Stefan Zweig: Farewell to Europe (Stefan Zweig: Adeus, Europa, 2016) é composto por seis partes (um prólogo, um epílogo e quatro capítulos intermédios) que retratam episódios da vida do escritor do título entre 1936 e 1942 (a data do seu suicídio), com especial enfoque no seu exílio sul americano (Rio de Janeiro, Buenos Aires, Baía, Petrópolis — e um capítulo nevoso em Nova Iorque). Esta colecção de momentos pretende ilustrar o ponto de vista do escritor do que era o rebuliço em que ia o mundo durante a implantação do regime Nazi e subsequente Segunda Guerra Mundial. Um olhar de exilado a fazer constantes ajustes com a consciência (como pessoa influente pesava-lhe a incapacidade de ajudar todos aqueles que queriam igualmente escapar-se da Europa para as Américas). Maria Schrader revela uma precisão tocante nos dois planos sequências que compõem o prólogo e o epílogo, precisão essa que contrasta com o anonimato de todo o miolo. Do choque entre esses tours de force e o filme de época mediano fica um objecto bem intencionado mas algo perdido entre uma certa ideia de cinema de autor europeu moderno e uma vontade de chegar ao grande público — não tivesse o filme estreado na Piazza Grande na última edição do festival de Locarno.
Posto isto gostaria então de chamar a atenção para esses dois momentos de fino domínio da mise en scène (descurando naturalmente as reflexões sobre a natureza humana, a estado da civilização nesses finais de 1930 e os paralelismos entre as movimentações extremistas dessas alturas e os de hoje).
Prólogo. Jockey-Club, Rio de Janeiro, 1936. Um plano fixo que ao fim de uns bons minutos desliza num ligeiríssimo travelling à frente sobre as costas de dois personagens. Esses personagens são o próprio Stefan Zweig e José Carlos de Macedo Soares (interpretado por Virgílio Castelo) ministro brasileiro dos negócios estrangeiros e membro da academia brasileira de literatura que organiza um almoço de homenagem ao escritor a propósito da sua ‘visita’ e da edição dos seus livros em língua portuguesa. Esse plano anuncia de modo simbólico e metafórico o peso que se depositará sobre as costas de Zweig (se não o peso do mundo, pelo menos o peso do mundo que cabe no filme, e do próprio filme que recai todo sobre o actor, Josef Hader). Neste plano sequência conhecemos tanto as criadas cantantes como o ministro, e tudo nesse intervalo. Essa é aliás uma das premissas do filme (e do olhar de Schrader), dar a mesma importância fílmica a todas as classes e a mesma imponência a cada um dos seus representantes (os criados, os trabalhadores das roças da cana do açúcar, o presidente da junta, o editor literário, o escritor, o embaixador, etc.). Esta cena anuncia também outro dos valores da dramaturgia da realizadora, o gosto por cenas em que dezenas de actores enchem o plano e Schrader trabalha esta visão coral (da história e da História) através de um virtuoso trabalho de som que resulta na direcção precisa do olhar do espectador.
Epílogo. Petrópolis, 1942. De novo o plano sequência fixo seguido de ligeiro travelling à frente, de novo a acção sincopada pelo trabalho de som e de novo o número elevado de actores em cena (do jardineiro à futura nobel da literatura Gabriela Mistral). Só que desta vez a planura do enquadramento do prólogo verte-se numa disposição dos actores que desmultiplica o espaço numa série de patamares de acção que revela uma apuradíssima coreografia que baralha as nossas noções de geografia e de orientação na cena. A juntar a este trabalho de profundidade de campo está a introdução de um espelho que, pelo re-enquadramento proposto pelo travelling, cria um splitscreen inesperado. Esta solução faz recordar outro plano final, desta feita de The Immigrant (A Imigrante, 2013) de James Gray. Tanto esse como este plano parecem literalizar a frase de Andrew Sarris de que “Todo o cinema é um espelho e uma janela”. Aqui, por ser a sequência em que se descobre Zweig morto, com a mulher, a divisão do ecrã e a composição do espelho e da janela (ao fundo) remetem imediatamente para oposições entre vida e morte ou entre o que fica para trás e o que ainda está para a frente.
Soluções de câmara como estas (fundeadas tão fortemente na narrativa e ainda assim dotadas de um apuramento técnico tão cativante) confirmam o olhar de Maria Schrader como um de enorme valor. Pena a dessincronia com o resto do filme.
P.S.: Ressalve-se a produção associada portuguesa (da Cinemate de Ana Costa) no filme. É por ela que se justifica a presença de tantos actores portugueses no elenco (a fazer de brasileiros — João Lagarto, Virgílio Castelo, Carla Vasconcelos, Maria Vieira e Nicolau Breyner num dos seus últimos papeis), assim como a rodagem na casa do presidente da Câmara de Lisboa (a fazer de Buenos Aires) ou em São Tomé e Príncipe (a fazer de floresta amazónica).