Desde Enjaulado (1997), portanto desde a sua hora zero, que o cinema de Kleber Mendonça Filho é uma experiência de clausura e medo. Medo de quê propriamente? De uma envolvência empestada pela violência e a corrupção – corrupção de Estado como corrupção de classe. Não espanta que Aquarius (2016) se tenha transformado num filme-sintoma sobre o naufrágio político e social de um país inteiro. Todo o filme é norteado por uma lógica conservadora – digna de Hawks ou Carpenter – de defesa de um lugar sentimental, moral e até, diria, político que aqui ganha forma concreta, uma espacialidade muito sensual: é o apartamento de Clara, a destemida, heróica – em sentido clássico – protagonista interpretada por Sónia Braga. Ela grita “fora!” e resiste à empresa de construção que a quer pôr borda fora para no lugar do edifício onde vive construir mais um arranha-céus, mais um bloco de betão “sem memória”. Dizem que Clara é um fantasma e talvez o seja. É pelos fantasmas – os da memória, da arte e do sexo – que Clara e o realizador, Kleber Mendonça Filho, mobilizam o seu movimento de resistência. Estamos na presença de um filme de cerco passado nos tempos modernos, num Brasil invadido já não apenas pelo crime de rua, mas, ainda pior, bem pior…, pela manha e mesquinhez dos homens do dinheiro e do poder. A pertinência é assim tão grande? Talvez, mas falta-lhe violência na mensagem – mais convicção na sacudidela – para ser um grande filme político.
Cercada pela hipocrisia e o cinismo, Clara é uma ruína de um outro país, de um outro tempo. Jornalista melómana, ela espanta os espíritos passando música com grão no seu gira-discos antigo. A colecção de vinis é só parte dessa memória sentimental que não só habita como é a sua casa, do primeiro ao último tijolo. Na casa, damos de caras com o principal “texto” formal do filme: um cartaz de Barry Lyndon (1975). Depois dos magistrais minutos iniciais, está identificada a origem dos zooms sensuais e o gosto pela composição que enquadra várias personagens ao mesmo tempo numa espécie de “friso”. Apesar disso, Kleber Mendonça não se deixa afectar totalmente pela origem das suas “estratégias formais”. É tímido, por vezes em demasia, mas também sabe fugir. É o que faz a sua câmara sobre a cómoda da tia Lúcia, na sequência mais prodigiosa de Aquarius. Pela peça de mobiliário o filme “imobiliza”, trava no tempo, a memória da nobre senhora. Ela sonha com tempos de volúpia que tinham como adorno a tal cómoda. No filme – no cinema, dir-se-ia – de Kleber Mendonça Filho, uma cómoda não é uma simples cómoda. Já em Som ao Redor (2012) – e antes em Electrodoméstica (2005) – o realizador brasileiro tinha transformado uma máquina de lavar roupa num vibrador feminino.
O filme está tomado por uma maquinaria – bem oleada, é verdade, habilidosa, também é verdade, mas… – incapaz de dar a volta aos seus automatismos.
Sexo, medo, memórias, cerco e violência. Violência? Kleber Mendonça continua a seguir os passos de um dos seus heróis, John Carpenter. O formato largo denuncia a aproximação, mas, mais que isso, Aquarius é um exercício sobre o fora de campo, aquilo que nos foge, que se esconde, por trás, por cima, pelos lados. Há sempre qualquer que escapa, que nos escapa, em cada cena do filme. A confusão gera-se: será este um drama adulto sobre uma mulher que resiste, que diz “não”, ou um filme de terror, de home invasion, sobre a persistência da memória – dos fantasmas da memória – e o horror pela envolvência – a sociedade como estrutura de medo e agressão? A psicologia do terror é a psicologia das personagens de Kleber Mendonça Filho. A linguagem do terror, quase puramente cutânea aqui, será a que melhor veicula o sentimento de uma sociedade sob permanente estado de tensão. O terror está, sempre, no pano de fundo, uma espécie de “ruído branco” que contamina e adensa o ambiente do filme. Já era assim, aliás, com ainda mais acutilância, em O Som ao Redor. Há uma tentativa de reeditar a fabulosa sequência nesse filme, em que uma das personagens sonha – ou será que não é sonho? – com a invasão da sua casa por “mortos-vivos” vindos das favelas. Contudo, a história da empregada negra que ocupa o apartamento de Clara no seu campo cego não causa o mesmo arrepio.
A estratégia de Kleber Mendonça parece ser sempre a mesma: em cada cena há um fio que fica solto, qualquer coisa que se sugere, que, desse modo, se anuncia, mas que, mais tarde apercebemo-nos, não se irá cumprir. É por estas brechas que Aquarius se faz thriller e também é por causa disso que tudo o que se joga entre as quatro paredes – ia dizer do apartamento mas é mesmo do filme – se faz acção crítica contra as nossas mais conformadas expectativas – o próprio heroísmo de Clara está longe de ser consensual dentro do filme e aos nossos olhos. Com isto, o filme sofre de um problema típico ao thriller: muitas vezes, a incapacidade de estar à altura das expectativas criadas. Os minutos iniciais de Aquarius empurram o filme, mas este não aproveita totalmente o embalo magistral. Fixa-se demasiado no poder da sugestão dentro do drama da protagonista. Falta-lhe, apetece dizer, violência para levar mais longe o conflito da personagem com as forças abismais da memória e do poder. Nunca mais viajámos como viajámos – vai ficando lá para trás a cena da cómoda da tia Lúcia como parte de uma obra-prima-que-não-chegou-a-ser. O filme está tomado por uma maquinaria – bem oleada, é verdade, habilidosa, também é verdade, mas… – incapaz de dar a volta aos seus automatismos. O tempo passa e vai ganhando forma a sensação de que o filme vai ficar teimosamente retido, como Clara, no seu próprio apartamento formal. Disse-o bem Kleber na entrevista que me concedeu há dois anos: “Os filmes são como a minha casa. Se for a minha casa, é importante que pareça que eu moro lá. Para mim, os filmes precisam de ser assim.” Aquarius acaba por resistir pouco – menos do que esperava, pelo menos – à tentação de ser somente, no fim do dia, uma casa revisitada, um O Som ao Redor 2.