James Mangold é um desses realizadores que vão rareando pelas terras brilhantes (e abrilhantadas) de Los Angeles. Aquele tipo de profissional tarefeiro no qual o estúdio (e os patrões com a massa) podem confiar que fará um filme sem floreados, competente e no ponto exacto entre o comércio e a respeitabilidade. Quando as novas gerações de realizadores que dominam as grandes produções de Hollywood cresceram já com a sombra do cinema de autor sobre as costas, é já quase impossível encontrar quem se escuse a essas pretensões europeias e se limite a fazer o seu trabalho, o melhor possível. Como diria John Ford, que detestava essa releitura semiótica, estética e psicanalítica do seu trabalho (ainda que se insista que secretamente ele lá ia lendo Joyce e Homero), “I like, as a director and a spectator, simple, direct, frank films. Nothing disgusts me more than snobbism, mannerism, technical gratuity… and, most of all, intellectualism”. Pois bem, John Ford era capaz de gostar de Logan (2017).
Mas referia-me a Mangold. Logan é o seu décimo filme, e até aqui já fez um thriller policial, uma comédia romântica, um melodrama, um biopic musical, um western, um filme de terror, um de acção e outro de super-heróis. Posto isto talvez a comparação clássica não deva ser com Ford, mas com Hawks (mas ele também não se deve importar). Não se lhe identifica facilmente um estilo, mas talvez se entreveja, nas suas obsessões e recorrências, a figura de um homem avesso ao mundo, desterrado do tempo, dos colegas, da sua era ou de si mesmo. Nesse sentido Logan é evidentemente um filme de Mangold — embora isso queira dizer muito pouco (do mesmo modo que afirmar que Logan é um excelente filme de super-heróis também não quer dizer grande coisa). Mas creio que importa perceber, antes de mais, de onde vem este filme. Não no sentido de perspectivar Logan no conjunto dos anteriores 8 filmes em que o personagem de Wolverine (Logan é o seu primeiro nome, interpretado por Hugh Jackman) aparece, mas no sentido de compreender a linhagem estética e narrativa na qual Logan, o filme, se insere. Mangold terá explicado em entrevista que o filme resultava de uma trindade (ou de uma conta simples de aritmética): Shane (1953) + Little Miss Sunshine (Uma Família à Beira de um Ataque de Nervos, 2006) + The Wrestler (O Wrestler, 2008). Não é propriamente o pináculo da cinefilia mas ajuda a perceber a natureza do filme, pelo menos na perspectiva do seu realizador, um western dos tempos modernos virado road movie familiar em torno de um herói decadente.
A figura de Hugh Jackman num ramerrame de grunhidos ocasionalmente pontuado pela sua cara de pimento intumescido, qual caricatura à lá irmãos Coen de um vaqueiro alcoólico com prisão de ventre, não auxilia o esforço melancólico da empresa
Lamentavelmente Mangold não inclui, na sua tríade, nenhum filme de Clind Eastwood. É aí, parece-me, que se deve fixar a paternidade do filme. Proponho então uma reformulação da aritmética anterior: Unforgiven (Imperdoável, 1992) + A Perfect World (Um Mundo Perfeito, 1993) + Gran Torino (2008). Eastwood viveu e vive sob a força icónica dos seus personagens fundacionais, o homem sem nome nos filmes do Leone e o detective Harry Callahan. Enquanto realizador Eastwood compreendeu de forma singular que esses personagens lhe estavam colados de tal forma, que mais ninguém os poderia representar. No entanto Clint foi sofrendo essa coisa que é o passar do tempo, sendo por isso obrigado a envelhecer os seus personagens outrora jovens e vigorosos. Isto foi um processo gradual, mas teve como pontos mais marcantes: quando o Dirty Harry se torna em mentor no The Rookie (1990) e depois no reformado polícia com problemas coronários em Blood Woork (2002) e por fim em veterano de guerra, idoso, e resmungão em Gran Torino; já o vagueante pistoleiro teve uma vida mais curta, tornando-se atracção de circo em Bronco Billy (1980) e lenda envelhecida em Unforgiven. Faço este desvio pela obra de Eastwood para afirmar, com alguma segurança, que um dos nódulos temáticos do seu cinema é a velhice — vide J. Edgar (2011), Space Cowboys (200) ou mesmo Bird (1988) — e consequente passagem de testemunho.
Logan é um exercício de aluno aplicado (os temas da velhice e da passagem de testemunho estão aqui perfeitamente decalcados) e o tom elegíaco da estrada sem fim e da infância perdida em A Perfect World surge com força ao longo de todo o filme. Dizia-me um amigo, no final da sessão, que tinha passado aquelas duas horas e um quarto com a cabeça a fervilhar com as múltiplas cenas e personagens para o qual este filme o remetia. O problema de Logan, e do cinema de Mangold em geral, é sentir-lhe uma falta de fundo — e não é pela representação mais ou menos gratuita da violência sanguinolenta que esse fundo subitamente se encontra. Não que as coisas me surjam ocas ou postiças; tudo me parece feito de pedra-pomes, sólido mas flutuante. E a isso não ajuda, de modo nenhum, a figura de Hugh Jackman que percorre o filme num ramerrame de grunhidos ocasionalmente pontuado pela sua cara de pimento intumescido, qual caricatura à la irmãos Coen de um vaqueiro alcoólico com prisão de ventre. E claro, o final entre The Goonies (Os Goonies, 1985) e Village of the Damned (A Aldeia dos Malditos, 1960) a piscar o olho à sequela juvenil também não auxilia o esforço melancólico da empresa.
Posto isto, louva-se as origens de Logan, o caminho e as intenções que o trazem até aqui, aprecia-se a dedicação e o modo como se conseguiu quebrar o molde (já calcificado) do género dos super-heróis. Mas lá por o filme escapar por entre as fissuras do molde não deixa de estar encerrado nele: um universo supernatural CGI que se dá dificilmente às intenções clássicas dos seus criadores.