Chung Hing sam lam (Chungking Express, 1994) é um filme-caleidoscópio, onde a câmara gira à volta das personagens que rodopiam sobre si mesmas e em torno de breves tangentes entre elas. Um filme hiperactivo, é enamorado pela ideia de amores e desamores efémeros, e pela ideia do cinema como prova de amor e rendição às suas personagens. Este foi o filme que catapultou o nome de Wong Kar-wai para junto do público ocidental, em parte graças à distribuição do filme pela mão de Quentin Tarantino na América. É fácil perceber o fascínio de Tarantino pelo filme: o mosaico de histórias interligadas, os diálogos ancorados em absurdidades do quotidiano, e a utilização da música para criar momentos-pausa dentro do filme. Através de uma miríade de recursos estilísticos, o filme é também um exercício de imaginação, uma redefinição de coolness – mas é o romantismo com que o filme aborda o desamparo sentimental destas historietas, e a forma como se coloca ao lado das personagens, que o ampliam para algo sublime.
O filme é dividido a meio por duas histórias, cada uma sobre um par de personagens à deriva, que a certo ponto encontram-se a menos de 1 centímetro sem o saber. Esse encosto acidental entre dois pares específicos de almas perdidas numa cidade de rostos anónimos é o ponto de partida do filme. Em cada uma das histórias há um polícia a sofrer das dores de uma recente separação amorosa e como esse vazio contagia a sua ligação ao que o rodeia, como variações da mesma história. Na primeira parte, conhecemos o polícia 223, de nome He Qiwu, cuja namorada May acabou com ele no dia das mentiras, a 1 de Abril. O seu aniversário é dali a um mês, a 1 de Maio, e He Qiwu decide esperar até a esse dia para decidir se desiste desse amor, como que estabelecendo uma data de validade para essa relação. Começa então um ritual de comprar todos os dias no supermercado da esquina uma lata de ananás com o prazo de validade de 1 de Maio, adiando o inevitável. Ao mesmo tempo, acompanhamos as peripécias de uma misteriosa mulher que usa como disfarce uma peruca loura e óculos de sol. Essa femme-fatale emprestada dos filmes noir percorre as ruas frenéticas de Hong Kong, entre negócios obscuros com homens estranhos, numa acelerada aventura pelo submundo de uma cidade em ebulição. Chegados ao dia fatídico para He Qiwu, este encontra-se por acaso num bar ao fim da noite com a misteriosa mulher, e o filme suspende o seu ritmo eléctrico para pausar sobre as possibilidades improváveis deste reencontro, como se o próprio filme duvidasse da direcção a seguir.
Na segunda história, apesar da presença de outro polícia em processo de fim de relação, o centro emocional do filme desloca-se para o lado feminino, Faye (uma inesquecível Faye Wong). Uma nova empregada numa banca de comida, tímida excepto no seu amor pela música pop, acompanha em segundo plano o desenrolar das interacções entre o polícia 663 (um inesquecível Tony Leung) e o dono da banca, através das quais vai sabendo do estado da relação do polícia com a sua namorada, uma hospedeira de bordo. Um pequeno aparte: Wong Kar-wai emparelha em cada parte um actor mais experiente e um novato; na primeira parte, Takeshi Kaneshiro apenas no seu segundo filme é o polícia, e Brigitte Lin, com quase 100 filmes no currículo, a mulher; na segunda história, Tony Leung, já um reconhecido e multi-premiado actor na altura, é o polícia, e Faye Wong, mais conhecida como uma cantora pop e apenas no seu segundo papel, interpreta a personagem com o mesmo nome – aliás, Chung Hing sam lam foi filmado de forma cronológica e podemos ver como Faye, tal como a sua personagem, demora a entrar no filme. Certo dia, antes de partir, essa namorada deixa uma carta na banca para entregar ao polícia. Ao abrir a carta, Faye encontra as chaves da casa do 663. Faye começa então a visitar secretamente a casa do polícia, re-arranjando detalhes da casa sem que este aparente aperceber-se dessa intromissão. O namoro à distância através da casa é reforçada pelas visitas ocasionais do polícia à banca de comida, e por encontros acidentais entre os dois pelas ruas estreitas de Hong Kong – cada um mantém a sua distância, mesmo que seja óbvio que secretamente estejam a apaixonar-se.
Além destas duas duplas de personagens que ocupam a acção, existem outras duas “personagens” indissociáveis ao filme: a própria cidade de Hong Kong, e o movimento irrequieto da câmara. Hong Kong surge como uma parte integral da história, uma metrópole sempre em agitação, com as suas ruelas e becos escuros, ora debaixo de uma chuva nebulosa, ora das radiantes luzes nocturnas. O prazo de validade que assombra He Qiwu é também uma referência à própria cidade, na altura de Chung Hing sam lam a três anos de passar para o domínio chinês. Este é assim também um adeus elegíaco ao espírito da cidade, perante o medo de perder a sua identidade. Os cenários são sempre exíguos, sem grande espaço para fugir, mas ao invés de isso incutir um sentimento claustrofóbico, respira-se liberdade e possibilidades naquele caos funcional. Isso resulta em parte dos movimentos sinuosos da câmara (do cinematógrafo Christopher Doyle), que parece querer libertar-se das amarras convencionais em sequências vertiginosas até a imagem ficar parcialmente desfocada, como numa espécie de câmara lenta alucinada – as comparações com a irreverência dos primeiros filmes da década de 60 de Godard, quer no estilo visual, quer no romantismo idealizado com que tentar capturar a efemeridade de vidas em permutação não são desmedidas – é o romance filmado como um crime.
Mesmo que Wong Kar-wai tenha abandonado esta abordagem estilística, dando preferência a meticulosas orquestrações visuais como em Faa yeung nin wa (Disponível Para Amar, 2000) ou 2046 (2004), Chung Hing sam lam é um testemunho de um cinema ainda nómada, à procura de afirmar-se, e também de uma hiperactividade imaginativa delirante. Aqui estamos claramente no domínio do caos, influenciado pela cidade de Hong Kong, mesmo na organização do filme, onde surgem pensamentos livres, como um improviso de sobreposição de ideias. Essa inventividade é manifestada compulsivamente em pequenos devaneios dentro do filme: a ilustração da solução de He Qiwu para lidar com o desgosto, de fazer jogging porque assim é mais difícil chorar, porque o corpo perde água; as conversas do polícia 663 com diferentes objectos quando chega a casa, como forma de lidar com a solidão; as duas cenas em que uma das personagens de cada par acaba por adormecer na presença da outra, sinal de conforto com a melancolia mas também com a não-resolução sentimental. O fascínio de Faye com o ocidente, presente na banda-sonora que a acompanha na banca de comida, e em particular California Dreamin’ (“I’d be safe and warm if I was in L.A”), representa a vontade de fugir, de encontrar um mundo melhor para si, de sonhar, mesmo que temporariamente – esse elogio constante a uma melancolia por outras realidades é um papel também reservado ao cinema, e nisso Chung Hing sam lam é capaz de contagiar qualquer um.
Chung Hing sam lam (Chungking Express, 1994) de Wong Kar-wai será exibido sábado dia 11 de Fevereiro pelo Cineclube da Maia, na sala de Cinema do Centro Comercial Venepor às 21h30.