Já escrevi sobre actores-realizadores a propósito da exibição televisiva de The Alamo (O Álamo, 1960), filme de John Wayne. Mas a passagem recente de Colors (Los Angeles a Ferro e Fogo, 1988) e Paradise Alley (O Beco do Paraíso, 1978) nos Canais TVCine obriga-me a voltar ao tema. Como acontece com muitos actores que começaram a realizar filmes, Dennis Hopper e Sylvester Stallone sofreram nas suas carreiras um pernicioso fenómeno de redução. Hopper realizou Easy Rider (1969) e interpretou alguns dos vilões mais infames da Sétima Arte, em Blue Velvet (Veludo Azul, 1986) e Speed (Speed – Perigo a Alta Velocidade, 1994). E dificilmente o descolaram destes trabalhos. Stallone está tão próximo das suas personagens mais célebres, sobretudo Rocky Balboa e John Rambo, que pode falar-se de uma perfeita confusão identitária, apriorística, entre ele e elas. O que nem sempre lhe foi inteiramente benéfico. Parece-me que a dimensão (hiper) popular destes actores não tem ajudado à reavaliação crítica do seu trabalho enquanto “autores sérios”. Contudo, Hopper realizou alguns dos filmes mais radicais dos anos 70 e 80 – e descobri-los hoje é constatar que nem tudo começou e acabou em Easy Rider. Colors encerrou o período de maior esplendor criativo de Dennis Hopper, o realizador, período esse que teve como momento mais alto The Last Movie (1971), o seu filme mais louco e genial que foi incompreendido na altura da sua estreia. Paradise Alley marcou o início da aventura de Stallone no mundo da realização, embalado que estava pelo sucesso de Rocky (1976). Ver estes filmes hoje permite desfazer equívocos, afastar preconceitos e dar azo a uma reavaliação séria do que representam estes actores/autores no contexto maior da criação cinematográfica.
Colors é uma espécie de antídoto para a fórmula do buddy cop movie que tanto vingou nos anos 80, com as sagas cómicas de 48 Hrs. (48 Horas, 1982) e Lethal Weapon (Arma Mortífera, 1987). A relação entre os dois colegas polícias é dura. Um fosso – geracional? – separa a personagem interpretada por Robert Duvall, um dos mais experientes polícias da cidade de Los Angeles, da personagem do novato encarnada por Sean Penn. No primeiro – da primeira à última ruga do rosto – estão inscritos demasiados anos de convívio com gangues. Ele conhece como a palma da mão a lei da rua, os tempos e a extensão da rede do tráfico de droga e da armas. E está ciente de que prender o pequeno criminoso será uma batalha ganha naquela hora, mas um adiamento da vitória final na grande guerra contra o medo e a violência. O polícia novato tem, contudo, pressa em mostrar serviço e de atingir aquilo que para o mais velho é apenas uma miragem dentro do seu tempo de vida: a glória da imposição da “paz e ordem” num território dividido entre as várias “cores” do crime organizado. Os dois polícias são, então, duas forças em permanente choque, em puxa-empurra constante. À volta deles agiganta-se uma cidade tomada por uma guerra diária em que se disputa até à morte cada quinhão do território.
Colors é uma espécie de remake oficioso de The New Centurions (Os Centuriões do Século XX, 1972), a obra-prima de Richard Fleisher que pisa as mesmas questões e expõe com semelhante pungência a vida da polícia numa cidade empestada pelo crime – já invoquei este filme de Fleischer por duas vezes, aqui e aqui. O filme de Hopper assenta os seus pilares na figura desse actor monumental – e também realizador a reavaliar – chamado Robert Duvall. É de si que o filme nasce e é na sua direcção que o filme tende. O rookie Penn existe neste filme para servir de sublinhado ao heroísmo cansado dessa figura tutelar que é – a personagem e o actor – Robert Duvall. Todo o filme desenha uma espiral que atinge a sua altura máxima, o seu “ponto patético” sublime, perto do fim. O veterano polícia diz que só vai recuperar o fôlego, que quer ver a mulher, que só precisa de descansar, que quer ver a mulher, que daqui a nada está pronto para seguir, que quer ver a mulher… Estamos fartos de ver situações-limite no cinema americano, mas acho que raramente vi um filme – um actor, na realidade – transmitir com tanta alma a descida – que é uma subida, como mostra a câmara que se eleva numa “visão de Deus” – para a morte ou, mais precisamente, a pressa de continuar a viver e a batalha perdida por “mais um fôlego”.
Os dois filmes da filmografia de Hopper imediatamente anteriores a Colors – e imediatamente posteriores ao icónico Easy Rider – são pérolas que permanecem por descobrir. The Last Movie é só o segundo filme de Hopper e foi realizado graças ao sucesso que Easy Rider trouxe a Dennis Hopper. A força do título indica o alcance do que é proposto: acabar com o cinema, mas acabar com estrondo, isto é, pondo o cinema – na sua linguagem e rituais próprios – a devorar-se a si mesmo. Algures entre Serguei M. Eisenstein, Glauber Rocha e Alejandro Jodorowsky (que, diz-se, terá ajudado na montagem do filme), The Last Movie é um filme em permanente desmultiplicação. Ele agrega a história de uma rodagem acidentada de um western passado no Peru com uma versão – ia escrever “visão” – enlouquecida de The Treasure of Sierra Madre (O Tesouro de Sierra Madre, 1948) cruzada ainda com um “filme dentro do filme” que é um “filme depois de um filme”. Os nativos, impressionados com os rituais e parafernália técnica desse western rodado por nada mais nada menos do que Samuel Fuller, começam a imitar os homens brancos: transformam paus em câmaras e perches, e um dos aldeões assume a posição de metteur en scène para, logo ali, dar ordens e gritar “acção!” A acção acontece, sem artifícios, mas as câmaras de faz-de-conta, naturalmente, não registam nada. Há gritos, tiros, mortes, enfim, usando um termo caro a Fuller, muita “emoção”. Só que aqui tudo acontece de facto. Menos a efectividade do registo fílmico. O cinema está, portanto, barbaramente à solta na realidade. Acontecendo.
Encontramos hoje em Paradise Alley essa perdida e muito necessária confiança no mundo, esse gesto de tornar como principal narrativa do filme a afirmação, sem cinismos ou adornos, do amor como fortaleza moral.
A única coisa perturbantemente fake em The Last Movie é o dispositivo cinematográfico. Desta reencenação primitiva sobressai o ritual do cinema – e o seu absurdo nunca foi tão acidamente capturado. Por entre as frinchas de um metacinema, Hopper – que no filme é um stuntman, portanto, já simulacro de um qualquer movimento – giza uma das mais loucas e aventureiras sátiras materialistas não sobre, mas frontalmente contra o cinema – ou contra uma certa ideia fechada, estanque e caucionária do cinema americano. Sion Sono realizou qualquer coisa aproximada em Jigoku de naze warui (Why Don’t You Play in Hell?, 2013), filme-delírio em que o desejo de fazer cinema acaba tornado no principal motor de um massacre aniquilador de tudo e de todos, inclusivamente do próprio filme. Hopper e Sono – quem já os imaginou juntos numa frase? – assinam, nestes filmes, a mais tonitruante ode à dimensão absurda e alucinatória do cinema. Para Hopper a coisa é séria: o cinema aparece como um “Eldorado” simultaneamente decadente, bárbaro e fascinante – também foi a “puta sagrada” de Fassbinder, recordam-se?
The Last Movie não é um último filme, mas é um filme último. Ainda assim, é na filmografia de Hopper somente uma segunda obra. Como seguir em frente depois disto, depois deste “que se lixe, vou acabar com tudo”? A resposta demorou a surgir. Volvidos 9 anos sobre “o trauma” desse tal “filme último”, saiu cá para fora Out of the Blue (Angústia de Viver, 1980), obra que mantém o mesmo registo agreste e que se deixa devorar por um igualmente violento grito vindo de dentro do e contra o mundo das personagens. Neste caso, Hopper centra a atenção na história de uma rapariga dividida entre a adoração ao ídolo morto Elvis Presley e o sonho da fuga a uma vida de maus tratos e negligência que lhe reservaram pai e mãe. É um filme caído, prostrado, derrotado. Dificilmente – nem mesmo out of the blue – Hopper podia levantar-se intacto depois daquele last movie. Em Colors o gesto é de elevação, uma subida aos céus, mas sem pingo de transcendência. Morrer como interrupção da vida, fim desse cansaço – dessa angústia… – que é viver. Viver como um polícia? Também.
Era bom podermos ver, pelo menos, estes três filmes – The Last Movie, Out of the Blue e Colors – num ciclo que propusesse, enfim, um olhar lavado sobre a obra fulgurante de Dennis Hopper enquanto autor. Podia dizer o mesmo sobre Stallone? Sim, mas de outro modo. Até porque Stallone é aceite como um “autor sério” sensivelmente desde que foi só o quarto consagrado com o prémio Glory to the Filmmaker no Festival de Veneza de 2009, seguindo-se a Takeshi Kitano, Abbas Kiarostami e Agnès Varda. Apesar deste reconhecimento, Paradise Alley, a sua primeira obra como realizador e provavelmente a sua obra mais “sua”, está longe de ser um filme muito considerado. Descobri-lo hoje é perceber que este é um excelente manual para o que veio a ser o Stallone realizador, dando pistas que nos permitem antecipar uma obra de comovente honestidade como é Rocky Balboa (2006) ou entender o registo franco e desadornado de Rambo (John Rambo, 2008). Sempre que cito estes filmes sinto que Stallone diz sem de facto o dizer antes do título “simplesmente”: “simplesmente, Rambo”, “simplesmente, Balboa” – é a uma terna e doce casa que o cinema de Stallone quase sempre aspira. E ele oscila entre o músculo e o coração, o soco e as lágrimas, o tiro e o grito em desespero: “I’m sensitive!”, vocifera a certa altura o protagonista de coração destroçado de Paradise Alley, filme que é a cara – ou o corpo todo – de Stallone ou não teria este realizado, escrito e protagonizado esta obra produzida no rescaldo do sucesso planetário do primeiro Rocky.
Paradise Alley é filho do cinema clássico, especialmente de Raoul Walsh. Algures entre The Bowery (O Terror dos Cabarets, 1933) e Gentleman Jim (O Ídolo do Público, 1942), esta é uma história profundamente urbana sobre homens que encontram no ringue a oportunidade de saírem da miséria. Se em Walsh a oportunidade é o boxe, no filme de Stallone é o “vale-tudo” do ainda incipiente entretenimento do wrestling. As lutas acontecem clandestinamente nos recantos mais pestíferos da Nova Iorque dos anos 40. Três irmãos italo-americanos anseiam pelo dia em que deixem de viver como ratos no Hell’s Kitchen. Stallone interpreta o primogénito, mas ele será “o homem do meio” nesta história: entre o irmão mais novo, o matulão de coração mole que tem queda para a luta, e o irmão do meio, veterano de guerra com perna manca que abomina a profissão que arranjou como cangalheiro. A personagem de Stallone é o pivô que liga a bonomia passiva do brutamontes à amargura cínica do estropiado. Ele circula entre um e outro, sendo, portanto, símbolo do grande conflito no filme: a desunião entre irmãos, num mundo onde, como diz o próprio Stallone a certa altura, tudo é “falso”, onde ninguém parece sentir nada por ninguém, verdadeiramente.
É interessante o modo como o desenlace deste filme dialoga subterraneamente com a última imagem de outra obra escrita por Stallone, Rocky. O famoso freeze frame final é replicado em Paradise Alley para simbolizar não a vitória numa luta, não o dinheiro e fama alcançados, mas o restaurado laço da irmandade. É isso que torna Stallone num clássico puro: esta inabalável fé – palavra muito usada no filme – nos sentimentos. Há uma confiança no mundo das personagens e na sua acção heróica que vem, de facto, dos grandes clássicos – falei de Walsh, mas podia falar de Vidor, Ford, Wellman, Chaplin, entre outros. Stallone aparece à época do lançamento do filme como um anacronismo ou então talvez tenha sido exactamente o contrário: como a sequência inicial enuncia, ele ofereceu-se à sua primeira obra de realizador como quem dá um “salto no vazio” ou, usando a expressão mais feliz em inglês, “a leap of faith”.
Como The Last Movie, Paradise Alley foi feito no seguimento de um estrondoso hit do seu realizador-actor. E como esse filme de Hopper, o de Stallone foi igualmente esmagado pelo público e pela generalidade da crítica – uma rica excepção é este texto de Leos Carax escrito para os Cahiers du cinéma. Contudo, e terminamos aqui a comparação com o segundo e arrasadoramente moderno filme de Hopper, encontramos hoje em Paradise Alley essa perdida e muito necessária confiança no mundo, esse gesto de tornar como principal narrativa do filme a afirmação, sem cinismos ou adornos, do amor como fortaleza moral. Tenho a opinião – chamem-me sensível – de que estamos todos muito precisados disto.