Seijun Suzuki: Creio que os japoneses têm uma natureza irracional, mas ela perdeu-se. Nada é completamente ridículo…
Pergunta: Está consciente disso nos seus filmes?
Seijun Suzuki: Não se fazem filmes com o inconsciente? A vida é um sonho…
(Yamada & Iijima 2001, p. 46)
É por estas razões que não gosto de acordar. Descubro, na aurora de um novo dia, que Seijun Suzuki nos deixou aos 93 anos. Alguns de nós já sabíamos que não voltaria a filmar, que a sua derradeira obra seria Operetta tanuki goten (Princess Raccoon, 2005) depois do agravamento das condições de saúde o ter impedido de filmar o romance Mitsu no aware em 2010[1]. A estória de um velho perdido de amores por um peixinho dourado metamorfoseado em jovem mulher teria sido, porventura, o fechamento ideal de carreira, um último delírio febril de um cineasta que, a despeito das fragilidades ósseas, nunca deixou de parte uma jovialidade infectante. Como podemos descrever a figura de Seijun Suzuki para quem nunca ouviu falar dele? Um idoso baixo, com bigodes de sábio chinês? Um sorriso misterioso e acriançado que parecia fazer chacota do mundo inteiro? Na cabeça rapada pelos anos, habitualmente pousava um chapéu de pescador, trademark de tantos realizadores japoneses. Nos dedos pequenos asfixiava um cigarro que, não raras vezes, ia respirar à sua boca. Os óculos quase quadrangulares, exactamente os mesmos que usava no seu período áureo (como fica aliás comprovado nas parcas fotos que sobreviveram dos anos 60) escondiam uns olhinhos semi-cerrados, indecifráveis, esculpidos por um qualquer fabricante de máscaras de teatro Noh. E era isso também o cinema de Suzuki: uma paixão intuitiva e anárquica pelo artifício, pelo mascaramento do real.
O presente texto foi publicado no livro de compilação O Cinema Não Morreu – Crítica e Cinefilia À pala de Walsh. Pode adquiri-lo junto da editora Linha de Sombra, na respectiva livraria (na Cinemateca Portuguesa), e em livrarias seleccionadas.