Há dias tinha escrito no Facebook umas breves palavras sobre a notícia do próximo projecto de Shyamalan, alegadamente uma sequela de Unbreakable (O Protegido, 2000). Este filme, mais do que ter prenunciado a tara por super-heróis que tomou conta de Hollywood depois dos ataques às Torres Gémeas, era – é cada vez mais, na realidade – o manual mais completo para se sobreviver hoje aos efeitos da retórica messiânica feita, sem nuances, de luz e escuridão. Escrevia na dita rede social que não via como muito útil que se retomasse um discurso que estava mais fresco do que nunca. Em 2000, Unbreakable viu mais longe do que todos nós. Este filme, que por sinal tinha revisto há pouco tempo, não precisava de sequela. Precisava quanto muito disso: de ser revisto, reavaliado ou reconsiderado. O mundo que se seguiu a ele era a sua sequela mais justa: os super-heróis e, ainda mais tentadores, os super-vilões estão em todo o lado – até na Casa Branca -, nascidos, renascidos, “kitados”, mais ou menos plastificados, mais ou menos suicidas. Não estava certo de que o cinema de Shyamalan (nos) fosse beneficiar com uma actualização nesses moldes. Mas há nesta história um pormenor que muda tudo e esse pormenor é a razão de ser desta crítica: quando escrevi aquilo ainda não tinha visto Split (Fragmentado, 2016).
Tenho Shyamalan como um dos mais inconformados realizadores da actualidade. O seu cinema vive quase sempre num estado de convulsão interior, procurando, no limite do risco, retorcer um qualquer caminho que se pretende recto. Para mal dos seus pecados, Shyamalan gosta de desafios e é um transformador. Um filme como The Village (A Vila, 2004) era uma fantasia de horror transformada em parábola política e religiosa – a pureza da bondade e do amor contra o cinismo dos mitos contemporâneos, entre os quais, o medo do outro. A sua magnum opus, Lady in the Water (A Senhora da Água, 2006), era outra fábula moderna que transformava os acontecimentos fantásticos passados num condomínio fechado numa alegoria sobre a vontade de acreditar e, portanto, de novo Shyamalan lidava aí com personagens de carne e osso debatendo-se com problemas universais, como o luto e a falta de fé. Problemas que já estavam no fulcro de Signs (Sinais, 2002) e, recuando ainda mais, em Unbreakable, só que aqui transformados pela mitologia não de Deus ou do Desconhecido mas do Super-Herói. Split tem uma estrutura narrativa próxima à destes dois filmes, com sucessivas incursões no passado, ainda que com a bem interessante variante de insistir numa espécie de falso flashback que nos dará um dos vários volte-faces do filme. Mas, acalmem os cavalos, não é a habilidade de Shyamalan em dar a volta ao texto que só por si me seduz. A acrobacia narrativa pela acrobacia narrativa entusiasma-me pouco.
O “problema de identidade” no filme é o “problema de identidade” do filme – este é o grande twist que Shyamalan nos reserva.
O desafio de Split está na forma como a metáfora do estilhaçamento mental vai reconduzindo-nos para uma longa panorâmica sobre o cinema de Shyamalan, produzindo no fim um espantoso efeito de gancho que puxa para a frente alguns dos recantos mais esquecidos da sua própria mitologia – na realidade, ou por isso mesmo, a dimensão mitológica do cinema de Shyamalan só agora ganha nitidez. Será que este filme de cativeiro, com todos os condimentos de um horror film, poderá ser, afinal, um filme de super-heróis que, com um certo nojo, se vê ao espelho? O “problema de identidade” no filme é o “problema de identidade” do filme – este é o grande twist que Shyamalan nos reserva. Não é um twist vazio ou um exercício simples de crítica especulativa (ou especular). Em Lady in the Water, escreveu-se que com arrogância, Shyamalan acertou contas com a crítica de cinema – que tanto maltratou The Village -, gerando no seu mundo de fábula a personagem de Farber, o crítico desencantado que acredita que “there’s nothing new under the sky”. Em Split o acerto de contas é ainda mais ambicioso: faz-nos subir tão alto que vamos conseguir resgatar no tempo da memória um subestimado filme seu, datado de 2000, que fala muito directamente aos nossos dias.
Assim, o que é surpreendente aqui não é só o facto de Shyamalan inventar o que poderíamos denominar de metatwist, ou fazer uma das mais descabeladas afirmações autorais da história do cinema, mas também, ou acima de tudo, o facto de vir reclamar, com vaidade – justa vaidade, na minha opinião – e sentido de aventura – bem-vinda aventura, na minha opinião -, o direito a retomar uma anti-mitologia dos super-heróis que nasce das entranhas de um drama filmado à altura de personagens quebradiças e (como se diz no filme também dando a volta ao texto) “puras”. Shyamalan retrabalha por dentro o seu universo autoral a partir da mente desdobrável do vilão da história – que vilão é ele se, no fim, aparecerá aos nossos olhos, bestialmente, como um alter ego da doce, mas taciturna, jovem protagonista? Vilão ou herói, a sua cabeça gira, indecisa, como quem não sabe o que vestir para o momento que se aproxima – também nós dificilmente estaremos preparados para ele. Quanto mais a psique se desdobra, mais o cinema de Shyamalan se vai dobrando sobre si mesmo, até ficar claro que este filme veio ao mundo para repar(t)ir outra obra que se julgava bem protegida lá atrás, no ano de 2000.
De resto, olhe-se para a forma como Shyamalan contrói toda a cena do sequestro. A câmara guarda quase tudo para si, mas os olhos gigantes da miúda [maiores ainda que os de Zooey Deschanel em The Happening (O Acontecimento, 2008)] gritam por tudo, tudo o que aí vem. É uma cena meticulosamente construída no espaço off e não é a única coisa em Split que me faz pensar em De Palma [Raising Cain (Em Nome de Caim, 1992)], Hitchcock [Psycho (Psico, 1960)] ou Tourneur [a este último fica reservada uma referência final muito óbvia a Cat People (A Pantera, 1942)]. O resto do filme não terá a mesma inventividade de câmara – o que é uma pena -, mas o ritmo da montagem e o enleamento da narrativa – o modo como se vai teorizando à frente da nossa ansiedade – não podem pertencer a outra coisa senão a uma maquinaria impecavelmente oleada. Essa maquinaria habita uma cabeça que faz girar as ideias, remontando-as por dentro sem medo do falhanço ou do ridículo, e um coração que trata as personagens – até as mais vis – como parte de uma grande família que se quer unida e sempre protegida, qual zoo sentimental pós-spielberguiano. Falo da cabeça e do coração de M. Night Shyamalan. De onde saiu Split, o seu melhor filme numa década.