O Córtex — Festival de Curtas-Metragens de Sintra decorre de dia 16 a 19 de Fevereiro no Centro Cultural Olga Cadaval. Como habitual um dos seus pontos fortes é a competição nacional que acolhe várias das curtas metragens mais sonantes do passado ano, incluindo filmes de Salomé Lamas, Leonor Teles, Pedro Peralta, Filipe Abranches, Luísa Sequeira, Simão Cayatte, André Santos e Marco Leão, e ao mesmo tempo aceitando filmes de muito jovens realizadores, como Miguel Tavares, Afonso Mota ou João Tenera. No entanto o que me chama a atenção é a sessão de abertura que este ano é dedicada à realizadora neozelandesa Jane Campion. É às suas primeiras quatro curtas metragens que se dedicam as próximas linhas.
Em 1986 a jovem Jane Campion de 32 anos (depois de um curso de antropologia e outro de belas artes em pintura, e depois de três anos na Australian Film, Television and Radio School) mostrou, na secção Un certain regard de Cannes duas das suas curtas metragens de estudo, Passionless Moments (1983) co-realizado com Gerard Lee e A Girl’s Own Story (1984), e na competição de curtas metragens, An Exercise in Discipline – Peel (1982) — feitas ao longo dos três anos do curso. Era a primeira vez que os seus filmes ganhavam uma visibilidade internacional e de facto a realizadora arrecadaria a Palma de Ouro com Peel (que havia sido mal recebido pelo professores, no que já vem sendo um hábito na história do cinema desde a implementação das primeiras escolas, vide Jim Jarmusch). Às três referidas curtas junta-se After Hours (1984), realizado já fora da escola, por convite da Women’s Film Unit — curta de que Campion não gosta particularmente por ser uma que, pela natureza de encomenda, deveria ser abertamente feminista, algo que ia contra a sua “consciência artística” que sempre recusou o panfleto. “I wasn’t comfortable because I don’t like films that say how one should ou shouldn’t behave. I think that the world is more complicated than that. I prefer watching people, studying their behavior without blaming them”.
No que já vem sendo um hábito, o Córtex vem exibindo na sua sessão de abertura algumas das primeiras curtas de realizadores que atingiram mais tarde grande reconhecimento com as suas longas metragens (desde o americano António Campos ao luso César Monteiro, passando pela trilogia de estreia de Terrence Davies o ano passado). Este olhar sobre aqueles que são, na maioria dos casos, filmes de escola, permite encontrar os cineastas agora consagrados numa fase em que exploravam linguagens e procuravam ainda encontrar uma voz. Nesse sentido é, no mínimo, curioso descobrir certos excessos, certas aventuras que não deixaram lastro, certas inversões formais e estéticas, enfim, permite perspectivar o trabalho de um realizador no sentido em que ajuda a traçar um percurso contínuo que os levou aos filmes-chave da sua obra.
Os seus primeiros filmes são objectos conscientes da pequenez de certos gestos mundanos, apaixonados pela beleza das coisas simples do quotidiano.
No entanto corre-se o risco de fazer este percurso com duas ideias-feitas em mente: (1) a ideia da curta metragem escolar como cartão postal, isto é, como algo que anuncia outra coisa, que só serve e só é válido na relação com o que veio depois; (2) a ideia da curta metragem como território de aprendizagem, como universo de crescimento, e como tal, cujo interesse é apenas o da passagem para as longas. Ora, as quatro primeiras curtas metragens de Jane Campion que serão mostradas são particularmente reveladoras das possibilidades do formato curto e não testam o terreno do que viria depois, pelo menos não de forma evidente. São objectos conscientes da pequenez de certos gestos mundanos, apaixonados pela beleza das coisas simples do quotidiano (principalmente os dois primeiros) e que se ficam pelo olhar doce que lançam sobre esses momentos honestos. Aliás, é a própria Jane Campion que afirma que “one shouldn’t see short films as a training ground for features… short films are often maligned. They are a distinct art form in themselves”.
No entanto, esses momentos contemplativos não deixam de revelar, por vezes, uma certa ironia (nunca condescendente) que revela um olhar muito perspicaz, sempre atento a certos hábitos automáticos, a certas obsessões miúdinhas que cada um traz consigo. E, por outro lado, esses momentos mostram, uma e outra vez, um desejo por explorar as sexualidades borbulhantes das suas personagens (pre-)adolescentes. Esse é possivelmente o tema recorrente destes quatro filmes: as figuras femininas a braços com os primeiros encontros (e choques) sexuais, descobrindo os seus corpos e os dos outros, e o que ambos podem fazer em conjunto. A forma, quase sempre cândida, como se apresenta isto (mesmo que em A Girl’s Own Story se fale de incesto e em After Hours de abuso) é reveladora do modo como Campion encara a representação da sexualidade feminina no seu universo fílmico, naturalmente.
Mas talvez aquilo que marca de forma mais evidente os quatro filmes de estreia de Campion são: (1) a sua noção de ritmo, cuja montagem envereda muitas vezes por motivos musicais (acompanhando frequentemente sons repetitivos, como um laranja sendo atirada a um vidro, uns tapetes a serem sacudidos, o matraquear das máquinas de escrever ou os estalidos de um aquecedor a óleo), numa frescura mais ou menos imprevisível e sempre alegre na forma como se deixa levar pelo prazer da experimentação e; (2) a capacidade de construir imagens de enorme poder simbólico (e de extraordinária composição) que se fixam imediatamente na retina do espectador (os frangos no frigorífico com o nome de cada uma das funcionárias do escritório, um dedo que se enfia numa laranja descascada, uma divisão cheia de calças de ganga espalhadas, meninas trocando beijos envergando máscaras dos The Beatles).
O olhar juvenil de Campion procurava explorar, mais do que cada um dos seus personagens, as relações que se estabeleciam entre eles.
Em particular, um dos planos recorrentes nestes filmes é aquele em que duas (ou mais) personagens se apresentam no enquadramento a diferentes profundidades mas sempre em foco, uma em grande plano e a(s) outra(s) em segundo. Esse é talvez o traço mais marcante deste conjunto de curtas no modo como sumariza, de modo cristalino, o olhar juvenil de Campion que procurava explorar, mais do que cada um dos seus personagens, as relações que se estabeleciam entre eles. Em particular as construções familiares (que em Peel são literalizadas por um triângulo no genérico inicial) que se edificam em complexas tramas de ressentimento (de forma mais brilhante em A Girl’s Own Story). Uma das tiradas de Passionless Moments é aliás uma espécie de auto-análise desta opção recorrente. Intitulado, nem de propósito, Focal Lengths, apresenta-nos um casal do referido modo, jogando com a profundidade de campo, e o narrador explica que eles não se falam porque um traiu o outro, o traidor estica o polegar, fecha um dos olhos e observa, porque será que não consigo focar duas coisas ao mesmo tempo, interroga-se, enquanto Campion nos oferece uma subjectiva que foca e desfoca entre o polegar e uma coleira de espinho. O amante indeciso não se consegue focar num só, mas a jovem Campion consegue. Esse é o dom do seu olhar.
An Exercise in Discipline – Peel, Passionless Moments, A Girl’s Own Story e After Hours serão exibidos na sessão de abertura do Córtex — Festival de Curtas-Metragens de Sintra dia 16 às 21h30 no Centro Cultural Olga Cadaval.