e Anna Christie (Clarence Brown) com Greta Garbo, duas narrativas lideradas por mulheres emancipadas, que fumam, bebem e dão seguimento a separações, divórcios e deambulações sexuais.
A condenação sumária – por parte deste conservadorismo – seria implacável e os símbolos femininos desta desinibição sexual seriam os primeiros alvos. Através da dissecação punitiva da sua vida privada pela imprensa, a it-girl Clara Bow seria uma das principais perseguidas e retirava-se dos ecrãs aos 28 anos, afirmando que ‘‘O sex appeal é um fardo demasiado pesado para carregar quando uma pessoa está cansada, magoada e perplexa.’’ (6)


No entanto, apesar de todas as restrições, o Código Hays americano estimulará, junto da argúcia de certos autores, inolvidáveis momentos em que, de um contornar habilidoso das imposições, decorre um domínio minucioso da construção dos filmes, complexificados pelos sugestivos prenúncios do que não podia ser dito nem mostrado. Foi com a chegada às salas americanas, nos anos 60, de filmes europeus cada vez mais populares, que Hollywood sentiu a pressão de aliviar as restrições da produção cinematográfica. No entanto, o pudor nunca largou as entranhas do cinema americano e a nudez ainda hoje surge com extrema contenção. Quem nunca ouviu a um americano, num qualquer reductio ad absurdum cómico, que o cinema europeu é sobre nudez a qualquer propósito? (5)

- O Direito ao Desejo Feminino
Os filmes de Walerian Borowczyk transportam o poder que o erotismo nunca devia ter perdido, e põem incessantemente este poder a funcionar de cem maneiras diferentes. (…) Estes são filmes sobre mulheres que ouvem os seus apetites, que aventuram as suas líbidos e que perseguem a demanda do prazer.
Cristina Alvarez López

A grande vitória do Feminismo a partir da sua terceira fase, é o reconhecimento do direito à dimensão do desejo na mulher. Se a primeira e segunda vagas do Feminismo se apressariam a diagnosticar – com rótulos de objectificação / fetichismo / machismo – qualquer retrato da nudez feminina sexualizada, a progressão dos gender studies permitiu-nos perceber de que formas pode um manifesto feminista conter uma nudez reivindicativa de uma psicologia sexual para a mulher, mesmo quando o filme é assinado por um homem. É precisamente o que defende Cristina Alvarez López ao revitalizar a obra de Walerian Boroczyk como exemplo. Este nome central do erotismo francês nas décadas de 60/70, ficara, até há bem pouco tempo, soterrado entre os rótulos da perversão, do explícito e do fetiche – mas, salienta a crítica, as forças precursoras do cinema do polaco constroem, tal como Lady Chatterley ou Madame Bovary, um retrato libidinal da mulher que lhe concede poder. Progressivamente subversivo, este cinema interessou-se pela investigação da sexualidade feminina, expondo a busca da mulher pelo prazer em retratos extremos e com contornos incómodos. O tempo é amigo da reavaliação e hoje estamos mais lúcidos para ver como filmes anteriormente condenados por objectificação do feminino são, na verdade, indispensáveis panfletos da sua libertação sexual. É possível negar que um dos incontornáveis emblemas da representação do direito ao desejo feminino é a questão da mulher em busca do orgasmo? Se começa por ser desenvolvido nos domínios do cinema erótico ou da pornografia, este tema será progressivamente celebrado pelo cinema de autor por autores precursores como Jess Franco ou Alain Robe-Grillet ou, mais recentemente, em filmes como Shortbus (James Cameron Mitchell, 2006) ou O Sabor da Melancia (Tsai-Ming Liang, 2005).
Ser libertária não significa copiar o que veio antes, mas encontrar o próprio caminho – um caminho que é genuíno para a própria geração.
Manifesta, de Jennifer Baumgardner e Amy Richards, 2000
”- What is so masculine about a conversation that a woman can’t get into?” – Giant (1956), de George Stevens


- Construção e Desmantelamento da Mulher Perfeita



Se a história do cinema fala sobre a construção e desmantelamento de uma ideia de mulher perfeita – física e moral – as figuras desta desconstrução não são sempre óbvias. A revolução na representação da mulher grita, subrepticiamente, pelo direito à imperfeição feminina. Aceitar o erro e o imperfeito no semelhante humano não é, afinal, reconhecer-lhe humanidade – e a partir daí trabalhar em direcção a um nivelamento de direitos?
Interpretada por Jean Seberg, a personagem Lilith (1964) de Robert Rossen é um dos exemplos de uma verdadeira complexidade psicológica protagonizada pelo feminino mas, nos anos 60/70, os exemplos similares não se esgotam, provas de figuras construídas longe dos alicerces tradicionais, aptas a demonstrar como enfrentar os códigos da normalidade é respeitar as diferenças individuais: este é o novo ímpeto que os anos 60/70 prescrevem como força reconstrutiva da sociedade.

Rachel, Rachel (de Paul Newman, 1968) é um título precursor de uma vaga de filmes que procuram um retrato real das mulheres. A neurose, a vergonha, e o permanente medo do erro são as forças castradoras que têm paralisado Rachel Cameron. Aos 35 anos, a solteira professora-primária sente que desperdiçou metade da sua vida e as várias faces deste conflito interior convocam sucessivas desvínculos com o passado e com a geração predecessora. Pelo caminho desta luta individual, que demonstra fundamentalmente como a autodeterminação é uma condição indispensável para a felicidade, surgem questões tão essenciais e precursoras no grande ecrã ao feminino como o aborto ou o lesbianismo.

O desconforto agudo de Natalie é o nosso: a protagonista de The Rain People (de Coppola, 1969) está à deriva. Abandonou o marido e o lar, âncoras do feminino tradicional, e dá início a uma road-trip a sós, no espírito que alicerça estas viagens dos anos 60/70 numa aura de auto-descoberta. Uma gravidez parece um de vários motivos catalisadores desta necessidade de fuga, mas os longos telefonemas para casa descrevem a sua solidão e vulnerabilidade, assim como uma permanente instabilidade face à decisão que mantém. A desresponsabilização incessante de Natalie influencia o nomadismo libertino de Alice Doesn’t Live Here Anymore (de Scorsese, 1974) que tem, com a sua viuvez, um passe para todos os riscos. Na liberdade da deambulação com que responde à sucessiva precariedade da sua vida, esta espirituosa mulher de meia-idade com vocações artísticas, desdobra-se com admirável malabarismo entre as funções de mãe, amante, cantora e ainda colecciona trabalhos para combater as suas faltas materiais. Independentemente da podridão em seu redor, jamais violará os seus princípios.

Wanda surge em 1970, com vincados contornos de Rachel, Rachel e como uma espécie de apuramento da personagem desalinhada que a actriz desempenhara em Splendor in The Grass (Elia Kazan, 1961). Este melodrama realista seria o único a ser simultaneamente protagonizado e realizado por Barbara Loden. Habituada a ser uma presença afável dentro e fora dos ecrãs (primeiramente reconhecida pelos lugares de musa, actriz e companheira do polémico realizador Elia Kazan), toma nas próprias mãos a responsabilidade pela sua auto-representação e, na pele de uma mulher demasiado ingénua para apreender o mundo, arrisca-se a surgir desfigurada, fragilizada e enlouquecida, num retrato desafiante que funciona como um manifesto geral que, partindo do subjectivo, reivindica outra imagem para o feminino. Como escreveu Rita Azevedo Gomes neste dossier, ‘‘Sabemos que Wanda é a única que tem razão, os outros é que estão errados’’ e que, no limite do seu realismo, ‘’Wanda é, antes de mais, um filme sobre a Mulher no mais profundo sentido, no sentido da lógica do “tudo” e do “não tudo” – o ser que recebe, que acolhe, que espera ser dirigido’’.


Similarmente, A Woman Under the Influence (Cassavetes, 1974), traz-nos o incómodo retrato de uma mulher de meia-idade que, genuinamente entregue ao exagero e ao descontrolo, rompe quaisquer contornos supostos aos papéis de esposa, mãe e dona-de-casa. Loucura? Trauma? Adição? Stress? Nunca saberemos o há de errado com Mabel. Objecto raro, 3 Women (Robert Altman, 1977) seria um onirismo protagonizado por três mulheres, de gerações distintas. ‘‘Talvez tenham formado uma família ou talvez se tenham tornado numa só pessoa’’, supôs Roger Ebert, em alusão à ilógica que sequencia este objecto misterioso, onde a transição de papéis e a migração de identidades montam um enigma que não será desfeito.

Grey Gardens (Maysles Brothers, 1975) documenta, com um inesperado impacto, a relação familiar de duas mulheres que vivem isoladas. Este é o retrato cru das duas últimas Beales, uma mãe e de uma filha que, na solidão de uma mansão decrépita de Grey Gardens (South Hampton, NYC), envelhecem juntas na pobreza, contra todas as expectativas de classe, género e posição social. Escolhendo nunca casar, a jovem Edie Beale, prima de Jacqueline Kennedy-Onassis, vive em isolamento na companhia da sua mãe até à morte desta. Este documentário íntimo revela um tabu de dimensão inumerável – a vergonha de toda a burguesia decadente que se esconde na sua miséria.

Jeanne Dielman (de Chantal Akerman, 1975) é um dos mais emblemáticos manifestos feministas alguma vez surgidos no grande ecrã, a par de outros realizados pela interventiva belga. Jeanne Dielman (Delphine Seyrig) é uma viúva solitária, que se prostitui para ganhar algum dinheiro extra. O quadro da sua alienação é construído ao longo de 201 minutos, pela repetição e pela rotina, pela banalidade e pelos afazeres domésticos que a quebram até ao suicídio. Traduzindo de forma precursora um estilo meditativo que acompanha o quotidiano de Jeanne e dá a sentir a mortalidade contida no peso das horas, este filme constitui-se até hoje como uma revolucionária formulação da sintaxe cinematográfica, aqui fundada sobre uma minuciosa estrutura laboratorial que faz da duração a preparação indispensável para o conhecimento profundo do tema das mulheres/mães/donas-de-casa que Chantal Akerman observou de perto ao crescer e que mimetiza criticamente desde os seus filmes de escola.



Fear Eats the Soul (Fassinder, 1974), é igualmente protagonizado por uma mulher na terceira idade que, pelo direito ao desejo e ao amor, enfrenta a família e a pequenez de uma comunidade estrangulada por vestígios de nazismo e de fobia racial, ainda vincados no interior da sociedade alemã décadas após a queda do regime. No ano seguinte, Fear of Fear (Fassbinder, 1975) descreve, como um constante point-of-view, o olhar de uma mãe/ grávida como o ponto-de-fuga de todas as suas angústias e anseios relativos à maternidade, instaurando uma postura incessante de desconfiança que vai das ruas ao jardim-infantil, dos transeuntes ao próprio marido, num incansável estado de alerta que adianta o seu colapso psicológico. Em The Marriage of Maria Braun (Fassbinder, 1979) a acção desenrola-se sobre a desintegração da sociedade alemã no pós-guerra, período de escassez material e de desigualdade entre mulheres e homens (mortos, desaparecidos, feridos na sequência da guerra), que convoca a autonomia das mulheres e crianças. Longe de hábitos, maneiras e códigos de comportamento de outrora, têm nas mãos o projecto desacompanhado de reconstrução de uma sociedade literalmente em ruínas. Enquanto o progressismo de Maria Braun enfrenta as dificuldades a sós, mantendo-se fiel ao amor pelo marido que incessantemente procura, apesar de todos os esforços de uma vida clandestina de prostituição é, por isso mesmo, rejeitada pelo marido, ex-SS, finalmente aparecido. Tal como a Alice de Scorsese, a Maria Braun de Fassbinder mantém uma fidelidade a si mesma, numa postura alternativa de integridade moral que responde directamente às circunstâncias materiais do seu tempo – responder activamente à sua realidade é enfrentar os ideais cristalizados de feminino que vêm de outros tempos.

The Stationmaster’s Wife (Fassbinder, 1977) é mais um filme do realizador que melhor utilizaria o espelho para materializar a relação entre o corpo e o Eu, como um dos alicerces fundadores de toda a teoria psicanalítica e, por conseguinte, de revelação do clima interior das personagens e de metáfora para construção autónoma do Eu. Neste labirinto doméstico de espelhos, difunde-se o desespero do marido complacente face os comportamentos de uma mulher radicalmente livre, permanentemente conduzida pelas suas vontades, para lá dos estereótipos impostos ao feminino na Bavaria dos anos 20. Uma e outra vez, Fassbinder volta ao tema do desdobramento da personalidade e, além dos abundantes espelhos que enunciam as crises de identidade dos seus protagonistas, também a presença de bonecas recorre, simbolizando não só a passagem geracional de comportamentos e expectativas entre o feminino como as feições estáticas de uma beleza que nenhum espelho guarda. Recordamos um emblemático filme do mesmo ano, Opening Night (Cassavettes, 1977), em que Gena Rowlands protagoniza uma actriz que se recusa a aceitar o papel de uma mulher de meia-idade por incapacidade de se ver como uma. A loucura desta mulher que já foi bela advém da qualidade temporária da imagem especular: as marcas da idade na sua imagem provam a degradação irreversível da beleza a que o corpo está sujeito. A génese da vulnerabilidade que inicia a sua alucinação, inscreve-se na pressão geral sobre um feminino excessivamente dependente da valorização dessa imagem.


Opening Night (1977), de John Cassavettes
As Lágrimas Amargas de Petra von Kant (Fassbinder, 1972) viria a alicerçar-se como um dos mais essenciais melodramas de um realizador que se dedicou ao universo feminino como poucos. A partir de uma peça da sua autoria, constrói um misterioso jogo de sedução e de poder exclusivamente entre mulheres e Petra Von Kant é a personagem em queda livre, no interior de um apartamento que confirma a sua ascendência até à sua redução e confinamento. O fluxo permanente de questionamento ‘‘vai e vem entre a lucidez e a loucura, o controlo e a perca total, a dependência e o individualismo, a crueldade e a vulnerabilidade.’’ (9)


- Contra as Bonecas


Filmes como The Valley of the Dolls e The Stepferd Wives dirigem-se à necessidade de destruição das expectativas sociais sobre as mulheres nos veículos mainstream da sociedade. Sabendo-se a lidar com esteréotipos e referências, ambos expõem o próprio excesso constituinte para criticar um ideal ‘‘plastificado’’ de beleza, com vínculos estreitos ao capitalismo. Os dois filmes condenam a permanência das expectativas forçadas sobre o feminino, associando as tentativas forçadas de correspondência aos cânones impostos pela ideologia dominante à vacuidade de uma existência robótica, vestígio de um tradicionalismo opressor. Depois da perfeição estudada da mulher do noir que, no permanente calculismo de sua pose sedutora, age em função das reacções masculinas, as lutas sociais pela igualdade das décadas de 60/70 rapidamente chegam ao grande ecrã para reclamar dimensão e espessura para as protagonistas. É o direito à personalidade, à complexidade e à auto-determinação, contra a valorização superficial da figura o aqui que se reivindica.
- Nas Rédeas da Auto-Representação

”Os homens ‘agem’ e as mulheres ‘aparecem’. Os homens olham para as mulheres. As mulheres vêem-se a ser olhadas.”
John Berger em Ways of Seeing
A fotografia libertou a nudez feminina da passividade da representação clássica, submissa ao male gaze (10), quando as mulheres tomaram as rédeas da auto-representação do feminino, entre nomes como Germaine Krull, Sophie Calle, Francesca Woodman ou Ana Mendieta. Assistimos à vitalidade de um movimento paralelo a emergir no cinema, em que cineastas como Maya Deren, Barbara Loden, Chantal Akerman ou Yvonne Rainer deram literalmente o corpo ao manifesto, protagonizando, simultaneamente à frente e atrás da câmara, um amplo projecto redefinidor dos arquétipos femininos.
- Feminismo e Auto-Ironia
”Tirando algumas particulares e encantadoras diferenças anatómicas, acho que, no essencial, homens e mulheres são iguais e, por isso, tem de haver uma explicação para haver mais homens humoristas do que mulheres. O que acontece é que, mesmo apesar do caminho que já fizemos, mesmo nas sociedades ocidentais a igualdade não é plena. As mulheres continuam a trabalhar mais do que os homens para obter o mesmo. E uma pessoa que tem de fazer mais do que os outros para obter o mesmo, tem de se levar mais a sério. (…) O que o humorista faz (…) é transformar uma coisa noutra coisa. Para fazer esse exercício humorístico, é preciso não levar o mundo a sério. Uma pessoa que precisa de se levar muito a sério (…) não pode dar-se a esses luxos. (…) É só isso.’’ Ricardo Araújo Pereira (2016)

O filme colectivo Seven Women Seven Sins (1986) é o golpe de ironia quintessencial de uma consciência colectiva feminina que reúne esforços para, com humor, subverter a alicerçada associação ocidental entre mulher e pecado. Nesta intervenção conjunta, sete realizadoras distintas juntam-se para produzir, com liberdade e experimentalismo, curtas-metragens alusivas aos vários pecados: Helke Sander (Gula), Bette Gordon (Avareza), Maxi Cohen (Ira), Chantal Akerman (Preguiça), Valie Export (Luxúria), Laurence Gavron (Inveja), and Ulrike Ottinger (Orgulho).
Este fôlego transgressor, que combate o conservadorismo e a moralidade tradicional inicia-se, entre incontáveis exemplos, na dessacralização dos princípios e figuras religiosas: Black Narcissus (1947) de Michael Powell, The Nun (1966) de Jacques Rivette, Tell me that you love me, Junie Moon (1970) de Otto Preminger, Glissements progressifs du plaisir (1974) de Alain Robbe-Grillet, The Devils (1971) de Ken Russell, Mrs.45 (1985) de Abel Ferrara, etc. A subversão sexual inscrita nesta desintegração do sagrado sedimentou-se na cultura popular na figura de um ícone superlativo – Madonna – que, a começar pelo seu nome, questiona até hoje os signos judaico-cristãos e define como as mulheres podem ter pleno controlo sobre a sua expressão sexual. E, no seu embandeirado girl power, já cantavam as Spice Girls à emancipação feminina dos anos 90 com uma música que, curiosamente, seria também título do documentário realizado em homenagem a Madonna, a padroeira pop do feminismo na década anterior: “Cause the lady is a vamp / she’s a vixen not a tramp / She’s a da da da da da da’’.(11)
Notas Bibliográficas:
(1) Brent Lang em Revista Variety.
(2) Michel Foucault em A História da Sexualidade.
(3) Ieda Tucherman em O Corpo Transparente: dispositivos de visibilidade de mutações do Olhar.
(4) A ideia de que a ‘‘medicina de interesse público’’ torna o corpo um tópico regular da agenda mediática de uma sociedade – História da Sexualidade 3, o Cuidado de Si.
(5) Com escassas alterações, este excerto está inserido num artigo mais alargado chamado ‘‘As Fendas Nas Censuras Cinematográficas’’ publicado pela autora na Wrong-Wrong Magazine (2015), http://wrongwrong.net/artigo/fendas-nas-censuras-cinematograficas.
(6) Why Be Good? Sexuality & Censorship in Early Cinema (2007) de Elaina Archer.
(7) Sylvia Harvey em ‘‘Woman’s place: the absent family of film noir’’.
(8) Jennifer Baumgardner, em Becoming the Third Wave.
(9) Luís Miguel Oliveira em Folhas da Cinemateca.
(10) Peter Wollen em Signos e Significação.
(11) Spice Girls, álbum Spiceworld (1997).