A metáfora inapropriada que Jeroen Dijsselbloem proferiu no outro dia (comparando o modo como os países do sul gerem os seus fundos aos de uma pessoa que os despende em putas e vinho verde — tradução do autor — e depois pede mais para os gastar da mesma forma) serve bastante bem para enquadrar En man som heter Ove (Um Homem Chamado Ove, 2015), especialmente o seu protagonista. Ove é um velhote resmungão que se entretem a controlar as vidas dos outros, impondo regras absurdas e medidas de austeridade (sócio-comportamental) aos seus vizinhos. Todos são idiotas, nenhum deles faz nada bem, todos gastam o seu tempo mal gasto e organizam-se desorganizadamente — até têm a desfaçatez de pôr açafrão no arroz, veja-se lá. Ove representa, até certo ponto, um olhar que temos tendência a associar aos altos burocratas europeus e ministros das finanças da Europa central e nórdica (narrativa que a nossa patrioteira imprensa construiu alegremente pelo seu potencial clickbait). E da mesma forma que o comentário de Dijsselbloem é ignorante e absurdo, também o comportamento de Ove o é. Só que, como no cinema de Renoir “todos têm as suas razões”, o realizador Hannes Holm tratará de justificar a arrogância vetusta do protagonista.
Se a comparação que fiz entre Ove e Dijsselbloem pode parecer forçada, na verdade não é. Num dos episódios fulcrais do filme (do ponto de vista narrativo), Ove e a sua mulher viajam aos ditos “países do sul”, em particular a Espanha, e o engenheiro sueco cedo descobre que os edifícios e demais aparatos públicos estavam muito distantes das normas do seu país. Não será pois por acaso que nesse passeio às terras soalheiras o casal beba muito vinho e coma sandes de fiambre em catadupa. E não é também casual que seja exactamente nas estradas espanholas que se dará um acidente de viação que alterará profundamente a vida de Ove e da sua esposa (e que a incompetência dos profissionais de saúde lhe dê dissabores escusados — mas essa parece ser mais uma manobra do argumento do que qualquer outra coisa). Ainda que não esteja esplanado de forma evidente, ao longo de En man som heter Ove pressente-se esta superioridade nórdica. Esta ideia de que o rigor e a ordem (social e financeira) são valores que se sobrepõem a todos os outros. Ove faz parte desse plutão mais aguerrido que trata de impôr esse valores aos ignorantes (ele diria idioten) e imberbes P.I.G.S. — e Holm faz-nos desculpar-lhe tudo através da sua máquina lacrimejante.
O humor negro traz uma estranheza à doçura de toda a empresa, o que a acidifica.
A maior graça de En man som heter Ove é no entanto o seu niilismo burlesco e a forma como este serve de dispositivo narrativo. Ove pretende matar-se (vários dos diálogos/monólogos por si proferidos dizem coisas tão cómico-depressivas como “Desta vida ninguém sai vivo” ou “Morrer é mais difícil do que parece”) e tenta-o de várias formas (a forca, o escape do carro, a caçadeira na boca, os comprimidos), acabando sempre por ser interrompido por um desses vizinhos intrometidos. Cada tentativa de suicídio motiva um flashback que revela episódios da vida de Ove. Cada um dos episódio justifica a sua amargura. Vamos assistindo às suas múltiplas perdas e a cada uma o homem do passado enforma-se mais no homem do presente. Este humor negro traz uma estranheza à doçura de toda a empresa, o que a acidifica. En man som heter Ove é portanto um filme agridoce, a pender para a diabetes.
Contudo, durante o filme de Hannes Holm não pude deixar de pensar em Clint Eastwood (perdoai-lhe Senhor que ele não sabe o que diz). Em particular um dos seus mais recentes filmes: J. Edgar (2011). Nesse filme a temática do envelhecimento é um núcleo narrativo (mesmo quando já não é o Eastwood actor o protagonista) e assume as suas consequência mais profundas — literalizada por toda a camada de silicone e maquilhante acumulada nas faces dos actores, que é propositadamente exagerada, com o intuito de construir a carapaça — não metafórica — da velhice (carapaça essa que esconde um espírito muito mais jovem do que o corpo aparenta). Neste sentido há um raccord maravilhoso, o casal Hoover e Tolson, envelhecidos e com as suas gabardinas e malas de cabedal pela mão entram num elevador, quando saem são de novo jovens, cheios de energia, motivados a iluminar o caso Lindbergh. E assim, num simples corte, Eastwood explicita esta que é a mais pessoal das ideias dos seus filmes, a de que ele mesmo está envelhecido, mas não é velho nenhum.
Pois bem, En man som heter Ove foi nomeado, além do Óscar de melhor filme estrangeiro, para o Óscar de melhor maquilhagem. Também aqui se constrói essa carapaça, e também aqui se termina o filme com o casal reencontrado na sua “recuperada” juventude. A proximidade entre os filmes não é de todo forçada, ainda que Ove seja muito menos conservador que Hoover (e que Eastwood, o mais queridos de todos os republicanos pró-Trump?), anunciando a tal juventude escondida por de baixo da máscara. Ele é um homem para o qual a misantropia é um gesto democrático, igual para todos. E como tal não é particularmente surpreendente quando o vemos conviver com os vizinhos muçulmanos ou com o adolescente gay. As suas fobias não são homo- nem islamo- nem sequer xeno-, ele simplesmente não gosta de pessoas, em geral. Pouco importa se elas comem arroz com açafrão ou putas com vinho verde. E este é o lado verdadeiramente redentor do filme: Ove é um cabrão para todos, e não só para os países do sul, como Jeroen Dijsselbloem.