Talvez se possa dizer que Macao, l’enfer du jeu (Labaredas, 1942), filme francês de Jean Delannoy, foi tão vítima das circunstâncias em que foi produzido como essas se tonaram parte da razão por que ficou relativamente célebre.
O filme começou a ser preparado pouco depois da publicação em 1938 do romance homónimo de Maurice Dekobra no qual se baseia. Com um elenco de grande prestígio internacional, encabeçado por Sessye Hayawaka, Mireille Balin e Erich von Stroheim, Macao l’enfer du jeu é uma história de intriga internacional num enclave distante e exotizado que talvez soe particularmente familiar aos espectadores portugueses. Desconheço se o filme chegou a estrear em Portugal mas a publicação do romance de Dekobra mereceu, na imprensa, pelo menos um artigo extremamente crítico, em defesa da reputação de uma “linda colónia” atacada por uma obra de ficção!
Este filme noir orientalista convida a comparações com outros filmes, nomeadamente de Josef von Sternberg [por exemplo The Shanghai Gesture (1941) e Macao (1952)], mas eis que a Segunda Guerra Mundial vem dar à película um estranho lugar na história do cinema. A ocupação alemã da França em 1940 impõe mudanças drásticas à obra de Delannoy. O realizador foi obrigado a refilmar as cenas com Erich von Stroheim, banido pelas suas críticas aos nazis, sob pena de ver o filme destruído. O escolhido foi Pierre Renoir, filho de Pierre-Auguste e irmão de Jean. É, pois, sem Stroheim (já de volta aos EUA) que a película foi distribuída em 1942, em plena guerra. Não foi apenas o filme a ser afectado pela História, mas também os seus protagonistas. Por exemplo, a actriz Mireille Balin, amante de um oficial alemão, foi presa na fronteira com a Itália, em 1944, e julgada como colaboracionista. Depois de libertada, a sua carreira não mais recuperou da desgraça.
No entanto, no pós-guerra, a versão original de Macao, l’ender du jeu foi refeita e estreada, chegando aos ecrãs americanos apenas em 1950. O filme viria entretanto a ganhar um pequeno estatuto de culto, com Jean Cocteau a considerá-lo um dos seus favoritos.
De certa forma, o próprio pano de fundo do filme é elucidativo dos tempos conturbados que se viviam, não só na Europa mas em todo o mundo. Macao, l’enfer du jeu começa no Sul da China em plena Guerra Sino-Japonesa. Oficiais chineses negoceiam um carregamento de armas garantido por um mercenário europeu, o Capitão von Krall (Erich von Stroheim). Este planeia recolher a mercadoria num enclave perto, onde terá primeiro de ganhar ao jogo a quantia de que precisa para pagar as armas. Irá comprá-las a Ying Tchaï (Sessue Hayakawa), magnata dono do casino.
Um filme noir precisa da sua femme fatale e entra em cena Mireille (Mireille Balin), perdida no meio de uma China em guerra e que Krall decide ajudar – e seduzir. Mireille não consegue apenas ganhar ao jogo, mas também captar a atenção de Ying Tchaï. Este triângulo amoroso desdobra-se num outro: a filha (Louise Carletti) que Ying Tchaï teve com uma mulher francesa apaixona-se por um jornalista (Roland Toutain) do país da sua mãe, que se encontra em Macau para investigar os negócios ilícitos do progenitor.
Tudo isto se desenrola precisamente no enclave então sob administração portuguesa – recriado em estúdio – e que, como em vários outros filmes passados no território, capitaliza a sua reputação de lugar de mistério, palco de actividades de legalidade e moralidade dúbias. Um “Monte Carlo chinês”, para citar uma deixa do filme. E à semelhança de outros casos, como os estudados pelo investigador Rui Lopes sobre o período da Guerra Fria, referências a Portugal e aos portugueses são mínimas e, quando feitas, realçam corrupção e incompetência. Em Macao, l’enfer du jeu, esse é o retrato de Almeido [sic.] (Henri Guisol), um informador e “capanga” de Ying Tchaï que acaba a precipitar um final colectivamente devastador.
O grande trunfo deste filme é o carisma dos dois protagonistas masculinos: Stroheim e Hayakawa, dois gigantes do mudo
O grande trunfo deste filme, e a razão por que continua a resultar estranhamente cativante décadas depois da sua produção, é o carisma dos dois protagonistas masculinos: Stroheim e Hayakawa, dois gigantes do mudo cujas faces e gestos são desse tempo em que o cinema era, primordialmente, uma arte visual. Não que os diálogos de Macao, l’enfer du jeu não tenham deixas provocadoras e refinadas. Com um humor ora seco ora absurdo que simultaneamente reflecte e desafia o clima de horror que então prevalecia boa parte do mundo. Mas as cenas mais poderosas mal necessitam de palavras, culminando na apoteose da autodestruição da personagem de Hayakawa.
Se Stroheim dispensa apresentação – afinal, é num ciclo a ele dedicado que o filme vai ser exibido na Cinemateca Portuguesa – talvez valha a pena recordar quem foi o enorme Sessue Hayakawa. Estrela transnacional de cinema e teatro, o japonês Sessue Hayakawa trabalhou nos EUA, Japão, França, Reino Unido, e Alemanha. Tornou-se famoso em The Cheat (1915), de Cecil B. DeMille, e nos anos 1910 já era uma das maiores superestrelas do cinema americano. Entrou em mais de uma centena de filmes, interpretando muitas vezes papéis estereotipados de asiáticos, o que para muitos espectadores japoneses era “um insulto à nação”. No entanto, Hayakawa imprimiu até às personagens mais óbvias uma ambiguidade extraordinária, ajudando a quebrar uma série de tabus raciais da época. De certa maneira, o seu estrelato era uma forma de transgressão.
Em 1918, criou a sua própria produtora e no final dos anos 1920 deixou os EUA e foi trabalhar no Japão (onde chegou a protagonizar um filme de Arnold Fanck, realizador alemão especialista em filmes de montanha que tornaram Leni Riefenstahl famosa como actriz antes de se passar para atrás das câmaras a celebrar os nazis) e na Europa, sobretudo em França. Mudou-se para lá quando o ambiente no Japão começou a ficar excessivamente militarista. Foi precisamente nesse país que veio a fazer Macao l’enfer du jeu, onde deu vida a uma das típicas personagens que o tornaram conhecido. Hayakawa viveu em França até 1949 e diz-se que terá auxiliado a Resistência durante a guerra. Nos anos 1950, voltou ao cinema em grande, vindo a ser nomeado para um óscar para Melhor Actor Secundário pelo filme The Bridge on the River Kwai (A Ponte do Rio Kwai, 1957), de David Lean.
Como observou Daisuke Miyao na sua monografia sobre Hayakawa, este tinha um “estatuto ambivalente” sendo considerado, simultaneamente, “estrela americana” e um “representante do Japão”. Particularmente extraordinário foi o facto de Hayakawa se ter notabilizado numa era de activa exclusão racial nos Estados Unidos. Na França da Segunda Guerra Mundial Hayakawa era também um artista exilado, muito como o próprio Stroheim, ambos estrangeiros-americanos. O francês não-nativo de ambos imprime ao filme uma curiosa verosimilhança.
Em Macao l’enfer du jeu Hayakawa dá vida a um “chefão” que parece controlar não só o seu casino (e esse controlo é visual e quase visionário: através de câmaras de segurança de cujas imagens dispõe num ecrã pessoal) como boa parte do que acontece na cidade. Figura de poder na sombra, não é mostrado como um grotesco Fu Manchu, epítome do pânico pelo suposto “perigo amarelo” na cultura popular europeia e americana, mas como um milionário tão cruel como elegante, a quem (quase) todos servem. Se uns o consideraram figura de degeneração, também pode facilmente ser olhado como um ambíguo objecto de desejo. De alguma forma, os versos de uma fã de Hayakawa publicados numa revista de cinema em 1917 não serão muito despropositados depois de o vermos no filme de Delannoy: The silent drama speaks in every picture / When Sessue comes he leads, whate’er the part *
Que Macao l’enfer du jeu se passe em Macau é curioso mas porventura irrelevante para a qualidade cinematográfica do filme. Uma obra feita no limite sobre gente no limite. Quase todos eles e elas a testar as fronteiras do risco, de uma mudança, de uma fuga que culmina num desenlace que é, ao mesmo tempo, um clímax visual e uma elipse. Macao, l’enfer du jeu é um filme de sombras feito (e refeito) num tempo particularmente sombrio e talvez por essas marcas constitua um filme tão interessante pelo seu cinema como pela (sua) História.
Macao, l’enfer du jeu passa na Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema dia 27, às 19h.
Obras mencionadas no texto:
– Rui Lopes, “ ‘A fabulous speck on the Earth’s surface’: Depictions of Colonial Macau in 1950s Hollywood’ in Portuguese Studies Vol. 31, No. 1 (2016), pp. 72-87
– Daisuke Miyao, Sessue Hayakawa: Silent Cinema and Transnational Stardom. Durham & London: Duke University Press, 2007
* excerto de carta de uma fã para Sessue Hayakawa publicada na revista Motion Picture, em 1917, citado em Miyao, Sessue Hayakawa, p. 2.