Quando tinha apenas 23 anos, a bonita Yuliya Solntseva (Moscovo, 1901) estreou-se à frente das câmaras com dois filmes um tanto atípicos para a visão mais recorrente (e sisuda) que temos do cinema soviético. Um chama-se Aelita (1924) realizado por Yakov Protazanov e é considerado como o primeiro filme de ficção científica daquele país. O outro é uma comédia romântica, com Yulia no papel de uma jovem vendedora de cigarros, no centro das atenções masculinas. É precisamente nesse Papirosnitsa ot Mosselproma (The Cigarette Girl from Mosselprom, 1924) de Yuri Zhelyabuzhsky que, numa das cenas, um dos seus pretendentes, Latugin, um cameraman de uma equipa de cinema, ensina Yulia ou a jovem vendedora tornada actriz a utilizar a câmara de filmar. Talvez se possa dizer que este filme, e esta cena em particular, sejam reveladores daquilo que iria ser o futuro da mulher com quem Aleksandr Dovzhenko se viria a casar três anos mais tarde.

Mas as pistas no que diz respeito a este filme não ficam por aqui. Além de Latugin, que, podemos afirmar, representa o homem que domina a forma do cinema se fazer, dois outros ficam encantados pela sua beleza. Um deles, é um americano obeso, homem de muito dinheiro ligado aos negócios da moda e investidor financeiro no próprio filme onde a personagem de Yuliya começa a trabalhar como figurante. O outro, um cómico contabilista, funcionário público, a certa altura começa a escrever um argumento dedicada ao seu amor pela jovem. Podemos então dizer que nesta comédia meta-cinematográfica, a personagem principal feminina terá de escolher entre três hipóteses: o homem que faz cinema, o homem que produz o cinema (e a quer usar como manequim), e, finalmente, o homem que escreve o cinema, idealizando o seu amor nessa escrita cinematográfica, dando-lhe nesse mundo um papel de destaque como actriz. A opção que a rapariga dos cigarros toma, o homem que escolhe, permitem simbolicamente ver este filme como uma afirmação da condição feminina que recusa o papel de manequim e de actriz, para poder estar dentro da forma de fazer os filmes. Aliás, por duas vezes, a personagem do contabilista pensa que o seu amor está morto (numa das cenas cometendo suicídio, mandando-se de uma ponte; na outra, assassinada e metida numa arca) precisamente porque confunde a mulher com o manequim.
Finalmente, ainda outro pormenor tão importante e delicioso. Latugin, o cameraman, a dada altura é expulso da rodagem principal por andar sempre a namoriscar com a menina vendedora de cigarros, e é incumbido de fazer um pequeno filme de exteriores sobre a nova Moscovo quotidiana. Quando chega a vez de mostrar aquilo que havia filmado, todos os planos, inclusivé um que anunciava a estátua de Fiódor Dostoiévski, só contêm afinal Yuliya Solntseva, objecto da sua paixão e cinema mental. Indignados, os responsáveis do estúdio chamam a atenção do jovem que lhes responde: “mas isto é um género novo e particular, a paisagem animada.” Interessante este acto e, sobretudo este conceito, que nos permite entrar quer no cinema de Dovzhenko, quer na relação deste com Solntseva. No primeiro porque sabemos como a narrativa soviética oficial sempre interessou menos do que o lado lírico, telúrico, animado que o preenchia. No último dos 5 filmes feitos a partir de escritos e argumentos do realizador, Zolotye vorota (The Golden Gates, 1969), Yuliya Solntseva cita o ex-marido quando ele diz que se tivesse de escolher entre a verdade e a beleza escolheria sempre aquilo que é belo, pois só aquilo que é belo é verdadeiro. Sobre o segundo aspecto, a relação entre os dois, também a noção de “paisagem animada” pode tornar-se relevante. Solntseva acaba por fazer um pouco aquilo que Latugin faz em relação ao seu objecto de adoração: filmar os espaços, as histórias que Dovzhenko já não pôde filmar. Nesse sentido, pelo menos no que diz respeito à terra da sua infância, a Ucrânia, na trilogia que a realizadora lhe dedicou, ela acaba também por funcionar como “paisagem animada”, não pela presença, mas pela ausência do seu marido, entretanto desaparecido.

Importa no entanto voltar atrás, mais concretamente aos frutos e suas árvores, sinal de casa de infância de Dovzhenko, mas também índice do seu universo telúrico e poético, para vermos pela primeira vez no ecrã o nome do realizador associado ao de Yuliya. Trata-se de Zemlya (Terra, 1930) a grande obra prima do autor que se relaciona de certa forma com a estreia na realização de Solntseva a solo, quase vinte anos depois, com o belíssimo poema ao mar, Poema o more (The Poem of the Sea, 1959). Naquele a futura realizadora é ainda apenas actriz, encarnando a irmã do “agente da colectivização agrícola”, Vasyl, que traz um tractor pela primeira vez para os campos a semear, morrendo pouco depois na mais incrível e dançante cena de morte da história do cinema. Se falava dos frutos é porque eles são uma ligação à terra e à passagem do tempo: o próprio Dovzhenko descreve a não menos impressionante cena da outra morte de Zemlya, a do avô de Vasyl, Semen, como a queda da “semente” à terra, mais um fruto que caí, amadurecido.
Se aqui é o avô que vai à terra como um fruto, vinte anos depois, Dovzhenko escreveria no argumento de Poema essa cena em que o pai do general Ignatz — voltando à sua terra prestes a ser inundada por uma barragem que o grande projecto de modernização comunista quer construir sobre o rio Dnieper— lhe pede para cortar ele próprio a pereira da sua casa, para assinalar o fim da aquele tempo e o avanço dos bulldozers sobre a vila. Em ambos os filmes está em causa uma forte ligação à terra, símbolo da tradição e raiz de um passado, mas em nenhum deles a nostalgia de uma escolha clara parece ter lugar. Em Zemlya a figura mártir é precisamente o jovem que acredita no projecto da modernização, em Poema não são só os jovens que partem do kholkoze de Kakhovka na Ucrânia, também os velhos percebem que a inundação de um tempo em que se “regressava a casa a pé” é inevitável.
Mas se a terra une os dois filmes, ela de certa forma também os separa. Poema foi um projecto escrito por Dovzhenko durante dois anos, período durante o qual viveu entre os trabalhadores da estação hidroeléctica a construir na já referida zona da Ucrânia. Contudo, segundo reza a história, o realizador morreu de ataque cardíaco na véspera de começar a rodagem. A decisão de Yuliya realizar o filme (ela que ao longo dos anos tinha já assinado várias obras como segunda realizadora de Dovzhenko, sobretudo documentários) foi determinada por uma vontade de homenagem. Por isso, Georges Sadoul cita na entrada que dedica ao filme no seu “Dictionnaire des films” (1965) Fereydoun Hoveyda que qualifica Poema como “verdadeiramente o primeiro filme póstumo da história do cinema”. E aqui começam as dúvidas. Onde termina a visão de Dovzhenko e começa a de Solintzeva, não só nestes filmes mas também naqueles que completariam a trilogia da Ucrânia?
Não é fácil determinar uma resposta mas pondo, como exemplo, em paralelo Zemlya e Poema talvez se possa dizer que a realização de Dovzhenko se instalava sobretudo nos detalhes de uma acção mais vasta (os contrapicados sobre os camponeses e os animais, os já referidos frutos, as searas ondulantes, os girassóis, sobretudo a profundidade dramática extraída através dos gestos e dos olhares, recorrendo a pequenos incidentes dramáticos), relegando a visão de uma sociedade em transformação para o backgroud onde evoluíam as suas personagens. Por exemplo, quem se lembra do processo de fabrico do pão em Zemlya, se comparado com a sequência de “enterro” de Vasyl e de desespero nu da sua esposa?
Já a realização de Solintzeva em Poema funciona com um outro equilíbrio. Por um lado, o realizador queria trabalhar com o formato dos 70 mm (em rigor a versão soviética, Sovscope 70), mostrar o seu país natal, as suas searas, os campos, os rios em toda a sua amplitude e cor. Por isso, o “poema” de Dovzhenko tinha uma qualidade épica das grandes imagens e sobretudo do fresco de personagens de todo o género (generais, escritores, camponeses, presidentes municipais, engenheiros oportunistas, meninos traquinas, mulheres abandonadas, etc), mas também um tom dramático de “adeus à terra”, e nisso uma dimensão fordiana [sobretudo The Grapes of Wrath (As Vinhas da Ira, 1940)], influência que um ano depois se “invertia” também nessa drama da invasão da terra pela “água selvagem” que é Wild River (Quando o Rio se Enfurece, 1960) de Elia Kazan. Por outro lado, Solintzeva substitui a concentração dramática do marido por um fluxo de elementos dispersos.
Num filme que começa e acaba com um barco que chega e depois parte, uma plataforma flutuante, a realizadora começa por “misturar” a fluidez da água aos pensamentos e sonhos dos seus protagonistas (o menino que lembra numa sequência de animação a morte do czar, o general Ignatz que recorda a guerra, a família de Opanas que sonha com os gansos que o marido recusa matar – “as asas são para voar, não para comer”, diz ao filho. Depois filma o presente, o passado, o futuro e a imaginação, justapõe aviões que voam ao lado de gansos e anjos, ou o som de passarinhos no campo e das bombas no campo (da guerra). As sequências “surreais”, como a mais bela do filme, o suicídio de Katherina (ver imagem acima), surgem tintadas, salientando a oposição entre o fluxo da criatividade que permanece além da barragem que há-de vir, submergindo a terra, trazendo rigidez de pensamento.
Embora hoje isto não passe de um mero delírio é interessante utilizar a personagem que deu a conhecer a Dovzhenko, Solintzeva — o seu primeiro papel, o de Aelita no já referido filme homónimo de 1924 — como forma de representar a relação entre as duas mise-en-scènes. No filme que serviu de inspiração a Metropolis (1927) de Fritz Lang (e que inaugurou a sub-espécie da ficção científica no país como o espaço exterior para ensaiar a revolução comunista da Rússia), Aelita é filha de um ditador marciano e quer a todo o custo aprender com Los, um engenheiro da terra, a usar os lábios para beijar (ela e Nikolai Tsereteli são o mesmo par protagonista do filme de Yuri Zhelyabuzhsky). Isto é, Aelita é a femme fatale de um “outro mundo” que conduz a revolução na mente idealista de Los. Se transpusermos isto para a dura realidade, e para a narrativa oficial dos últimos projectos de Dovzhenko, que por constrangimentos de regime foram todos filmes impossíveis e apenas magicados, então ficamos com a ideia maluca de que coube a alguém já fora dessas constrangimentos, uma “extraterrestre”, que com ele havia aprendido o básico (a filmar os pequenos grande detalhes da vida: o amor, a separação, a dor da guerra e da perda), concretizar esse imaginário tão livre quanto revolucionário, por relação ao que o próprio Dovzhenko havia feito no passado.

O segundo tomo da trilogia da Ucrânia, Povest plamennykh let (The Story of the Flaming Years, 1961) deu a Solintzeva o prémio de melhor realizadora no Festival de Cannes desse ano. Este aproxima-se de um retrato da Grande Guerra Patriótica que opôs a União Soviética e a Alemanha entre 1941-1945. Ivan Orliuk (Boris Andreyev) é um agricultor ucraniano tornado soldado, peça de xadrez de uma guerra de resistência contra o ocupante nazi. Durante os Verões escaldantes da guerra, Solintzeva filma as batalhas em terra e nos pântanos, junto ao rio Dnieper e todos os episódios daí subsequentes, os feridos de guerra, as aldeias destruídas, as censuras na educação, os casais separados, os problemas de tradução de um país dividido entre as ordens alemãs e a língua russa.
Se quisermos fazer a relação com o filme anterior dois elementos são evidentes. O primeiro o retomar da personagem do general (salvo erro, não nomeado neste tomo), possibilitando assim fazer de Povest uma expansão das sequências em que o Ignatz relembra em Poema os tempos vividos na guerra. O segundo elemento é praticamente transversal a todos os filmes realizados por Solintzeva: o regresso a casa. Neste caso ele acontece quando Ivan após ter sido ferido em combate regressa para encontrar a sua aldeia destruída, falando com a sua antiga casa, a sua “mansão” e para se reencontrar e casar com o seu amor de infância, Uliana (Zinaida Kirienko). Se é verdade que o argumento escrito por Dovzhenko é muito palavroso (com a voz off do narrador e o pensamento interior a pontuar diversas sequências) e não raras vezes serve de exaltação aos heróis de guerra soviéticos, a realização de Yuliya expande a qualidade do universo de base. E fá-lo, em quase todas as direcções.
Povest é, como os restantes filmes da trilogia, muito inventivo (afinal tratam-se de primeiras obras e a vontade de experimentação é grande). Desde logo, as diversas cenas de batalhas filmadas de forma muito realista quer nas explosões, na disposição dos corpos no espaço a avançar em coordenação, na profundidade de campo. Numa das cenas Ivan é atingido e a câmara rodeia, circularmente, o soldado até este perder os sentidos. Aqui Solintzeva cola a cena com uma sequência digna de Vampyr (Vampiro, 1932) de Carl Dreyer com o corpo de Ivan a ser levado numa barca pelo meio de um pântano, como numa cerimónia fúnebre panteísta. A apetência surreal da realizadora continua aqui em diversas sequências: uma mulher feita cativa durante a guerra volta para o seu marido que entretanto já morreu e é sob a forma de estátua que responde aos apelos de uma viúva desesperada. Noutra cena Ivan e Uliana dormem ao relento e falam com o seu próprio sonho. E importa não esquecer a montagem que une o extremo desespero à extrema beleza (num raccord dois idosos morrem de frio sobre um fundo de vermelhas rosas), a utilização dos sons realistas da guerra e das canções tradicionais de saudade, ou o cuidado nos planos da “gloriosa” actividade agrícola, sobretudo perto do desfecho do filme onde a contraposição à guerra é feita com a vontade de semear, de tratar dos campos, de recomeçar tudo outra vez, na “verdadeira vida” como diz Uliana na último diálogo do filme.
Contudo, se tivesse de escolher o grande filme de Yuliya Solntseva, ele seria Zacharovannaya Desna (The Enchanted Desna, 1964), o último volume da trilogia da Ucrânia, na qual a realizadora “regressa” à Ucrânia da infância de Dovzhenko. Antes de me referir às minhas razões, convém esclarecer que esta obra é provavelmente a responsável pela possibilidade que temos hoje de inquirir estes filmes finais, baseados em escritos do cineasta, como algo mais do que uma mera extensão, um apenso à filmografia de Dovzhenko, ainda que feitos por entreposta pessoa. O trajecto é o seguinte: Godard gostou do filme e declarou-o numa revista em 65, Jonathan Rosenbaum leu a entrevista, viu o filme e sobre ele escreveu na Film Comment em 72 (dedicando depois uma entrada à realizadora no “Cinema: A Critical Dictionary” de Richard Roud). Interessam pois aqui duas ideias que o crítico americano defendia, mesmo tendo visto uma cópia não legendada do filme: é que Zacharovannaya Desna era de uma tal inventividade que talvez só tivesse par, mesmo na obra de Dovzhenko, com o seu melhor filme, Zemlya. E depois, não era claro que Zacharovannaya pudesse ter sido filmado por Dovzhenko, sendo antes este a possibilidade de um sonho de Solntseva, criado a partir das vivências e reflexões do ex-marido.
Pegando nisto, importa então precisar a excelência do terceiro tomo desta trilogia. Yuliya, ao basear-se em escritos do marido sobre a sua infância, numa aldeia junto ao rio Desna, transforma The Enchanted Desna no volume mais autobiográfico dos três, mantendo mesmo o nome de Alexander ao homem que a partir do presente sombrio da sua Ucrânia devastada pela guerra recorda a sua infância em menino. Desta forma, ele é uma colecção ou catálogo de elementos que povoam o imaginário rural e idílico do realizador: os girassóis omnipresntes, comidos como fruta, os cavalos, os bois, os montes de palha, as figuras paternais com uma aura cristã, os terrenos agrícolas, os pássaros esvoaçantes, os frutos pendentes. Mas aceder ao seu imaginário não é a mesma coisa que aceder ao seu cinema. Numa das cenas Alenxander recorda que o seu tio Samiylo, ignorando as previsões de mau tempo do corvo da família, manejava a foice como um pintor o seu pincel. Boa metáfora para descrever o fulgor do trabalho de câmara e de composição da própria Yuliya Solntseva compondo em cada plano um quadro tão belo, quanto pertencente ao maravilhoso mundo da infância. E chego onde queria: a “câmara foice” da realizadora, muito mais próxima da agitação vertoviana (até de Eisenstein), do que do próprio cinema mais contido e emocional de Dovzhenko, encontra no universo infantil a chave mais permeável e apropriada ao seu estilo barroco.
Assim, em Zacharovannaya Desna — que faz um pouco lembrar o filme que Agnès Varda dedicou ao marido Jacques Demy também trabalhando a partir das suas memórias, Jacquot de Nantes (1991) — a câmara vira-se de pernas para o ar mimando o ponto de vista de uma personagem que espreita por entre as pernas, a lua é vermelha sangue, os cavalos falam ao anoitecer, a chuva brilha tanto quanto o amarelo dos girassóis, enfim, cumprindo a ideia do próprio Dovzhenko de que “não há nada pior do que um homem a quem a imaginação secou ou cuja recordação da infância nada traz de querido ou insólito”. Neste sentido, Solntseva trabalha sensorialmente, mostrando como Alexander lembrava o odor a tabaco do avô, o perfil do pai como uma estátua antiga vestida de andrajos, a tom da voz da mãe em seus praguejares constantes, as “quatro enfermeiras” que trataram de si – os seus quatro irmãos. E é também o tempo da descoberta do mal através das pequenas acções, dos pecados cristãos, das noções alternativas de espiritualidade. Tudo conflui para a memória de um tempo passado, de observação e imaginação, um poema de amor à infância assinada em forma de um poema de amor a um homem e ao cinema.
Em 1944, Solntseva co-realizou com o marido o documentário Bitva za nashu Sovetskuyu Ukrainu sobre a participação da Ucrânia na 2ª Guerra-Mundial. O filme tem duas partes, a primeira “Ukraine in Flames” e a segunda “Victory in Soviet Ukraine”. Do mesmo ano, e com o mesmo nome da primeira parte do documentário,”Ukraine in Flames”, Dovzhenko escreve, inspirado naquilo que testemunhara, um argumento ficcional sobre uma família ucraniana em período de invasão germânica, projecto esse que Estaline bloqueou. O quarto testemunho de amor pelo marido por parte de Solntseva é a realização mais de vinte anos depois desse argumento. O resultado é Nezabyvayemoye (The Unforgettable, 1967), um filme que, como Povest plamennykh let, retoma mais de perto as vivências da guerra. Nele conta-se a história de uma casal ucraniano, Petro e Tatiana, e seus filhos.
Mas se Povest adoptava um ponto de vista masculino, aqui é também a visão feminina que está em jogo. Solntseva, usando a cor e o preto e branco para alternar entre os estados de harmonia-paz e os de guerra-tensão, quer sobretudo explicar o drama das mulheres que ora eram violadas e usadas como escravas pelos soldados alemães, ora levadas para a Alemanha para servirem em bordeis, ou simplesmente mortas nos campos de concentração. Olesya (a belíssima actriz Irina Korotkova), filha de Petro, tem com a amiga Kristina esse mesmo destino. Mas antes pede a um jovem ucraniano, Vasil (Yuri Fisenko) para passar a noite com ele. E é uma das “primeiras vezes” no cinema mais magistralmente filmadas na história. Os dois jovens amantes temerosos, numa sequência muito alva, entre a melodia harmoniosa e os ruídos da guerra lá fora. Vasil refresca-se, comem sopa e pão à mesa e Olesya faz a cama, vai buscar a roupa apropriada e espalha flores no quarto. A câmara de Yuliya, que seguira de perto as acções da jovem, destancia-se agora para a vermos deitar-se na cama e chamar pelo rapaz e lhe perguntar finalmente o nome. Depois a câmara volta a aproximar-se lentamente dois dois, envolvendo-nos progressivamente na crescente intimidade que vai nascendo entre o par. Nenhum deles esquecerá aquela noite, as palavras o toque da pele, os beijos e o cheiro: a menta, o dela, e de folhas de pepino, o dele.
O par voltará a reencontra-se no fim, apesar da história ilustrar aquilo que Olesya dirá à sua companheira Kristina a caminho dos campos: “nós somos mulheres, temos de suportar tudo”. Outro momento fundamental é quando as tropas alemães descobrem que a mãe de Olesya abriga na sua casa dois pilotos soviéticos, tentando depois fazê-los passar por seus filhos para os salvar. Condenada à forca, Tatiana exige que o soldado inimigo não conspurque com as suas mãos a corda que lhe ditará a morte. Num desolado plano em contraluz a mulher laça o próprio pescoço antes de morrer. E nesse momento derradeiro ela enforca-se destapando o sol que faz explodir a claridade no branco e do negro no plano.
O quinto e último filme que Solntseva realiza a partir dos escritos, das memórias (lá em cima comecei por escrever “da ausência”) de Aleksandr Dovzhenko é Zolotye vorota (The Golden Gates, 1969). Se é impossível separar o seu cinema de uma ideia de homenagem, este filme é aquele que mais se aproxima daquilo que temos em mente por essa expressão. Trata-se de um documentário que acompanha a obra, o pensamento, as angústias, os sonhos do próprio realizador, seleccionando Solntseva pedaços dos filmes mais importantes do marido. Talvez por ter esta estrutura, diria mais convencional, Zolotye é de longe o mais anónimo filme da realizadora.
Contudo, nele pontuam momentos bastante originais. Desde logo, a realizadora insere duas sequências de projectos não realizados do marido, no campo da comédia. “Comedy is the unrealised dream of my life”, escreveu Dovzhenko, assim como admite que “Czar”, um desses projectos, era o seu melhor argumento. A partir destes trechos não podemos mais do que indagar o que teria sido esse desejo de ligeireza expresso pelo autor. Outro momento seleccionado é a narração na primeira pessoa que Dovzhenko faz de um sonho que teve no qual Deus descia à terra e ordenava aos anjos que lhe retirassem a pele e a atirassem ao fogo. Depois sentia-se puro, abraçando antes a invisibilidade da música. Nesta cena Solntseva percebe que o despojamento que sentiu o marido corrensponde a uma evasão da terra e por isso filma os “seus girassóis” que agora ardem. Nesse despojamento Dovzhenko pede apenas mais 10 anos de lucidez e saúde física enquanto mostra a sua paixão pelo rio Desná omipresente nas suas memorias e símbolo desse caminho em direcção a uma fluidez final e total. Essa fluidez ganhara expressão no argumento “poema ao mar”, que Dovzhenko escreveu no final da sua vida e com que Solntseva termina este seu “poema cinematográfico” em cinco partes dedicado ao marido. O fim relaciona-se com o início, tal como a água que circula infinitamente.
Para concluir cito a frase mais conhecida, atribuída a Solntseva, que morreu com 89 anos: “If Dovzhenko had lived, I would never have become a director; all that I do I consider as defense and illustration of Dovzhenko”. Se assim ela encarou os seus filmes, o certo é que importava continuar este texto, expandi-lo, no sentido de perceber como é que este longo poema que esta realizadora deixou na história do cinema inspirou directa ou indirectamente tantos cineastas. Desde logo, podíamos começar a pensar nos mosaicos mais ou menos românticos de Emir Kusturica, na frieza do tratamento da guerra de outra cineasta como Kathryn Bigelow, na “loucura” de Vera Chytilová ou mesmo na relação formalista do tratamento da natureza do demasiado citado Andrei Tarkovsky. Mas isto já são pois outros capítulos a escrever nos sempre revoltos rios da história do cinema.