Zhao Liang é um dos mais aclamados documentaristas chineses. Zui yu fa (Crime e Castigo, 2007) chamou a atenção em festivais internacionais por se tratar de um raro filme que mostra por dentro o funcionamento de forças da autoridade chinesas, revelando um acesso surpreendente. A Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema passa-o quinta, dia 19 de Janeiro, num ciclo programado pelo cineasta catalão Albert Serra.
Numa terra esquecida na província chinesa de Liaoning (de onde o realizador é originário), fronteiriça com a Coreia do Norte, um grupo de homens tenta manter a “lei e a ordem” sem grande êxito. A câmara de Zhao Liang – realizador, director de fotografia e montador – acompanha os agentes da Polícia Armada do Povo, uma força paramilitar, na sua interacção com os cidadãos locais. No filme, as tentativas de desempenhar o seu papel proporcionam momentos de absurdo, abuso, mas também uma ingenuidade com um quê de patético. Alguns dos polícias são jovens recrutas sem grande familiaridade com os meandros da profissão e com ainda menos capacidade para lidar com os locais.
Num caso em que são chamados a intervir, um homem com perturbações mentais liga a reportar um cadáver que nada mais é que um monte de roupa de cama. Num outro, um alegado carteirista é interrogado, repetidamente e com recurso a violência física, para revelar os seus cúmplices, mas o homem é surdo-mudo e não consegue responder. Em dois outros casos, os polícias deparam-se com os expedientes usados por alguns para enganar a pobreza local: Um velho é sujeito a um longo interrogatório por não ter licenças para apanhar e revender lixo; e um grupo de homens confessa, após umas sovas, que tinha apanhado lenha ilegalmente, para venda, para poder dar presentes aos filhos num dia especial.
Os gestos e as palavras são muito repetitivos, embora Zhao alterne os planos, ora confrontando ora unindo na mesma miséria e monotonia os que envergam uniforme e os que não. Até os cães que pontualmente surgem têm estranhos paralelos com as pessoas. Há uma ideia de quotidiano que está mais presente ali do que nos reality shows e séries sobre polícias que por aí andam. Não há glamour nem sentido de justiça restaurada.
A maioria das cenas desenrola-se em locais fechados e indistintos, onde os rostos, por vezes em grande plano, revelam cansaço, resignação, mas também, por vezes, vislumbres de rebeldia e resistência. E, no entanto, há planos exteriores de grande força, de paisagens enormes e inóspitas, mas de beleza selvagem, do Nordeste chinês.
Não há heróis aqui, apenas gente que está lá porque sim e faz o que tem de fazer – seja quebrar ou fazer cumprir a lei – para sobreviver em circunstâncias difíceis.
Não há heróis aqui, apenas gente que está lá porque sim e faz o que tem de fazer – seja quebrar ou fazer cumprir a lei – para sobreviver em circunstâncias difíceis. Zhao Liang sempre se interessou por gente à margem e em Zao yu fa isso inclui os próprios polícias. Nos casos do filme, cujos desfechos são normalmente dados em intertítulos, aqueles revelam uma por vezes cómica incompetência, embora as cenas perto do final, com os que serão desmobilizados, têm também uma peculiar tristeza.
Para alguns será tentador ver em Zui yu fa uma forma de denunciar do funcionamento de um sistema corrupto num regime autoritário. Mais interessante será reflectir sobre os paralelos transnacionais do que Zhao ali mostra e interrogarmo-nos até que ponto o que ali vemos também acontece em zonas isoladas e empobrecidas pelo mundo fora, incluindo na Europa.
Zhao Liang continuou a sua poderosa meditação cinematográfica sobre humanidade e justiça em Shangfang (Petição, 2009). Centrado numa desesperada comunidade de peticionários de toda a China que se reúne em Pequim para reclamar do governo central a justiça negada pelas autoridades locais lhe negam, o filme venceu vários prémios, incluindo o Grande Prémio Cidade de Lisboa para melhor longa-metragem no Doclisboa 2009. Surpreendentemente, dado o tom extremamente incisivo de Shangfang, a sua longa seguinte, Zai yiqi (Together, 2010) foi comissionado pelo Ministério da Saúde chinês, centrado em famílias com VIH/SIDA. Criticado por ter passado de voz incómoda a cooperante com o governo, Zhao defendeu-se dizendo que o objectivo é que seus filmes sejam vistos (nem Zui yu fa nem Shangfang foram distribuídos no circuito comercial chinês à altura), um argumento semelhante ao de outros autores, como Jia Zhangke. Seja como for, o mais recente de Zhao, Beixi moshou (Behemoth, 2015), recuperou a independência anterior, olhando para os efeitos ambientais e humanos das explorações de carvão e ferro na China. Zhao Liang faz parte de uma tradição estabelecida de intelectuais chineses que olham as faces invisíveis do seu país para, com sentido crítico, humanismo e arte, denunciar o que acreditam que deve ser exposto e mudado.
Zui yu fa passa na Cinemateca Portuguesa dia 19 de Janeiro, às 18h30.