O cinema é na maior parte das vezes uma experiência eminentemente solitária. O acto de ver um filme, quer seja numa sala cheia com amigos ou desconhecidos, ou sozinho em casa, é pela sua natureza intrínseca, algo íntimo. Sozinhos com os nossos pensamentos, reagimos ao que vemos com a nossa peculiar interpretação, moldada pelas experiências próprias, e construímos uma ligação com o que assistimos e entre os diferentes elementos do filme, de acordo, também, com os outros filmes vistos. Por muito que posteriormente se discuta o efeito do filme, durante o visionamento ficamos abandonados a nós próprios, sem saber se os outros experienciam o filme da mesma forma – é uma solidão situacional (não muito diferente da de ler um livro, ouvir um álbum ou olhar para um quadro).
Por outro lado, o cinema é também a arte de criar empatia com novas personagens, de nos identificarmos com o que vemos, habituando-nos a ser surpreendidos por ver a realidade através de novas perspectivas, de novos olhares que são distantes e distintos da nossa própria experiência. O cinema é, deste modo, uma forma de eliminar a solidão, de esbater fronteiras de percepção. Vem isto a propósito de Stellet Licht (Luz Silenciosa, 2007) de Carlos Reygadas,e, em particular, de duas sequências que enclausuram o filme entre dois momentos sublimes de introspecção: no início, um nascer do sol no campo, num plano que dura quase cinco minutos; depois, este movimento é invertido no final, com um pôr-do-sol, como se o filme fosse todo ele um crepúsculo. Estas duas longas sequências em que a câmara se move lentamente por uma paisagem campestre enquanto a luz natural nasce ou desaparece, marcam esse momento de solidão, deixam-nos a sós com o filme: anunciando o nascer dessa solidão e a sua extinção.
Stellet Licht é um filme minimalista, na sua forma, que recorre a actores não profissionais para interpretar uma comunidade atípica, um grupo religioso de menonitas no interior do México (uma seita não muito distante dos amish). Não é por acaso que a primeira palavra que ouvimos é “ámen”: o filme assemelha-se a uma experiência espiritual na contemplação e admiração do mundo no seu estado natural, como se tudo fosse insignificante perante a escala maior, como se tudo estivesse já pré-determinado, como é ocasionalmente relembrado pela presença de um relógio na casa desta família. Através de sequências com longos planos e diálogos rarefeitos, de um formalismo rigoroso, acompanhamos o dia-a-dia de uma família e o seu estilo de vida, também minimalista no apego às coisas materiais. Se a história é menos importante do que as imagens que a descrevem, se ocupa um lugar secundário na hierarquia do filme, não é irrelevante: esta é a história de Johan, um homem que perdeu a paixão pela sua mulher e que a encontrou no colo de outra; Esther, a esposa, que conhece essa traição e vê assim a sua tranquilidade prometida a esmorecer; e Marianne, que se sente culpada pelo seu papel no desabar de uma família e que quer acabar com essa situação.
Não é também por acaso que o único encontro sexual do filme, entre Johan e Marianne é a cena central do filme, pelo que é dito, pelo abraço de separação final, pela forma como divide o filme entre o antes e depois. Se até aí as cenas do quotidiano surgiam pontuadas por dúvidas que sugerem uma melancolia quase natural – vemos Johan a chorar silenciosamente depois de um pequeno-almoço em família, vemos Esther a chorar ao observar os filhos, e vemos Johan a questionar o pai sobre a religião – as perturbações de fé ganham a partir dessa cena uma nova dimensão. Por toda a atenção dada à normalização do quotidiano na vida desta família, parece que existe sempre algo nas margens pronto a interferir com o seu equilíbrio. O filme prepara-nos para um futuro encoberto, como que a inverter a ideia das várias sequências em que a câmara se movimenta lentamente para uma área escurecida, de forma a iluminá-la. Esta é uma noção que remete para as obras de Michael Haneke, mais especificamente Das weiße Band (O Laço Branco, 2009), pela forma como, debaixo de um rigor formal, nas entrelinhas do quotidiano parece espreitar um castigo divino sobre as dúvidas da fé, onde a luz surge para esconder algo perturbador.
Mais do que a história, é a forma como Reygadas a conta que afirma o seu traço autoral e apela à inquietação do espectador. Repare-se na forma como Reygadas define os três actos narrativos do filme, com imagens do exterior da casa onde decorre a acção: logo no início, uma imagem da casa de família infere tranquilidade; no meio, durante a cena de sexo, uma imagem da casa onde decorre o encontro sublinha a disrupção nessa tranquilidade; e no fim, de novo uma, imagem exterior da casa da família anuncia a redenção. Repare-se ainda na sequência em que as crianças tomam banho num lago, observadas pelos pais, num longo travelling em que a câmara parece ter uma agenda própria até deter-se nas lágrimas silenciosas de Esther; ou na forma como o filme se detém em Marianne quando esta estende a mão para tapar o sol, depois de Johan lhe confessar que dava tudo para voltar atrás no tempo – é já um prenúncio do final.
As semelhanças com Ordet (1955, A Palavra) de Carl Theodor Dreyer são evidentes: o ritmo lento e os silêncios, a vida de uma família num ambiente campestre, os relógios, as dúvidas religiosas, a transgressão e o final. Mas a forma como Reygadas explora a intromissão dos elementos naturais como testemunhas da história e os movimentos lentos da câmara ilustram uma espécie de limbo espiritual colocado à prova, evocam acima de tudo a obra de Tarkovsky e, em particular, Offret (O Sacrifício, 1986), onde alguém diz: “no princípio havia a palavra”. Esta exploração de uma angústia sentimental, que coincide com o retrato da natureza e com o retrato psicológico das personagens, traz à memória o cinema de Lucrecia Martel, em particular La Ciénaga (O Pântano, 2001) e La mujer sin cabeza (A Mulher sem Cabeça, 2008), obras que apelam ao exame introspectivo.
Johan está dividido entre seguir o seu coração (Marianne) ou a sua fé (Esther), entre duas mulheres. Pergunta o que fazer a um amigo, pede a opinião do pai, mas parece incapaz de fazer algo, parece por vezes uma criança num corpo de adulto – não deixa de ser curioso observar a alegria de Johan perante vislumbres do mundo exterior, quer seja a ouvir uma música no carro, ou a ver televisão com os filhos numa caravana. Cabe a Esther e Marianne salvarem a situação, entre sacrifícios e renúncias, e a redenção não é para todos. Nesta comunidade auto-exilada, que sobrevive à margem da sociedade, a solidão parece um castigo profético – porém, no fim, depois de um desfecho surpreendente e assombroso, o filme revela a sua solução: não falta muito para o próximo nascer do sol.
Stellet Licht (Luz Silenciosa, 2007) de Carlos Reygadas é exibido dia 25 de Março pelo Cineclube da Maia, na sala de Cinema do Centro Comercial Venepor às 21h30.