Foi uma coincidência que não podia deixar de trazer aqui. Aconteceu perto da “grande noite” – é assim que em certos meios, sobretudo os televisivos, é adjectivado o serão que consagra os mais belos, ricos e “discriminados” actores e autores do cinema americano e “resto do mundo”. Deixei para o fim – estilo sobremesa especial da casa – aquele que me parece ter sido o melhor dos principais títulos nomeados para esta recente e atribulada cerimónia dos Óscares: Arrival (O Primeiro Encontro, 2016) de Denis Villeneuve. Ao mesmo tempo que o filme veio trazer definição às minhas preferências na entrega do Óscar de Melhor Filme, aproveitei a oportunidade para gerar um double bill a partir de um encontro de terceiro grau em plena televisão portuguesa, mais concretamente no canal TVC 2, com um clássico de ficção científica, género tão pouco ou mal representado na história desses prémios. Falo de The Day the Earth Stood Still (O Dia em que a Terra Parou, 1951) do multifacetado Robert Wise (já agora informa-se que o remake ecologista, com Keanu Reeves e Jennifer Connelly, tem passado no canal AXN). Nos dois filmes a questão sobre as boas intenções da entidade invasora é objecto de desconfiança e inquietação por parte de uma população humana tomada pelas suas emoções mais pequenas. O forasteiro, com aparência e tecnologia indecifráveis, desperta o pânico numa humanidade cindida por uma longa história de conflitos. Não sei se a noite de Óscares é uma gala sobre alguns desses conflitos, e o cinema está à volta, ou um ajuntamento que, secretamente, faz gala desses conflitos em nome da ideia de que as coisas que dão conteúdo à vida estão antes ou depois da projecção do cinema; em nome dessa doxa velada para a qual o cinema, em si, por si, não é suficiente para dar volume às existências que nos habituámos a ver como estrelares: a dos actores e realizadores.
A Hollywood moderna reconta a história do estrangeiro que entra pela nossa casa adentro sem bater à porta. Não traz consigo rosas e chocolates, mas uma mensagem. Ou melhor, a mensagem. É preciso ouvi-la, isto é, saber ouvi-la. O nosso futuro como raça dependerá da melhor ou pior compreensão daquilo que eles, os outros-absolutamente-desconhecidos, nos querem transmitir. Arrival e The Day the Earth Stood Still transformam, deste modo, o drama num problema de comunicação, de linguagem, de contacto – e de toque – entre culturas separadas pelo abismo da ignorância – e pequenez – de uma delas. Cabe-nos a nós, humanos, o papel de sermos, pela primeira vez?, a parte fraca de um diálogo, mas – é aí que estará a grande lição dos “invasores” – somos levados a um esforço que desafia e transcende a nossa pequenez: o de sabermos ouvir o outro.
Antes de descer mais à relações possíveis entre dois filmes separados por mais de cinquenta anos, gostava só de voltar a essa noite multimionária de acção vagamente artística e vagamente cívica. Os Óscares tornaram-se palco para gente famosa e muito rica canalizar os seus estados de alma sobre o mundo e actualizar a etiqueta planetária do “bom civilismo”, do “civilismo bem”. Em certos momentos, assemelham-se a comícios dourados para a celebração – quem disse cínica? – do politicamente correcto. Antes de discutirmos o mundo dos filmes, temos de sentir o pulso do filme deste mundo, medindo as injustiças com uma fita métrica e calculando toscamente as fórmulas da prosperidade – material? Não, humana! Portanto, antes de tocarmos neste assunto pendente que temos aqui, o cinema, digam lá, caros Óscares, quantas mulheres, quantos negros, quantos hispânicos, quantos árabes, quantos… quanta gente “diferente” está representada nos filmes nomeados? Não me espanta que a partir daqui nasçam as reacções mais desconfiadas e até as mais profundamente racistas: “deram o prémio àquele porque é preto, porque é gay, porque é coxo, porque é careca, porque é…”.
Existe uma pertinência no erro, sobretudo num ambiente tão sequestrado por uma ideologia assente em banais e circulares convicções – o “todos diferentes, todos iguais” desta vida.
A cerimónia dos Óscares tem – há muito tempo que tem, não é de hoje – qualquer coisa que é familiar à hipocrisia dos jantares natalícios. Junta-se os pais, os tios e os primos desavindos em nome de uma ideia-mito de uma humanidade amiga, junta, solidária. É uma ideia-mito consumista? Sim, muito mais do que propriamente cristã, já que o menino Jesus, a razão de ser da cerimónia, é menos eloquente que o Pai Natal da Coca-Cola, a entidade que verdadeiramente patrocina a grande noite. À volta da mesa farta em delícias, ao pé da árvore luminosa, tem de haver espaço para a sessão fotográfica que ponha em cena aquilo que pertence mais ao domínio dos desejos do que ao domínio da vida. Porque na realidade a paz do mundo não vem com discursos de Miss Mundo. Os Óscares, claro, têm qualquer coisa a dizer e percebo: talvez, no fundo, no fundo, queiram não só ser o retrato de uma humanidade para “turista ver” como ser o retrato de uma humanidade que ainda não se cumpriu. Está tudo correcto em traços gerais, pois claro. Eu também quero – como não? – uma sociedade e um cinema abertos a todos, independentemente do seu credo, raça, género, opção sexual, nacionalidade, o que quer que seja.
Contudo, e isso não só não percebo como condeno, a doxa dos Óscares incorre no erro crasso de muitas vezes – demasiadas vezes – colocar em pano de fundo a profunda razão de ser da vistosa reunião “estrelar”. Será preciso acrescentar tanta camada discursiva sobre qualquer coisa que é, em si, tão conciliadora e politicamente relevante como é o cinema, nação de todas as línguas, de todos os credos, de todas as cores, de todas as idades, de todos os ideais, mega-continente onde andam, lado a lado, de mãos dadas, todas as convicções e seus embates? É ele, o cinema, que, assente nas forças e fraquezas do humano, transforma a humanidade num discurso convulso, contraditório, por vezes muito amargo, mas, ao fim do dia, perfeitamente integrado. O cinema fala por si. Fiquemo-nos pela sua celebração, não falemos tanto por ele. Ele é agenda de si e é agenda suficiente para alimentar todos os nossos sonhos e revirar cada uma das nossas inquietações ou frustrações, mesmo as mais imobilizadoras. Talvez seja por isso que o cinema é – continua a ser – a arte mais popular. Mais popular e, simultaneidade fascinante, das mais problemáticas – ninguém senão esse bicho chamado cinéfilo sabe gritar tão bem, com tanta arte, “Viva o cinema!” enquanto perora até à eternidade sobre o tema da sua morte.
Por tudo isto é que o tão falado desenlace desta edição dos Óscares foi revelador. Qualquer coisa que saiu dos planos – literalmente, até os da realização televisiva! -, verdadeiro happening sem agenda: o erro humano mostrado em todo o seu esplendor. André Bazin dedicou os últimos anos da sua vida ao estudo dessa coisa então ainda meio difusa chamada televisão. O crítico realista deslumbrava-se com a potência transcendental do directo televisivo. Ele permitia o acesso a um tempo – e tudo o que de imprevisto vem com ele – quase sem máscara. O crítico francês não continha o entusiasmo de, numa cerimónia televisionada, ter avistado um dos seus heróis máximos entre os membros de uma plateia: Charles Chaplin. Ali estava a estrela – que se imaginara intangível – simplesmente a observar qualquer coisa. A ser um pouco como nós, espectadores, isto é, meros terráqueos.
O erro naquela noite dos Óscares permitiu redescobrimos precisamente esta potência do directo. Mas também é verdade que deverá ter custado o emprego a uns quantos desgraçados e que foi globalmente visto como um indesculpável deslize, uma monstruosa demonstração da incompetência humana. Pois bem, é aqui que o discurso da competência choca de frente com o que queremos fazer com a nossa humanidade. Digo isto porque existe uma pertinência no erro, sobretudo num ambiente tão sequestrado por uma ideologia assente em banais e circulares convicções – o “todos diferentes, todos iguais” desta vida. O erro problematizou a maquinaria sem falhas da produção televisiva, que inclui desde o monólogo do apresentador ao agenda-setting que faz a gente rica e famosa rechear o peru da sua existência com uns quantos tempos de antena devotados ao – e devorados pelo – politicamente correcto. Tão politicamente correcto que, se fosse feito hoje, o discurso de vitória de Joe Pesci quando foi receber o Óscar de Melhor Actor Secundário de 1991 seria o mais politicamente disruptivo que podia haver, porque absolutamente despido de tudo, até – imagine-se só o desplante! – de uma qualquer “agenda”.
O filme que acabou por ganhar, Moonlight (2016), é uma das belas surpresas do ano. E a tragédia também passa por aqui: apesar de parecer um dado irrelevante, pelo menos estas duas últimas cerimónias dos Óscares convocaram cinema mais estimulante do que muitos festivais europeus no passado recente, a começar pelo cada vez mais empedernido Festival de Cannes – nesse sentido, subscrevo o desalento manifestado recentemente por James Gray. Dêem-me os dois últimos Óscares de Melhor Filme – Spotlight (O Caso Spotlight, 2015) e Moonlight – que eu, sem pestanejar, vos ofereço em troca as duas últimas Palmas de Ouro – Dheepan (2015) e I, Daniel Blake (Eu, Daniel Blake, 2016). Moonlight, com suficiente cinema para provocar admiração, reflexão e discursos que não o instrumentalizem, é um filme que encontra a sua força no modo profundo como compreende o mundo de diferenças que habita cada personagem. É de uma subtileza comovente e não se rege por qualquer “desejo de palanque”. Comunica a humanidade e, sim, fala-nos de erros, todos os pequenos erros que nos compõem, sejamos pretos, gays e pobres ou não – e este “ou” é tudo, percebem?
Chegamos de novo ao dia em que “eles” aterraram para perceberem todas estas questões. Warren Beatty leu no cartão La La Land (2016), instaurou-se um problema de comunicação e um embaraço para a máquina Hollywood. Ora, é destas falhas que trata Arrival e, mais de cinquenta anos antes, The Day the Earth Stood Still. Os alienígenas querem falar connosco, mas não há correspondência. No filme de Villeneuve os extraterrestes têm um código linguístico radicalmente diferente e, portanto, cabe à protagonista desencriptar a mensagem para permitir o diálogo, isto é, para permitir a compreensão mútua – quanto mais tempo leva na descodificação mais cresce o medo e o desejo (auto)aniquilador no Homem. No filme de Wise, o imigrante estrelar vem equipado com a nossa linguagem – fala fluentemente inglês e tudo. Contudo, mesmo falando a mesma língua, a mensagem não passa como desejava. Veio com o dom da língua – a nossa – mas esqueceu-se de dominar outro dom, o da política, a política “à humano”. Faltando nesse T.P.C, o E.T. entrega-se à aprendizagem durante uma curta estada na Terra. Aprende, mas lentamente, que a política “à humano” é feita de chantagem e medo. O filme de Wise consegue ir mais longe aqui. Villeneuve é politicamente mais superficial, mas o seu intuito pertence à ordem da metafísica, por exemplo, de um Martin Buber: a linguagem como acesso ao cosmos, meio de contacto com Deus.
Estas narrativas sobre o alcance da linguagem humana foram já exemplarmente trabalhadas no cinema, mas no domínio de outro género “maldito”: o terror. Claro, Cronenberg é uma referência, mas o double bill perfeito com Arrival pertence a outro canadiano – curioso só falarmos aqui de cineastas canadianos. A reflexão mais radical dos últimos anos sobre o papel da linguagem na estruturação do nosso mundo está contida no fabuloso Pontypool (2008) de Bruce McDonald. Aqui, temos Ludwig Wittgenstein e Marshall McLuhan cruzados com George A. Romero e David Cronenberg. A praga de zombies acontece não no terreno físico da Terra, mas no campo virtual da nossa linguagem, no encadeamento sígnico entre significados e significantes, na sua customeira utilização que serve – tem servido – o propósito da comunicação humana. A solução é… Pois, exactamente isso: o erro. Desfigurar a linguagem, abri-la, fazê-la sangrar por dentro e operar plasticamente sobre ela. Ligar novas palavras a novos significados. A protagonista de Arrival acede à mensagem cósmica através de uma nova maneira de pensar que advém de uma nova maneira de comunicar, novas ligações da mente que engendram um tempo sem passado, presente e futuro. Um tempo espacializado, que vai para todo o lado. Que tem como ícone os esborratados círculos imperfeitos que servem de signos à língua extraterrestre. O erro é o grande imigrante que devemos receber de braços abertos. Isto, claro, se ainda queremos ouvir a mensagem.