Da morte de Luis XIV (ainda) nada sabemos, mas da sua vida, e segundo o fabuloso La prise de pouvoir par Louis XIV (A Tomada do Poder por Luis XIV, 1966), ficamos a saber que era uma maravilha. Caçadas, aventuras sexuais debaixo de árvores com mulheres que não eram a sua esposa, comida atrás de comida, riqueza absoluta, um poder que lhe permitia destituir e prender corruptos ministros e corruptos aspirantes a ministros, roupas das mais caras, uma liberdade de consciência que o autorizava a impedir a entrada da própria mãe no corredor do poder, e por aí e mais além. Bons tempos, em que o poder concentrado numa só pessoa não tinha de se haver, semana sim, semana não, com marchas e conferências de imprensa de actores “liberais” a protestar contra “estas poucas vergonhas, pá!”.
Em 1962, ainda estavam vivos e a trabalhar muitos cineastas já transfigurados em figuras da “história do cinema”. Esses mesmos que os tinham transformado em instituições, tinham iniciado pouco tempo antes um movimento cinematográfico que queria deixar bem claro que as regras cinematográficas poderiam ser outras, e não as que perduravam desde 1911, numa aparente “revitalização” do cinema. E foi precisamente nesse ano, e nesta conjuntura, que numa livraria romana, Roberto Rossellini, então com cinquenta e seis anos, proclamou, sem meias medidas, o seguinte: “o cinema está morto”. Portanto, se naquela era, se mesmo com Antonionis, Fords, Ozus (ainda…) Godards, Hitchcocks, Bergmans, etc, a estrearem na mesma semana levavam um homem a proclamar imperialmente tal epitáfio, como nos podemos admirar que hoje em dia qualquer realizadorzeco a armar ao poseur não diga, enquanto dá duas baforadas, que “o cinema morreu há trinta anos?”. E em 2048 alguém estará a afirmar, emocionado, que “a arte cinematográfica pereceu em 2017, com o La La Land”. E assim sucessivamente. Mas voltando à bomba de Roberto: gozão como sempre foi, quem aproveitou a boutade foi o Hitchcock, que afirmou que não era o cinema que estava morto, mas sim o próprio Rossellini. Cremos que tudo não passaria de ciumeira pela Ingrid Bergman ter preferido o sol romano ao de Los Angeles.
Assim sendo, se o cinema estava morto, para onde poderia ir o mestre italiano? Exacto, para o inimigo número um da “magia da tela”, esse espectro de horror, de desrespeito pelos originais aspect ratios, de comerciais a cada cinco minutos, de avulsos grandes planos: a televisão. O propósito era simples: colocar o Filme ao serviço da educação e da cultura, que para o esposo de Ingrid, também estavam em estado comatoso. As ambições programáticas destilavam um ligeiro odor a didactismo e academismo, mas se a caução didáctica é assumida sem rodeios, já o fantasma do registo académico não fez a mais fugaz aparição. E durante pouco mais de uma dezena de anos, até à sua morte, Rossellini ocupou o seu ofício a filmar algumas das figuras e etapas da História Mundial. Louis XIV foi uma delas.
Para alguém que queira ver pela primeira La prise de pouvoir par Louis XIV, um conselho: coma e beba muito bem antes de o ver. Este é um daqueles filmes que, como La grande bouffe (A Grande Farra, 1973) ou The Adventures of Robin Hood (As Aventures de Robin dos Bosques, 1938), criam uma grande vontade de comer, e se não estiver bem bebido e bem comido, serão grandes os sofrimentos por que passará no último quarto de hora do filme, altura em que um espantoso banquete, com pratos recheados de delícias, será posto à disposição de uma e só uma pessoa: obviamente, Le Roi. Nós é que não somos maldosos, senão, se quiséssemos torturar um “terrorista”, depois de o privar de comer durante setenta e duas horas, mostrar-lhe-íamos esses derradeiros quinze minutos da obra-prima rosselliniana; temos a certeza que teria tanto ou mais efeito que o famoso waterboarding. Mas ainda bem que não somos maldosos.
Num filme que recusa o “espectáculo”, não deixa de existir esse espectáculo ritualista colocado tanto na encenação de um banquete como na escolha das roupas pelo “novo” Rei absolutista, ou ainda na observação médica ao Cardeal Mazarin no seu leito de morte.
Estar descansado quanto a comidas e bebidas também servirá para estar com os sentidos despertos para o assombro hipnótico que produzirá não cada plano de La prise de pouvoir par Louis XIV, mas sim cada gesto e cada modulação de voz dos “actores” (amadores, sendo que Jean-Marie Patte, o Luis XIV, era um empregado de escritório). Num filme que recusa o “espectáculo”, não deixa de existir esse espectáculo ritualista colocado tanto na encenação de um banquete como na escolha das roupas pelo “novo” Rei absolutista, ou ainda na observação médica ao Cardeal Mazarin no seu leito de morte. Com uma câmara em permanentes longos planos, evitando os close ups, ficamos à mercê da acção mostrada em toda a sua liturgia. A palavra “autenticidade”, aplicada ao mundo do cinema, é de rir, mas quase que nos atreveríamos a colocá-la como sinónimo das cerimónias dramáticas que acontecem nesta obra. A Grande História contada através dos mais pequenos detalhes: umas cortinas que se abrem, um cheirar de um penico, o depenicar de um frango assado, um D’ Artagnan, por uma vez, como um mero profissional da lei (não que não gostemos dos moscãoteiros…), um bater de palmas como sinal de que o Rei “cumpriu os seus deveres conjugais durante a noite”. Quase que apetece escrever que a “tomada do poder” por Louis XIV é um mero mcguffin para Rossellini se deleitar com a imersão nos hábitos sociais de meados do século XVII na corte francesa.
Esse poder, que tanto mais do que efectivo e prático, se baseou nas aparências e na sociedade do espectáculo, trezentos anos antes de Debord. Uma imagem de poder absoluto na figura de uma só pessoa, vestida com as roupas mais extravagantes que se poderiam imaginar, submetendo a nobreza aos mesmos gostos fashion e endividando-a até ao tutano. A parasitagem segue o seu senhor em Versailles. Uma corte controlada à base de guloseimas e dinheiros. Música sagrada e os sons quotidianos dos sapatos numa escada. Acabou-se a rebaldaria e viva a ordem. Dentro de pouco tempo, teremos o Rei Sol. Dentro de cento e vinte anos, não sobrará pedra sobre pedra. Um dos maiores filmes de todos os tempos. Por uma vez, a hilariante expressão “há hoje muito mais cinema na televisão do que no próprio cinema” tem toda a razão de existir.