O corpo está muito próximo do cinema, o grande olho que vê e regista as coisas, olho surreal ou potencial emocionante (Jean Epstein), o filme imprime vida (Marcel L’Herbier), e morte, e traz o corpo de volta, carnal ou metafísico. O cinema pode carregar-se de um poder único na captação das coisas que se inscrevem nas imagens, tangíveis ou intangíveis, formando corpos e activando presenças e fisicalidades.
O corpo sexualizado na dimensão pornográfica é desde os inícios do cinema alvo de grande interesse, e muitos filmes do passado têm vindo a ser repescados, renovando-se pela prática found footage, para se formarem novos espaços narrativos e plásticos.
O trabalho que Dietmar Brehm, importante artista e cineasta da vanguarda do cinema austríaco, tem explorado em muitos dos seus filmes, o corpo como zona de performance e potência multiforme. O artista fez um trabalho de collage de imagem e som de restos de filmes pornográficos, familiares, ficcionais ou científicos, sem inquietação de género.
Black Garden (1987-1999) é disto questão como obra peculiar que se constitui em seis filmes: The Murder Mystery; Blicklust; Party; Macumba; Korridor; Organics.
Black Garden é considerado um projecto ambicioso de recolecção de materiais seleccionados de carácter pornográfico e erótico, com imagens descartadas, retiradas do espólio da cultura de sexo, violência e horror do séc. XX.
Em The Murder Mystery, o início do filme arranca com um observador de óculos escuros, em grande plano, num ambiente superlativamente voyeur – o clima está instalado. As imagens que se seguem são indistintas, entre o voyeur que observa surgem paralelamente cenas de sexo: corpos, mãos, rostos de prazer, fruição em grande plano, vagina, pénis, um mergulhador a sair do mar, um corpo arrastado, e mais planos incomuns de masturbação muito próximos. Tudo isto acontece numa montagem feita por fragmentos, onde alguns macro planos de sexos transformam-se em abstracções luminosas. A cor é pro-sépia com luminescências amarelas e vermelhas. Brehm, joga com o lado imperceptível e escondido da representação da imagem num trabalho de estimulação ao acto de “ver”. Ouvir também é aqui importante, como o som evocativo de um combóio, o desfilar de vagões, o som de um navio, uma tempestade a rebentar, o mar, pássaros… O ritmo desacelerará para o final, e a imagem transforma-se, modificando-se abstractamente em vermelho vivo. Fica a ideia da imagem a ser possuída ela própria, recriando-se plasticamente. Adivinhamos, por fim, o mesmo corpo que foi arrastado no início. Pode dizer-se que, ao mesmo tempo que as imagens se vão recortando, mais ou menos, de forma perceptível, o que fica é uma amálgama de natureza mais sensitiva próximo da abstracção. As impressões são fortes e a combinação entre imagem e som instala uma atmosfera plástica e dramática, penetrante, que parece ‘entranhar-se’ na imagem, contaminando o tom geral.
Blicklust, é o 2º segmento e abre com a figuração de um olho (os olhos são recorrentes em Brehm), e acrescentando-se um fundo sonoro, ruidoso e persistente. Imagens de arquivos científicos, com planos de intervenções cirúrgicas, (autópsias!?), cruzam-se com planos de uma mulher amarrada e ainda paisagens exteriores. O ambiente é particularmente cru e visceral. A imagem plasmada revela o prazer sádico-masoquista, somando-se com uma visão de um certo horror. Uma estranha narrativa do corpo e da carne parece ser o centro disto tudo. Corpo sacrificial e pulsional, e corpo entregue à ciência, passivo e inerte, balança-se aqui. Brehm usa imagens impressionantes de intervenções cirúrgicas com pinças a operar directamente no corpo intensificando as sensações que se projectam na imagem que não apetece olhar. Horror e pornografia, pornografia e horror aliam-se.
Por sua vez, o cinema pornográfico, pela sua natureza mais descarnada, enceta reflexões à volta da questão da crueza, ou da “pureza”, das imagens que se autonomizam enquanto objecto proibido e desejado, que pode atingir níveis inomináveis. A pornografia vai tornar-se matéria de reflexão com algumas apreensões que contactam sentidos opostos: “A pornografia é a única arte que concilia na ‘perfeição’ a trivialidade da carne e a pureza da abstracção. O espectáculo torna-se opaco e abre-se à pureza fantasmática da abstracção mais perfeita. Momento culminante onde a retórica dos corpos e dos rostos se suja no mais lamacento dos realismos.” (Olivier Smolders).
Em Party (1995), uma mesa, cadeiras vazias, e uma janela na penumbra, aparecem numa imagem latejante, sucedendo-se depois escorpiões em luta, e o som da água a correr. Aqui as mãos têm grande destaque – dedos alongados, tentaculares masturbam uma vagina, em grande plano, e ouve-se o som de um homem a barbear-se. Trata-se de uma mistura de materiais vindos de filmes americanos, russos, japoneses e do próprio realizador, que se constituem labirínticos, desconectados entre si, organizando-se agitadamente, com uma carga notória de perturbação, dada a natureza das imagens que instalam uma atmosfera carregada, estranha, de horror e fantástica. Brehm diz acerca de Party: “(…) às vezes filmo de modo a que os actores pareçam ser mortos vivos”.
Com o segmento Macumba (1995), encontramos um filme étnico de rituais africanos, onde se cruzam imagens pornográficas de um casal de negros, serpentes, zebras, fruição jubilatória de sexo, mais o som de alguém a barbear-se, e o som da chuva. As imagens processam-se de forma mais leve sem o ambiente denso dos filmes anteriores. O jogo da montagem constrói-se por associações livres, onde o casal de africanos transita para um parque, onde há uma cobra e se juntam imagens de Bosquímanos de Kalahari. Brehm diz na sinopse de Macumba: “Às vezes a câmara filma por vontade própria”. Aqui temos mais um acasalamento de materiais que se vão compondo entre improbabilidades e acasos para comunicarem de forma “tão incompreensível como a vida real”, afirma Brehm. O jogo associativo lembra os exercícios psicanalíticos do grupo surrealista e o prazer da criação automática e da resposta inconsciente.
Korridor (1998) desenvolve-se num esquema circular que arranca com a copa de um álamo frondoso contra um céu escuro a clarear, e fecha com esta mesma árvore. Avança com o travelling de um portão e a fachada de uma casa gótica. Cruza rostos, casais, uma mulher morta, um beijo em grande plano, uma mulher acorrentada, e ainda, sons urbanos, aviões, um alarme, e muitos separadores a negro. Korrridor parece estar a contar uma história, um fait divers, que apela a um huis clos secreto de sexo e crime, filme de suspense ou thriller série B. As imagens encontradas para esta montagem são dos anos 60 e foram reusadas pelo realizador numa projecção em espelho onde se filma também a si próprio. Brehm quis trabalhar uma dimensão mais artificiosa e formal que pudesse ‘conduzir’ as imagens para a ideia de trauma, elaborando uma ‘possibilidade’ narrativa desta ordem, entre a história de possível género (sub género), e uma camada adicional plástica de valor cinestésico.
Organics (1999) possui uma forte vibração que a imagem emite como efeito de pulsação e efeito técnico conseguido pela manipulação do suporte original, muitas vezes refilmado. Temos a figura de um Zorro, mais um rosto feminino coberto por uma película, e um observador – a que Brehm deu o nome de “Hey Joe”. O projecto terá começado em 1996, por uma série de fotografias feitas pelo do realizador, com o nome “Organics” que veio a dar o mote ao filme. As imagens conjugam-se e contrastam com explosões, Notre-Dame, um colar de pérolas, cortes no pulso, um beijo. Um filme que “vibra” e faz uso desse efeito e da luz para compor um “momento”, feito de intercepções e associações. A fusão das imagens resulta num corpo que vai juntando elementos mais estranhos e sombrios (esqueleto, operações, cabeça enfaixada), com um envolvente beijo, em grande plano, que parece tomar o todo e criar um centro receptivo de diferente natureza. Isto porque o beijo está num plano de grande proximidade, pela escala, e tem na composição uma incrível expressão romântica. No meio do sobressalto, do horror, há um lado que vem da natureza dos sonhos que sobrevive ou ainda vive ali.
Black Garden revela-se num todo obscuro, por vezes impenetrável, e absolutamente susceptível a leituras múltiplas. A discrepância das imagens montadas e a sua estranha aproximação têm a capacidade de dilatar sentidos, e abrem inúmeras possibilidades de recepção e interpretação. É como se Brehm quisesse explorar a história invisível e reprimida do cinema na sua maior e natural degeneração e perversão.
A força experimental da escola austríaca activa-se na prática found footage e na remontagem de imagens pornográficas, herança de um espírito aguçado e transgressor que privilegiou a inovação formal e a liberdade narrativa.
Juntam-se a Brehm outros nomes de cineastas e artistas austríacos como, Peter Kubelka, Kurt Kren, Valie Export, Martin Arnold, e Peter Tscherkassky, entre inúmeros outros, que são sobejamente importantes e conhecidos na prática found footage, ou em experiências com o corpo, a apelar incessantemente a uma reinvenção de novas “grafias porno”. Tem-se desenvolvido importantes discursos e reflexões sobre o assunto com visões acerca do corpo, a grande personagem do género, que funciona como depósito de prazer, máquina de poder, ou engenho político, fábrica de guerra, ou ainda de morte.
Gustav Deutsch, com Film Ist. a girl & a gun (2009), é disto exemplo ao conceber um drama cinematográfico em 5 actos – Genesis, Paradeisos, Eros, Thanatos e Symposium – a partir de uma profusa montagem de imagens, organiza o mundo num complexo espaço de desejo, guerra e morte, cheio de combinações e atracções corporais (Cowan, 2010). Um tom sexualizado perpassa pelas imagens que operadas formalmente pela montagem agenciam-se em planos de encontro ou separação, num ritmo associativo peculiar a lembrar a cópula: “[…] o uso sistemático da montagem associativa através da qual os seres e as coisas de naturezas várias – humanas, animais, plantas, ondas, soldados, bombas ou espermas – revelam a sua atracção umas pelas outras no écran.” (Idem).
Por seu lado, Dietmar Brehm, exibe nos seus filmes visões físicas e sacrificais com composições cruas e cheias de visceralidade, onde as imagens possuem uma força raramente conseguida no cinema não-narrativo do tipo analítico. Tornam-se imagens detentoras de um obscuro poder de atracção que estimula curiosos jogos de percepção e inteligibilidade. A autenticidade destas imagens reconhece-se e evidencia-se por uma visceralidade que toca e constrange. O carácter despido e descarnado da extremada mise-en-scène, reorganiza de tal forma as imagens originais que permite extrair delas outra força e outra violência, muito interpelativas. A autenticidade mostra-se, dá-se a ver, à medida da exposição dos corpos, num espaço de collage e criação, onde a pornografia serve como forma central de ligação das imagens e de reformulação narrativa e formal.
A apropriação de Brehm do material pornográfico e a sua composição desenvolve-se num campo de procura e de correlação do mundo das imagens que pode ter um eco nas palavras de Lardeau: “O porno na sua demagogia, penetra completamente nesta ordem estratégica (política) da problemática da verdade e da liberdade. (…) Este campo produtor de poder e armadilhado na sua própria subversão, confere ao porno o seu verdadeiro sentido.” (Lardeau, 1978). Brehm, elabora Black Garden, numa dicotomia entre o fulgor dos sentidos, livres e primários, e por outro, coloca o corpo como esquema activo sensitivo e dependente, numa máquina relacional de subjugações e interdependências. Smolders e Lardeau ligam a pornografia a uma arte inerente ao próprio gesto cinematográfico, onde a presença do grande plano parece fazer parte desta verdade, pela aproximação íntima e invasiva ao sujeito.
Acrescenta-se a ideia de Smolders que pode também testemunhar o sentido tomado por Brehm, no gesto de ‘’ver’’, e na recorrência obsessiva das coisas que gera um possível resultado, ou lapidar pressuposto: “Se o cinema é por excelência a arte de ver, a pornografia é o mais cinematográfico de todos os cinemas, fundador desta paixão devoradora do olhar, que se propõe mostrar tudo, ver tudo, arriscando por fim mostrar que não há nada para ver” (Smolders, 1992). É também nesta ‘paixão’ de olhar, re-olhar e compor, que Black Garden, este jardim negro de imagens, jardim dos suplícios, do sonho e pesadelo, se mostra e se produz. E por fim, a própria pornografia releva-se neste campo de recriação com um papel muito importante pelo espaço de interesse que tem provocado e pela conquista de outros lugares no cinema, que percorre o tempo anacrónica e sintomaticamente para se reproduzir em novas correntes de ligação e sentido, e se produzir incessantemente em novas-velhas imagens.
Referências:
Cowen, Michael (2010) “Les rythmes du désir filmique chez Gustav Deutsch”, em, Revue Intermédialités, nº 16, 2009-216.
Habib, André, e, Cowan, Michael (2011) ‘’Was Ist Film ? Entretien avec Gustav Deutsch’’, site, Hors Champ, Québec.
Lardeau, Yann (1978) “Le sexe froid, cinéma et pornographie”, in Cahiers du Cinéma, nº289.
Smolders, Olivier (1992) Éloge de la Pornographie, Ed. Yellow Now, Bélgica.