Não é incomum deparar-me com filmes que sendo mais ou menos execráveis guardam em si soluções que compensam, e fazem esquecer, o sofrimento que foi esperar por elas. Resident Evil: The Final Chapter (Resident Evil: Capítulo Final, 2016) é um filme sofrível até ao momento em que deixa de ser um road movie sem eixo e passa a ser um filme de cerco e, após isso, um filme perversamente labiríntico. Não de propósito esse momento de viragem no filme é marcado por um plano em espiral que parte do olho da protagonista (recém acordada de um desmaio) e viaja até aos céus, percorrendo uma longa torre em ruínas, sempre em rotação ascendente. A partir daqui, desse nódulo simbólico que faz expelir por centrifugação o terror desértico de pacotilha, o filme entra numa delirante corrida para um desenlace narrativo e simbólico que culmina na deliciosa Trinity of bitches, como lhe chama uma das personagens, o encontro das três figuras femininas que marcam toda a história da série.
1. A mulher adulta, já idosa, de corpo decadente, enferma, que mal se pode mexer mas que recorda toda uma vida, que conserva as memórias de infância, que conhece e domina as suas origens e que é co-proprietária (juntamente com o anjo caído) da salvação do mundo;
2. O clone desta mulher, de corpo forte e são (mais ou menos imparável), mas cuja existência se sustenta sobre uma lacuna fundamental, o seu passado. Quando acordou, o armagedão zombie já tinha começado e não se recorda de nada do que era antes;
3. O avatar digital da primeira mulher, fixado aquando da sua infância, uma digitalização que conservou a imagem da mulher num momento do passado, e da qual não há progresso nem evolução possível, uma imagem encerrada num historicismo identitário.
Assim configura-se a dita trindade das cabras em mãe (a original, congelada, distante do mundo, incapaz de agir sobre eles), a filha (a enviada de sua mãe, feita à sua imagem, capaz de intervir no meio, de mudar o mundo) e a espírita santa (figura imaterial que tudo vê e tudo acompanha, à distância, o anjo da guarda virginal que zela por nós). No clímax do filme o clone físico e o avatar digital completam-se por sacrifício da mãe que, paradoxalmente, renuncia à vida para que esta possa continuar através dos seus fac-símilies que são cada qual incompletos, mas que se completam totalmente. Os dois simulacros acabam por se fundir, formando uma figura una, um humano de verdade (de corpo e espírito – sim, esta é uma versão zombificada de Pinocchio). Esta combinação faz-se através do olho da mãe, é através do olho que esta descarrega todas as suas memórias que vão dar substância à carne da mulher-clone e vão permitir o acesso ao antes inacessível espírito: o olho como janela para a alma. Esta transferência é o que acaba por dar sentido à protagonista, que deambulava por um mundo em total caos; é aqui que encontra um rumo, que descobre a sua origem, que estabelece um ponto de partida para perspectivar o seu percurso.
Este acontecimento, que é no fundo o desenlace narrativo do filme, é também o desenlace formal e simbólico da realização de Paul W. S. Anderson, por constituir ele mesmo a combinação de dois dos seus núcleos simbólicos, dos seus motifs: o olho e o duplo. Estes dois conceitos propagam-se na sua obra. Quase todos os seus filmes contêm enormes planos de olhos (muitas vezes filmados em travelings em espiral) e o duplo é um dos seus recursos narrativos mais habituais (que surge muitas vezes associado à influência do vídeo-jogo, do eterno ciclo entre game over e play again). São aliás estas recorrências que dão sustento à série que, de base, se vê ausente de uma identidade própria, já que canibalizou totalmente um vídeo-jogo adaptando-o numa direcção que pouco mais conservou que o título. O sci-fi de fim dos tempos, o apocalipse zombie, o terror de jump scares, o vídeo-jogo, a fábula sobre os perigos do progresso científico e da ganância capitalista, o filme de cachaporra; tudo isto se encontra numa série que uma e outra vez dinamita os seus percursos, caminhando sempre pelo improvável e estapafúrdio, numa constante ode ao delírio pirotécnico de cada set piece de acção. Assim, o momento de fusão entre o clone e o avatar da mulher protagonista corresponde portanto a um culminar da própria obra de W.S. Anderson e da série Resident Evil, por aqui se encontrarem e se fundirem as suas obsessões narrativas e dramatúrgicas, a reunião perfeita da escrita e da mise en scène, a estruturação in extremis da aberração que é, afinal, toda aquela empresa.
O indivíduo como palimpsesto visual dos registos vídeo do seu passado, onde uma e outra camada de imagem se sobrepõe, completando-se e ocultando-se. O indivíduo feito indivídeo.
E é aqui que se fecha o círculo: no início do filme recebemos uma explicação dos eventos do passado (o resumo dos episódio anteriores – como tudo começou, porque foi criado o vírus T, etc.) e depois, a certa altura, o filme começa a descrever o passado numa série de ecrãs flutuantes onde se exibem clips dos tomos anteriores da série. Estas janelas vão-se amontoando acabando por formar um rosto, o rosto da protagonista, Milla Jovovich. Já no final do filme, quando o clone coloca a lente de contacto ocular que contém as memórias de sua mãe, soltam-se do seu olho essas mesmas janelas da sequência do genérico, onde estão documentados os momentos da infância. Ou seja, a memória como marca de identidade ou a história de vida como construtora da imagem que cada um constitui de si (imagem essa que a protagonista não possuía até ao desenlace). E como tal, sendo uma figura sem imagem, era um ser sem espírito, é a possibilidade de imagem que lhe permite constituir-se como ser humano de corpo inteiro: o clone só se torna humano quando é capaz de formar uma imagem total de si. Esta solução comporta uma ideologia que dá primazia à imagem como ferramenta de memória e de identidade, essa é uma ideologia que manifesta um pensamento televisivo agora vertido na multidão de janelas que o digital possibilita. Não deixa, no entanto, de ser curioso pensar no processo que o filme apresenta: o indivíduo como palimpsesto visual dos registos vídeo do seu passado, onde uma e outra camada de imagem se sobrepõe, completando-se e ocultando-se. O indivíduo feito indivídeo. E é esta falsa resolução identitária que encontra paralelo no final aberto que igualmente possibilita que o final chapter seja apenas um ponto de partida para o recomeço.