Nesta edição especial da Sopa de Planos, pedimos aos nossos walshianos para recortarem um plano de cada um dos filmes nomeados para o Óscar de Melhor Filme. Bom apetite!
Arrival (O Primeiro Encontro, 2016) de Denis Villeneuve
Não tendo visto todos os filmes que compõe esta sopa e que são os nove filmes nomeados ao Oscar de melhor filme, não tenho grandes dúvidas que Arrival deva ser o melhor deles. Não vou sustentar esta afirmação em comparação com os demais filmes, vou apenas salientar aquele que me parece ser o aspecto fundamental do filme e que o torna um objecto de extrema relevância. Esse aspecto está concentrado no plano acima (e em muitos outros ao longo do filme, não fosse esse o seu tema central), a linguagem e as suas ramificações na compreensão do real (ou mais importante, o real formado e formatado pela linguagem). O filme, sob a capa da ficção científica (como manda a tradição), versa sobre os medos da contemporaneidade, em particular esta vaga que hoje em dia procura alterar a escrita e a linguagem no sentido de a tornar mais inclusiva. A exclusão de certas palavras, o recurso a certas expressões mais abrangentes, a modificação das terminações características do género (e a sua substituição por “@”, “e”, “x” ou “_”), entre outros. Estas propostas de metamorfose das línguas têm como objectivo final aquilo que no filme de Denis Villeneuve a língua alienígena tem na personagem de Amy Adams, a compreensão diferente do real. Alterando a língua procura-se alterar o modo de pensar e portanto destruir, por dentro, os pensamentos discriminatórios e adjuntos. Para uns este movimento é um de correcção, na medida em que a língua foi sendo construída para expressar certas ideologias nefastas e portanto é necessário desconstruir a língua para abolir essas ideologias. No entanto o nódulo formal desta medida prende-se no facto de este processo ser também uma forma consciente de domínio do pensamento. Talvez, como no filme, isto permita compreender mais profundamente o mundo que nos rodeia, mas talvez não. Villeneuve tem a sua posição tomada, eu tenho dúvidas. Ah, e sim, isto está tudo lá, num filme mainstream com efeitos especiais, CGI, estrelas de Hollywood e trinta por uma linha.
Ricardo Vieira Lisboa
Fences (Vedações, 2016) de Denzel Washington
No momento-chave do desfecho do segundo acto do Fences, a personagem de Troy Maxzon, caída em desgraça – “Can’t taste nothing…”, diz – , brande um taco de baseball e olha para a câmara. “Come on, anytime you want. This is between you and me, now.” Denzel Washington já nos havia mostrado, momentos antes, a súbita luz vinda da janela do andar de cima de sua casa e através da peça homónima de August Wilson já tínhamos a informação que, no passado, Troy pensava ter vencido a morte numa luta corpo a corpo, evitando morrer precocemente de pneumonia. Mas agora, após a expulsão do filho de casa e os problemas conjugais, esse novo desafio já não é com a bola segura pendurada na árvore do seu quintal mas sim um novo jogo com a morte, do qual apenas um poderá sair vencedor. Naturalmente que Denzel, enquanto realizador e protagonista do filme, afirma o momento como a disputa final do personagem também com o espectador. Não deixa assim de ser interessante esta ideia da lente da câmara como uma oponente da ficção e um aliado do voyeurismo, uma mesma cortina a marcar dois pontos de partida, mais uma “fence” a adicionar à metáfora dupla das vedações que ora abrigam o cá dentro, ora excluem o lá fora. (Juntamente com Lion (Lion – A Longa Estrada Para Casa, 2016) de Garth Davis este é o segundo filme desta corrida aos Óscares a falar de integração e exclusão, isto é, a dar um double bill perfeito para mostrar numa sessão de “esclarecimento” a Donald Trump.) Seja como for, ainda sobre a questão da vedação como limite, esse é o principal pecado de Denzel Washington neste filme: colocar-se sempre no centro de tudo – actuação, realização – não conseguindo enxergar as linhas de demarcação que tornariam um e outro trabalho mais secos e sérios.
Carlos Natálio
Hacksaw Ridge (O Herói de Hacksaw Ridge, 2016) de Mel Gibson
O jesuíta português de Scorsese foi à Segunda Guerra Mundial. Mas, lamentavelmente, Silence (Silêncio, 2016) não foi nomeado para o Óscar de Melhor Filme. A personagem sacrificial, santa, de Andrew Garfield parece atravessar filmes com o mesmo registo de inocência e candura. Uma fragilidade que no filme de Gibson choca com a experiência ultra-violenta da guerra, mas também com um diálogo invisível – e inaudível – com Deus. Em Scorsese temos só corpo e espírito, um longo ritual de provação da fé de mãos dadas com uma luta pela sobrevivência. Os campos de batalha não mudam muito, nem mesmo a paisagem. Estamos no Japão e o nosso herói combate pela e com a fé, apenas. Sem arma – objecto-fetiche de qualquer realizador ultra-violento tal como é Mel Gibson e o plano que trago aqui não me desmente – a paz faz-se corpo na personagem de Garfield. Em Hacksaw Ridge ele interpreta um dos grandes heróis da Batalha de Okinawa. Salvou várias dezenas de camaradas e sem levar consigo um único fuzil, uma única bala. Sabemos como o realizador de The Passion of the Christ (A Paixão de Cristo, 2004) gosta deste heroísmo saído da carne e da alma, abençoado pelos céus. É um tipo de cristianismo diferente do de Scorsese, que é mais silencioso, mais apaixonado pela tortura psicológica e menos embevecido pela “arte sacra” da violência – ou pela violência da “arte sacra”. Teria sido interessante ver Garfield e Garfield, isto é, Gibson e Scorsese na disputa pela estatueta.
Luís Mendonça
La La Land (La La Land: Melodia de Amor, 2016) de Damien Chazelle
La La Land abre com o logo do Cinemascope cortado pelo enquadramento televisivo do 4:3 e a preto e branco, recordando-nos da era em que os clássicos de ecrã largo passavam na televisão em formatos amputados recorrendo à famosa técnica do pan e scan. Logo depois o ecrã alarga-se para dar a ver o logotipo na sua total extensão e coloração. Esta abertura do filme de Damien Chazelle poderia dar a ideia de que haveria uma intenção de emendar a mão do que que foi (e vem sendo) uma certa cinefilia que recorrentemente encara os filmes numa perspectiva filológica (e que portanto descura formatos, suportes, e outras componentes propriamente técnicas do meio, que fazem parte das suas limitações ontológicas, quer se goste quer não — agora mais ou menos implodidas pelo reinado do digital que tudo re-escreve e tudo faz esquecer). Ou seja, poderia pensar-se que aqui estaria uma empresa de rememoração consciente do passado. Na verdade não é isso que acontece, muito pelo contrário, a torrente de “homenagens” que o filme apresenta surgem como uma sucessão de piscadelas de olho mais ou menos vesgas para o que é (e o que foi) a história do cinema clássico americano. Piscadelas à memória colectiva que temos dessa história cada vez mais vaga e indiscriminada. Por isso o plano que escolho para esta sopa é exactamente o que se segue a esse logo do Cinemascope: um tavelling para a direita que percorre uma fila de carros parados no trânsito infernal de L.A.. Esse plano tem o condão de percorrer os carros na direcção oposta à do sentido em que caminham, criando um efeito óptico que faz parecer que sejam estes que de facto se movimentam (e não a câmara). Simbolicamente é este o plano-chave do filme, fazer com tudo se pareça mexer sem que na verdade as coisas saiam do sítio (ou, posto de outro modo, dar a ideia de que se recupera um género em desgraça, o musical, quando na verdade se espeta o último dos ferrolhos no seu caixão). Mas estou em crer que Chazelle está consciente deste processo e creio mesmo que La La Land fala exactamente desse olhar contemporâneo que recorda o cinema clássico através dos clips canónicos do YouTube ou dos lugares comuns que se instalaram através da memória televisiva desses mesmos clássicos. Aliás, a sequência final que pretende re-escrever todo o filme aborda exactamente isso, os eventos do passado filtrados por uma fantasia do que esse passado foi, fantasia adocicada, melosa, dourada, publicitária. É isso que acontece à história do cinema clássico e é exactamente sobre isso que La La Land versa, sobre essa forma de esquecimento hiper-romantizada.
Ricardo Viera Lisboa
Manchester by the Sea (Manchester à Beira-Mar, 2016) de Kenneth Lonergan
É-me relativamente fácil recortar um plano de Manchester by the Sea. Até porque na minha crítica ao filme não parei de andar à volta dele. Se tenho por vezes a sensação de que todo um filme é pretexto para um único plano, aqui, neste mais recente título de Kenneth Lonergan, tenho a convicção de que o epicentro do drama está aqui, na sequência em que o casal atormentado – e desfeito – pela morte dos filhos se reencontra. Não concordo nada com quem escreve que Manchester by the Sea é o resultado de um prodigioso trabalho de argumento. O filme é muito escrito, sem dúvida. Mas a sua força está num trabalho, por vezes absolutamente franco, do realizador com os seus actores. E é aí, nessa sequência, onde as palavras não chegam, quando não conseguem dizer nada, que o filme se eleva e se torna tocante. Casey Affleck e Michelle Williams sabem da exigência deste momento e nós assistimos à maneira como eles se embaraçam na sua própria convulsão interior com o sentimento de estamos a testemunhar algo de incomunicável – uma dor que os atravessa e que deixa um golpe indelével na nossa experiência do filme. Até aí Manchester by the Sea era demasiado literal – porque literário – na sua vontade de nos invadir de drama. A partir daí lidamos com pessoas ante um mar que não sossega. Menti: na verdade não foi fácil escolher este plano, porque há outro tão ou mais poderoso. É o da escuridão do genérico final que se abate sobre a imagem de uma cena de amena confraternização entre a personagem de Casey Affleck e o seu sobrinho. É aí que percebemos que há feridas que não se saram. Que o mar pode sossegar um pouco, mas que não acalma totalmente.
Luís Mendonça
Moonlight (Moonlight, 2016) de Barry Jenkins
Escolho este plano de Moonlight por um motivo um pouco incorrecto, faz-me lembrar um outro, o da famosa cena de banheira em Gummo (1997), onde um miúdo comia um prato de massa à bolonhesa e uma tira de bacon se encontrava agarrada aos azulejos da casa de banho com fita-cola. Faço isto porque me parece que no filme de Barry Jenkins falta um pouco da crueza que conhecemos do cinema de Harmony Korine. Moonlight é um filme sobre o bullying e sobre a discriminação (e sobre o medo que essas duas coisas provocam) e de como um indivíduo se molda através (e por causa) de um ambiente que o rejeita e o amputa. Construído em três capítulos que acompanham três momentos da vida do personagem principal, infância, adolescência e jovem adulto, vemos a forma como este homem vai fabricando para si uma carapaça que o protege do mundo e simultaneamente o esconde dele. Este trabalho fragmentado concentra portanto nas elipses que separam cada capítulo a (de)formação da personalidade. Tudo certo. Aliás, talvez certinho de mais. Moonlight é um filme correcto e delicado que dá espaço aos seus actores e cria personagens nos quais conseguimos acreditar, mas fá-lo com uma doçura wong-kar-waiana que de certo modo contraria a crueldade do mundo que pretende retratar (especialmente no último capítulo). Falta-lhe um olhar que encare a pobreza sem ser ao ralenti. Falta-lhe a imundice kitsch de Korine. Ficam-me, no entanto, dois planos (um deles o primeiro) em que a câmara de Jenkins (na exibição das potencialidades da steadycam) persegue em movimento centrípeto os seus personagens e se afunda neles.
Ricardo Vieira Lisboa
Lion (Lion – A Longa Estrada Para Casa, 2016) de Garth Davis
Uma das piadas recorrentes de Ricardo Araújo Pereira é sobre a peça Romeu e Julieta de Shakespeare. Diz ele que a tragédia que ocorre pelo desencontro dos amantes jamais teria lugar se existissem telemóveis. A mesma coisa apetece dizer do destino do pequeno Saroo que vinte e tal anos depois de se perder em criança numa pequena província da Índia, acaba por achar a sua casa através do Google Earth, já vivendo na Austrália junto com a sua família adoptiva. Se a primeira parte de Lion (Lion – A Longa Estrada Para Casa, 2016), quase sem diálogos, é sobre perder-se, a segunda, no mundo da tecnologia e da industrialização, é sobre encontrar-se. Este plano corresponde precisamente a este segundo segmento, bem menos interessante, onde o publicitário Garth Davis monta de forma enjoativa e recorrente planos do presente de Saroo (já encarnado pelo desinspirado Dev Patel) a flashes do passado na Índia onde andou perdido e afastado da família. Talvez os planos que o realizador use directamente do google maps (inaugurando um período onde parece ser impossível perder-se no espaço) sejam os menos eloquentes e ao mesmo tempo os mais certeiros. A simulação digital do espaço faz a personagem reviver o espaço real ao ponto de o percorrer com o indicador (e depois com os pés e a mente). Dito isto merecia a pena ainda dizer que a adaptação deste caso verídico, vertido em tearjerker panfletário sobre o número elevadíssimo de crianças que se perdem anualmente na Índia, está tudo menos perdido. Assim como Patel sente o aroma proustiano do passado nos jalebis que come agora (e que queria poder ter comido com o desaparecido irmão, em criança) também nós encontramos em Patel, ou nos planos de miséria de uma Calcutá perigosa, as coordenadas, o “célebre aroma” de Slumdog Millionaire (Quem Quer Ser Bilionário?, 2008).
Carlos Natálio
Hidden Figures (Elementos Secretos, 2016) de Theodore Melfi
Três mulheres afro-americanas fazem a festa em Elementos Secretos. São verdadeiros crânios, que estiveram por detrás das primeiras expedições da NASA, fazendo os cálculos fundamentais para as missões no Espaço serem bem-sucedidas. Historiazinha verídica. Tirando o justo princípio laudatório, e as três atrizes negras empenhadas na energia do filme, tudo o resto se conjuga para sublinhar exaustivamente, e de modo simplório, os traços da segregação. Elementos Secretos acaba por ser uma lista de situações discriminatórias (como se não soubéssemos que “aquilo” aconteceu), que em vez de fortalecer a causa, torna-a vulgar. Um filme cuja simpatia pelas personagens não salva a fraca imaginação e subtileza para trabalhar o contexto.
Inês N. Lourenço
Hell or High Water (Custe o que Custar, 2016) de David Mackenzie
A decadência do western enquanto género não tem necessariamente a ver com uma quebra nos padrões culturais que o autorizavam a retratar a América profunda do wild wild west. Contudo, no filme de Mackenzie é a circularidade do dinheiro que torna o modo de agir dos bank robbers em algo demodé. Dois irmãos a fazerem algo juntos, vestidos de cowboy mas com máscaras de ski a entrar pelos bancos adentro, sem pensar muito nas câmaras de vigilância, e a acumular notas à antiga. Mas quem ainda rouba bancos? “Vocês nem são mexicanos”, diz-lhes um dos clientes do banco. O dinheiro vai ser lavado no casino, circulado em fichas, e depois o grande movimento circular do filme que é o facto do dinheiro do banco roubado ser aquele que servirá para pagar a esse mesmo banco que iria executar o rancho da família. Porque tudo pode ser tudo, o texas ranger branco já pode gozar com o texas ranger mexicano, já podem vestir-se de forma igual e sobretudo perceber, como é o caso deste plano, que as perseguições são de outrora e que agora é sobretudo um tempo de estratégia e espera. Aqui, a personagem de Jeff Bridges explica isso mesmo ao seu parceiro: mais vale antecipar a próxima jogada de um xadrez que já não anda a golpes e esticões de violência, mas é antes um affair de gestão de um capital circular e fugidio. O seu parceiro Alberto diz-lhe que ele quer esperar pois quer prolongar ao máximo aquilo que está prestes a terminar dada a eminência da reforma. Não é que também não tenha razão mas é esta espera que faz com que Hell or High Water termine com um adiamento – Bridges dirá a Pine que um dia irão continuar a conversa que poderá finalmente esclarecer a sua culpabilidade. Essa cena final do filme, já com Pine de volta com a família em mais um gesto circular do argumento, ilustra bem esse saborear de um momento antes dele terminar. E já há décadas que esse fin de jeu paira sobre o mundo do western.
Carlos Natálio